Obras

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segunda-feira, 10 de maio de 2021

 DO BIG BANG AO JCACAREZINHO

Eu estava lá e sei como tudo começou. Do silêncio absoluto ao caos definitivo, da massa amorfa candente desabou uma chuva negra de pedras crepitantes ao som trovejante de mil dragões cuspindo fogo pelas ventas da terra que nem Terra ainda era.  O chão em convulsões infinitas, pés trôpegos não têm para onde correr.
Um minuto durou mil anos que duraram um minuto, porque não havia como medir o Tempo. O cheiro acre da morte prenunciava que a vida estava a caminho, só ia demorar um minuto. Um dia ainda noite, alguém acendeu a luz.
Das fossas fumegantes emergem criaturas que rastejam pelas planícies, sobem as montanhas, voam sobre selvas em busca da carne sadia. Podia-se contar estrelas, plantar girassóis, dar letra ao homem. E ele criou o riso, a dança, a poesia, porque tinha alegria, alma e sonhos.
Mas criou também a mentira e o ódio, cheio de dor e angústia, medo e fel. E veio a peste e depois a guerra, e pais choraram pelos filhos.
Sempre foi assim e assim será sempre.

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Será sempre assim porque assim sempre foi. Depois da guerra veio a peste, e filhos enterram pais. Mentira e ódio levaram a alegria, a poesia, os sonhos e a vida. Não se contam mais estrelas, não se plantam mais sonhos, não se colhem mais girassóis. 
Uma noite ainda dia, alguém apagou a luz. Do báratro rebenta gente que corre pelo asfalto, sobe o morro, sobrevoa a selva, em busca da carne vadia.
O cheiro doce da vida prenuncia que a morte está a caminho, vai levar só um minuto. Um minuto que dura mil horas que duram um minuto, porque não há tempo a perder. 
Da massa amorfa escura vem a chuva negra de granizos perfurantes ao som replicante de mil bocas de aço cuspindo fogo pelas fendas da alma que nem vida é. Sobre o chão trepidante infinitos pés em convulsões não podem mais correr. No caos absoluto o silêncio definitivo.
Eu não estava lá, mas sei como tudo acabou.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O FUTURO DO PRESENTE

Nos últimos tempos, tenho me ocupado em comentar sobre o comportamento humano em suas diversas facetas, nas crenças, na sociedade, na política, cultura, etc. Até onde tenho observado e minhas leituras me levam, o elemento-chave que tem provocado a degradação moral do homem é a superexposição midiática. Não se trata do "Grande Irmão" que tudo vê e controla da obra de Orwell. A questão é mais ampla, mais complexa e mais profunda. Também não se trata do modismo insípido das selfies ou das redes. O problema está no que está por trás disso tudo, que poucos percebem porque diretamente envolvidos. No entanto, aqueles que o detectaram expressam sua preocupação, estudam, discutem, escrevem e alertam, mas suas vozes se perdem no vazio. Preocupante.


O problema é antigo, bem sabemos, mas há um consenso entre os estudiosos de que o ambiente vem se agravando ao ponto em que eles próprios temem expor sua opinião. É tão antigo que Platão já discutia com seus pares, e em "O mito do anel de Giges" ele dá uma aula sobre ética e moral, absolutamente atual e indispensável para estes tempos. Trata-se, de novo, da natureza humana, daquilo que é inato e daquilo que é culturalmente adquirido. Muitos pensadores investiram na problemática sob diversos aspectos, Freud, Kant, Machavelli, Hobbes, Rousseau, e nas últimas décadas, Debortd, Baudrillard, Bauman, Mafesoli, Lipovetsky e outros se voltaram para questões mais sociais e antropológicas. Não há quem, por um momento, não tenha refletido e dedicado algumas linhas sobre o assunto. A literatura não é pequena.

Essa mega auto-exposição, ou autopromoção, fez o homem perder completamente sua espontaneidade. Tudo passou a ser feito em função da imagem, a sua imagem, em todas as atividades. A partir do momento em que o sujeito se vê no foco - literalmente, sob as lentes -, a naturalidade dá lugar ao fingimento, à encenação, à artificialidade e afetação. Ele deixa de ser quem é para ser o que esperam que ele seja - a persona -, um personagem, aquilo que essencialmente ele não é. Em outras palavras, passa a ser a representação de si, ou ainda, deixa de ser alguém para ser algo, um "produto", uma mercadoria exposta na vitrine digital em perpétua autocontemplação - o hipernarciso - o sujeito aprisionado nele mesmo, e não seria impróprio dizer - uma auto-epifania. Dando um matiz filosófico ao dilema, o indivíduo se equilibrando na escorregadia zona cinzenta entre ser e não ser. 


Para o bem mas, principalmente, para o mal, a espetacularização e a massificação da imagem tiram do indivíduo seu conteúdo, e, em decorrência, levam-no ao esvaziamento e à alienação social, ou, como entende Baudrillard, à "desrealização do mundo pela imagem e à impossibilidade de retorno a um estágio anterior - o fim do indivíduo". Desidentidade? Em busca de um rosto? Parece-me que estamos falando de autofagia, não? A questão é: a "imagem" 'devora" o homem ou apenas revela o que ele é, o que pensa ser ou o que passou a ser - um fingidor, um falso, um simulacro, uma triste marionete de si mesmo?
 


Julgo necessário trazer a reflexão de Guy Debord em "A Sociedade do Espetáculo", uma espécie de antevisão meio século atrás do que estamos assistindo. Embora ele se refira ao sujeito como um consumidor voraz e a imagem que disso resulta, a análise vai além disso. É preciso ler com muita atenção. Os sublinhados são meus acrescentados aos itálicos originais:
O espetáculo (da sociedade de consumo) que é a extinção dos limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu que a presença-ausência do mundo assedia, é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda a verdade vista sob a presença real da falsidade que a organização da aparência assegura. Aquele que sofre passivamente a sua sorte cotidianamente estranha é, portanto, levado a uma loucura que reage ilusoriamente a essa sorte, ao recorrer a técnicas mágicas. A necessidade de imitação que o sujeito sente é precisamente uma necessidade infantil, condicionada por todas as respostas da sua despossessão fundamental.
Com esse cenário de alheamento realidade, o duo ética-moral se deteriora, e é ele que, na prática, redige os termos do contrato social. A soma desses dois elementos resulta num terceiro, a dignidade. Se esta engrenagem dá sinais de desgaste, o mundo adoece, e a tendência é piorar. Não estou otimista que o quadro melhore. No mito referido, Platão demonstra que o homem não é honesto, nem justo nem íntegro espontaneamente, mas para se mostrar como tal para a comunidade, por conveniência, ambição, convenções culturais, temores religiosos ou interesses outros. Kant seguiu na mesma linha e já tratei disso aqui pouco tempo atrás. É duro admitir essa verdade, e que não nos esforçamos nem um pouco para melhorar, ao contrário.

Esse "mostrar-se", hoje, está fora de controle, ultrapassou o limiar da educação, do decoro, da civilidade e da privacidade. Tomou proporções assustadoras. As reflexões no campo da psicologia indicam que quanto mais o sujeito se afasta das suas referências psíquicas, culturais e sociais, quando ele perde seus critérios éticos e o senso cívico, mais se identifica e se integra à sua natureza primitiva, sua essência má e animalesca. É uma lei geral, nada escapa à sua própria natureza: o réptil nasce réptil e morre réptil. O idiota também. Entenda a relação?

O dado mais terrificante é que o idiota não sabe que é, mas sabe o que faz. O que lhe resta de humano permite que tenha consciência dos seus atos. Mente porque quer mentir, agride porque quer agredir, mata por que quer matar. Tem o poder de escolher não fazê-lo, mas nem precisa de motivo, havendo vontade, ele o fará. É o que Platão discute no mito: Giges, o pastor de ovelhas que encontrou o anel da invisibilidade. Ele poderia não fazer o que fez, mas, tendo desejo de o fazer e oportunidade, fez. O escorpião pica não porque quer, mas porque é da sua natureza. Ele, o escorpião, não tem escolha. É a lei geral dos seres vivos - seguir seus instintos, seja réptil ou idiota.

A menos que o indivíduo tome consciência de si e de seu papel na coletividade, que é ele quem gira em torno do mundo e não o contrário, que suas ações estão na fronteira das ações do outro, só então é que a cidadania e a ética se encontram. Não sou otimista aqui também. A desdita auto-imagem fala mais alto, e como. As mídias delatam o procurador molecote, tolo e pretensioso, querendo ensinar leis ao magistrado, o desembargador repugnante useiro e vezeiro em humilhar quem lhe atravessar a frente, o engenheiro diplomado em burrice que desrespeita o fiscal de Saúde, a prostituta que quer dar lição de moral a ministro, a juíza que condena o réu por ser negro... Tudo parece brotar de terra com uma naturalidade obscena, tão perversa quanto trágica. Esse é o exemplo que a  velha sociedade está deixando para a nova. Perceba, não é uma pergunta. É indiscutível que as plataformas digitais e a disseminação instantânea da imagem se tornaram a fossa suja dos estúpidos de farda, saia, gravata ou toga, que expõem sem pudores toda a sua baixeza nais subterrânea.


Esse é o padrão que vira notícia porque a audiência clama pelo circo. Quem faz a lambança quer ter seu momento de glória, caso contrário segue vegetal na mais completa obscuridade. Para isso, mais do que nunca, os fins justificam os meios. Dito de outra forma, pouco importam os meios desde que os fins sejam alcançados. É a banalização da bestialidade, a quintessência da ignorância: Eu e meu prazer acima de tudo e de todos, às favas os escrúpulos morais e éticos.

Os valores se inverteram, as exceções tratadas como feitos extraordinários: o idoso que volta ao prédio em chamas para resgatar um bebê, o morador de rua que salva a moça da enchente, o garoto que defende a irmã de cão furioso, a balconista que devolve ao trabalhador a carteira com o auxílio-desemprego... esse não é o padrão, mas também vira notícia porque, afinal, alguém precisa falar de flores. Só que o mundo real tem mais espinhos que rosas, e aqui não se doura pílulas. O mundo está dando um recado, não sei se você notou. As mudanças em curso levam os estudiosos, os ajuizados e os esclarecidos a terem razão em temer o futuro desse presente. Eu temo, e você, não? 

sexta-feira, 31 de julho de 2020




O MINISTÉRIO DO ATAÚDE AVERTE
Eu havia decidido que o post da semana passada seria o último a tratar de política no contexto do desastre que assola o mundo e em especial o Brasil, mas também não me sentia nem um pouco confortável em manter silêncio quando o caos desfila na nossa cara. Estou falando especificamente da Saúde, da sua, da minha, da saúde do país, física e mental. No caso do governo brasileiro, não há a menor justificativa para a quantidade descomunal de desacertos. Ou há, dependendo de como se olha a questão.

A verba destinada ao atendimento à população é ilimitada, porém, a política do avestruz no Ministério do Ataíde dificultou, retardou e interrompeu a compra de equipamentos, dificulta e/ou retarda a aquisição de kits de testagem, dificulta e/ou retarda a distribuição de verba às Secretarias Estaduais para o mesmo fim, dificulta e/ou retarda o repasse financeiro às empresas para evitar a quebradeira. E não evita, claro, porque a incapacidade de raciocinar retarda ou impede qualquer ação, tanto que nem dá satisfação do que está fazendo porque, claro, não está fazendo nada. Quando faz, faz a porcaria que aí está. Não é só na Saúde, o processo de desmantelamento é total em todas as áreas - Educação, Cultura, Meio Ambiente, Ciência... Mas tem mais.

Esse governo dificulta e/ou retarda a liberação do auxílio emergencial aos necessitados, não providencia a compra de anestésicos e outros insumos essenciais ao atendimento hospitalar, e, não satisfeito com tanta palermice e negligência, mandou produzir, em escala planetária, um medicamento comprovadamente inócuo e não recomendado, só para atender a sanha tresloucada do aparvalhado chefe. A paralisia mental, a negação dogmática aos estudos científicos e a recusa doentia em reconhecer a gravidade da situação desde o princípio, foram determinantes para escancarar a gestão homicida e a malversação dos recursos. Tarde demais para estancar a hemorragia de mortes, mas não para punir os irresponsáveis. E ela virá. Desta vez, não é só a História que irá julgar o ministro-boneco e seu destrambelhado ventríloquo. Ambos estarão sujeitos às penalidades do Tribunal Penal Internacional: "Privação do acesso a alimentos ou medicamentos".¹ 

Quanto ao arrevesado e frouxo ministro fantasma não médico, por si uma aberração, juristas afirmam que já há fundamentos suficientes para um julgamento técnico: a inação à frente do ministério, ou seja, omissão; os atos inexplicavelmente tardios, refletidos pelo silêncio, e o mais grave, os atos contrários ao regramento determinado pelos órgãos internacionais de saúde e de direito aplicado à saúde, caracterizando incompetência, desinteligência, negação deliberada sistemática, irresponsabilidade. O povo, já todo estropiado, infectado ou não, tenta sobreviver à realidade e à avalanche de desmandos, sem dinheiro, assistência decente, testagem, equipamentos básicos e sem perspectiva, por culpa de uma tropa de fracassados que vive chafurdando no fundo do poço. 

O meio científico brasileiro é reconhecido e respeitado internacionalmente pela sua competência e seriedade, mas não pelas nossas prepotentes autoridades. Julgando-se superiores e bem informadas, tomam medidas criminosamente inversas às evidências, advertências e orientações técnicas. Ainda temos muito a aprender sobre a atuação do vírus, meios de transmissão, período de incubação, reinfecção, quadro sintomático... São muitos estudos em andamento, todo dia alguma nova pesquisa revela dados que reorientam as diretrizes. Entretanto, para alguns, nada disso tem importância. Essa é a assinatura do cínico desprezível, o "patriota": E daí, todo mundo vai morrer um dia. Cuidado, patriota, a próxima vítima pode ser você.

Aliás, não foi esse mesmo patriota que se achando doutor de coisa alguma, declarou que a tal "gripezinha" não mataria mais do que "umas 800" pessoas? Ele foi avisado que passamos de dois milhões de infectados e 100 mil mortos, e que os números podem dobrar até o fim do ano? Curiosamente, não foi esse mesmo patriota que, ao ser testado positivo com o vírus, correu para dentro de casa, tomou uma droga qualquer, botou máscara pra se proteger? Proteger-se por que, patriota, se vamos todos morrer um dia? É assim mesmo, quando a realidade bate à porta, tem que ter tutano para abrir, mas o patriota não sabe o que é tutano.

Esse governo tem a obrigação moral de custear os testes (verba ilimitada, lembre-se); deve, também, obrigar a que os planos de saúde assumam esse encargo, e não deixar que o cidadão pague pela sua inépcia. Não é só a população que sucumbe com essa política do avestruz, o governo também. O problema é que a estrutiocultura* é muito forte no altiplano central e não há indícios de que a espécie esteja em extinção, pelo contrário, ela se multiplica.




* Estrutiocultura: latim strutiosavestruz. A semelhança com stultus - estúpido, não deve ser coincidência.

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quinta-feira, 23 de julho de 2020

VENTRÍLOUCOS


O título é um trocadilho nada sutil e bastante autoexplicativo, mas a descrição elimina a sutileza: Ventríloquo é aquele que "fala" sem abrir a boca, e o boneco que está sob seu comando no colo é quem conta as histórias, responde perguntas, diz o que o "chefe" faz de conta que não disse. Enquanto não passa de uma simpática brincadeira de salão para a criançada, a festa segue divertida. Porém, quando adultos resolvem brincar de ventriloquia, a festa vira show de horrores. Palavras-chave da conversa de hoje: chefe, comando, boneco, colo, fala. Se eu te conheço, você já chegou ao fim do texto antes do texto chegar ao fim.

Esse teatro de gente grande, na verdade, gente muito pequena, é ruim para o boneco e para quem ouve o boneco, e quanto mais astuto o ventríloquo, maior o dano. Quer exemplos eu dou. Começando de baixo, bem lá de baixo. O guru da autoajuda que, com habilidade e paciência, coloniza a mente (daí "mentor") dos adeptos com retórica e jogo de cena impecáveis. Ao fim e ao cabo, os "bonecos" saem repetindo o "encantamento" sem nenhum questionamento. O rito se reproduz nas pregações onde o público está lá também para ouvir o que quer ouvir, e aí o "pastor do rebanho" logra seu intento quando a louvação é de fazer inveja ao coral dos anjos.

Antes de prosseguir, é fundamental entender Lévi-Strauss quando ele diz que a eficácia de um "encanto" implica na crença desse encanto; primeiro, pela confiança no encantador e na sua capacidade de persuasão, ou sedução; segundo, porque se quer crer que o encanto produz o resultado desejado, e terceiro, porque outros como ele pensam a mesma coisa - a opinião coletiva, ou, se preferir, a câmara de eco, que ratifica o poder do encantador e seu encanto, feitiço, magia ou simplesmente, discurso.


Dessa tripla combinação resulta, ainda segundo Lévi-Strauss, uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o encantador (o "chefe") e aqueles a quem ele encanta (os "bonecos"). É uma questão mais psicológica que sociológica. Traduzindo, o feitiço, o encanto, o comando, terá mais efeito se o "boneco" estiver no "colo" do "ventríloquo". Não preciso lembrar que isso vale para qualquer tipo de pregação, narrativa ou ideologia, da mais exótica à mais nefasta. Aqui estamos chegando ao ponto de ebulição.

Estou falando de ambientes como uma torcida de futebol, por exemplo, onde, a um comando, a turba se inflama, ensandece e parte para o confronto e a violência; estou falando de atos públicos em que basta um megafone potente para que, em minutos, a praça se transforme em zona de guerra, ou uma rede social incendiária, um influencer da moda que dita regras quase nunca compatíveis com a razão, a lógica e o bom senso. Em todos estes casos e mais alguns, o "ventrílouco" tem o controle das ações e deixa que os "bonecos" façam o trabalho sujo. Bonecos não pensam, não têm vida própria nem agem segundo sua vontade, apenas mexem a cabeça, agitam braços e pernas e só abrem a boca para repetir o que lhes é mandado dizer.

Por fim, quando um "ventrílouco" exerce grande poder sobre a massa e tem no colo vários bonecos, a situação piora, ainda mais quando ele não tem noção (não?) do que é capaz. Age como uma criança malvada que pega seus soldadinhos de chumbo e joga-os na fogueira, dá desinfetante para ver se o gato sobrevive, esconde o remédio da vovó ou lacra o cofrinho da irmã para ela não comprar jujubas. Qualquer semelhança com quem você conheça não é casual. Nem a analogia é. Tem muito adulto que se comporta de modo inadequado como criança má, fazendo seus bonecos, fantoches ou bonecos de Olinda dançarem conforme os tambores batem. 


Para aprofundar nos aspectos psicopatológicos constituintes de uma índole disruptiva, teríamos que recorrer a Freud e a uma ampla gama de considerações, o que não me cabe fazer, obviamente. Suzana Grunspum, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, citando o trabalho de Melanie Klein, que deu continuidade aos estudos de Freud nesse particular, ressalta que "Melanie foi uma das primeiras psicanalistas a considerar a agressividade como um fator do mundo interno da criança, e a apontar que os aspectos violentos e destrutivos também fazem parte da constituição da vida maternal desde bebê."


Mesmo dividindo críticas e elogios aos seus estudos, Melanie é reconhecida pela sua arguta observação do universo infantil, a ponto de Lacan chamá-la de "açougueira genial", por explorar as entranhas mais selvagens dos até então "anjinhos" puros e inocentes. Quando esse adulto se recusa a crescer, quando permanece infantilizado e imaturo em suas ações, responsabilidades e pensamentos, quando é incapaz de olhar o mundo em sua complexa totalidade, como é natural em uma criança ainda em processo de formação da personalidade, esse não adulto tenderá a seguir com suas brincadeiras sem medir as consequências. Seguirá julgando-se centro do mundo e aqueles que o rodeiam, bonecos manipuláveis para suas travessuras.

Os "ventríloucos" sempre existiram, é verdade, mas na era da comunicação digital e de massa e com a força das imagens, eles encontraram o paraíso para extravasar suas carências, recalques e falhas de caráter. Há uma inequívoca e permanente tensão pairando no ar, um sentimento incômodo de que algo de ruim está para acontecer, e geralmente acontece, só não se sabe o que, quando e onde. Um ventrílouco, por não ter voz própria nem rosto, e se esconder por trás de um boneco, tem outro nome, e você sabe qual é. Sabe sim.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

DE ALIENISMO EU ENTENDO

Na semana passada você "leu" meu silêncio e certamente captou o sentimento que me toma pela imagem publicada. Não é só tristeza pelo que estão fazendo com o país e no país, é nojo também. Foi um breve período no modo silencioso, introspectivo, observador. Vejo, de um lado, um governo mal intencionado na nascente e em toda a sua extensão, irresponsável e, em certa medida, genocida. Quem manda de verdade são os psicopatas da "ala ideológica", com a conivência catatônica da inconveniente e impertinente "ala militar". Ambas transformaram o país na esbórnia que aí está por inépcia e ineptidão no comando de uma nação. Ambas ignoram as leis, esmagam a democracia, asfixiam a cidadania, queimam a ética. Enfim, ambas se irmanam na parceira das iniquidades, ilegalidades e outras aberrações. Quando todos são alienados, e disso eu entendo, a coisa não vai nada bem. Eu já sabia que seria assim, e avisei a alguns bem próximos, mas não quiseram me ouvir. Paciência. Não sei se me ouvem agora.


Genocida? Exagero? Quer esclarecimentos eu doou. Entre os itens do artigo 6 do Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, que trata de genocídio, lê-se: "Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial". Da mesma forma, diz o artigo 208 do Código Penal Militar Brasileiro: "Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente a uma determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo." A semelhança na redação não é coincidência.

Se você acha que não havia razão para trazer essa definição, pergunte aos indígenas, aos pobres, aos pretos, aos desvalidos. Pergunte àqueles que perderam seus entes por desassistência social. Pergunte aos que não não foram salvos por falta de equipamento devido às falcatruas administrativas. Sim, vamos todos morrer um dia, mas não precisa ser de uma vez e pelo mesmo mal. Releia as definições. Insisto, para que fique marcado, a história vai julgar e cobrar os responsáveis pelo que estamos passando. Não se descura centenas de milhares de vidas impunemente, a fatura virá. Cada país arcará com seu ônus e cada governante responderá pelas suas ações - ou omissão. Quem viver verá.

De alienados eu entendo bem, estive rodeado deles por anos, uma trupe de lunáticos, misticóides, mistificadores e, como em todo lugar, patifes. Reconheço-os só de olhar, e quando abrem a boca, acerto na mosca. Da turma do governo não errei nenhum, seja de farda, gravata ou saia. Quer exemplos eu dou. Quando um ministro aparece vestido de astronauta em cerimônia oficial, alguém está fora de órbita. Quando a Educação troca quatro nomes em um ano e meio, é porque falta educação no país. E o que chegou agora, indicado pela ala ideológica, já pela primeira fala antes da posse aposto que não vai longe. Foi abrir a boca e detectei mais um. Não sei se me entendeu. Seja qual for a pasta, são todos da mesma laia.

Quando o ministério da Saúde é comandado por um interventor leigo e omisso metido a doutor, que nem teve a hombridade de declinar do cargo por notória incompetência, então, definitivamente, há algo de podre nesse reino que não é o da Dinamarca. Sim, o país está doente, paralisado em berço esplêndido desafiando o nosso peito à própria morte. De verdade, o que falta a essa gente frouxa e pequena, de farda, de gravata e de saia, é vergonha na cara. Agora você entendeu. Quando todos demonstram analfabetismo, funcional ou não, não há conserto possível.

Conheço bem os alienados. De todo tipo. Há os ingênuos, que não causam mal algum e vivem em seu quadradinho de inocência. Existem os fanáticos exaltados, que pregam suas convicções mais tresloucadas e teorias paranoicas mofadas. E há os perigosos, virulentos, que contaminam os não imunizados. Conheço todos, de longe. O governo está lotado destes, de farda, gravata e saia. Os demais se espraiam por aí. De alienismo eu entendo. Alienismo: "Distúrbio mental caracterizado pela incapacidade de pensar e agir conforme a razão, dificultando o convívio social." A tendência é o agravamento gradual em direção à insanidade, demência e loucura. Em outras palavras, os alienados vivem em um mundo paralelo, à parte, totalmente desconectado da realidade, por isso fora do eixo, do mundo real. Alguém duvida que muitos integrantes dos governos mundo afora se encaixam nessa descrição?


Tecnicamente, alienação "é o estado mental consequente a uma doença psíquica em que ocorre a deterioração dos processos cognitivosde caráter transitório ou permanente, de tal forma que o sujeito é incapaz de gerir sua vida socialmostrando-se inteiramente dependente de terceiros no que diz respeito às responsabilidades exigidas pelas regras da convivência em sociedade. O alienado pode representar risco para si e para terceiros". Mais claro impossível, mais adequado idem. O itálico é meu, e a definição é do Núcleo Especial do Ministério da Saúde, que é justamente quem deveria prestar mais atenção em quem o dirige, e aos demais cargos da República. Poucos se salvam. Quero notar o fato de que, se o alienado estiver cercado de outros como ele, o desastre é inevitável. O que se vê no país e no mundo confirma a tese.

Há, ainda, uma quarta categoria, intermediária e mais perigosa, a dos imbecis propriamente dito. São aqueles que, em nome de uma ideologia, doutrina ou seita, assumem devoção extremada em rota de colisão com o pacto civilizatório. Destes, há centenas dentro do governo e milhares fora, em total desrespeito às leis, às normas institucionais e ao bom senso. Quer exemplos eu dou. Magistrado que abranda pena de foragido por razões "humanitárias" é um despropósito e contrário à lei penal; advogado que pede habeas corpus coletivo demonstra ignorância de ofício, feitiçaria jurídica ou má fé; general que faz ameaça explícita contra uma ordem judicial legal revela evidente más intenções, ou ignorância da lei, o que é comum; ministro que prevarica e estimula atos antidemocráticos é passível de prisão por improbidade e falta de decoro.


Quando o chefe de uma nação é aparvalhado e tosco, quando adota discurso de ódio, racista, preconceituoso, misógino e homofóbico, quando mostra desrespeito pela ciência, desorientação política, envolvimento com ilicitudes, descontrole emocional, incontinência verbal chula e comete grosserias diplomáticas, obviamente não tem estatura moral e estrutura mental em condições sequer para pedalar uma bicicleta ergométrica, quanto mais conduzir uma nação. Obviamente, também, claro, a espiral hierárquica segue o mesmo padrão, e aí o tal país fica ingovernável. A primeira lição para se avaliar a inteligência de um governante é atentar para os homens que o cercam. Esse é um conselho antigo de quem tinha grande intimidade com o poder e sabia o que dizia - Machiavelli. A alienação pode ser tratada, mas o imbecilismo não tem cura.


A estupidez não se restringe aos gabinetes oficiais, à farda, à gravata ou à saia, nem é exclusiva de um único país. Também não está confinada a esta ou aquela camada da população. Não senhor. Da meretriz ao juiz, todos são partícipes da esculhambação transnacional. Doutores saídos das melhores escolas estão rasgando o verbo e jogando no lixo a boa formação com retórica e atitudes deploráveis. A barbárie tem diploma sim senhor. Ela está nas ruas, nos atos de violência, vandalismo, boçalidade, arruaça e provocação, sob o olhar sempre complacente das autoridades, desde que o gesto esteja afinado com seus interesses. O país que se dane. Cumprem à risca a célebre máxima "Aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei". É a canalhice sórdida ocupando a mesma praça num abraço repugnante. As redes sociais e boa parte da mídia protagonizam papéis sujos em uma peça doentia escrita por um insano, em um cenário carcomido de um teatro em ruínas. E a plateia se divide entre o aplauso dos dementes e o apupo dos decentes. Não sei você, mas de alienados eu entendo bem.

quinta-feira, 2 de julho de 2020


NÃO SUBESTIME A REALIDADE


Você leu aqui que, quando fatos se tornam versões, o pesadelo começa. Alguma dúvida? Se você discorda, é porque está subestimando a realidade, e ela vai te pegar de jeito por essa negligência. A pandemia é só o pano de fundo para a conversa de hoje, que vai servir como parâmetro. Ou pretexto. Em nome de “versões”, tem se tomado uma série de medidas que contrariam o bom senso e a mais óbvia clareza dos fatos. Em todas as instâncias, repito, todas, a hostilidade aflora na pele, a violência galopa na ponta dos cascos, eu disse cascos, atropelando a ética, a civilidade, a racionalidade. Pior é quando parte do cume da pirâmide ao destilar o fel cáustico, que escorre e se infiltra pelas fendas erodindo tudo abaixo e à volta. Abra o mapa do mundo e veja as nódoas da insensatez esparramadas sobre ele.

Não adianta refutar certas verdades. Insisto, não adiantaSe há um contágio global, não há como negar ou ignorar os estragos e o desastre que vem causando, e isso é um fato! Se a mortalidade tem um percentual baixo em relação à taxa de contaminação, fato é que ele mata. Não se dissimula dez milhões de infectados e 500 mil mortos. É macabro pensar que a morte está literalmente no ar, o ar que respiramos, e isso não é figura de linguagem, é fato! Quem acha esse percentual irrelevante é porque criou a sua versão do fato, subvertendo ou invertendo-o: o que é não é, o que não é passa a ser o que ele acha que é. Não é assim que a realidade funciona.

Furtar-se às evidências é enveredar pelo caminho da omissão, do delírio, da fantasia, até chegar ao perigoso limiar da psicopatia. Talvez a Psicologia veja isso como uma forma de mentir parara si mesmo. Um amigo comentou que a realidade é mais louca que qualquer ficção. Eu diria que a realidade não é louca, ela é o que é; louca é a ficção, a imaginação, porque nelas tudo se cria, inclusive uma outra realidade. Quem acha a realidade louca se abriga na fantasia, e fica dançando nas costas do jacaré em meio a tempestade.

Quando a Ciência é questionada, só o é por quem não é do ramo, portanto, ignorante em assuntos científicos. Ela própria se encarrega de ter suas incertezas, suas dúvidas e de admitir seus erros, não precisa de nenhum forasteiro metendo o bedelho onde não deve. Esse princípio se aplica a todos os campos do saber, incluindo, claro, o tema central deste blog. Se quiser discordar ou discorrer sobre algum assunto, vá estudá-lo e a tudo que lhe diga respeito, produzindo sua própria oficina de conhecimento, mas não pense que será fácil, a complexidade o espera na porta de entrada. Quer um exemplo?

Eu precisei de três décadas para compreender os meandros da mente e os humores do comportamento humano em relação às crenças. Cheguei até aqui imerso em águas nunca imaginadas e ainda tenho uma bela jornada pela frente. No entanto, ora veja, tem gente que mal chegou no mundo e acha que já sabe das coisas, porque montou seu entendimento sem ter atravessado o túnel das experiências reais consolidadas, e sem ter encorpado a voz o bastante para dialogar com o mundo. Outros leem meia dúzia de livros e trocam ideias na sala de espelhos da câmara de eco e supõem que isso seja suficiente para formatar seu saber. Em ambos os casos, são novatos numa estrada poeirenta e vão ter muito sol queimando no lombo antes da próxima parada.

Eu poderia falar sobre uma enxurrada de medidas que foram e estão sendo tomadas de forma desastrosa, leviana e inconsequente, com ou sem pandemia, mas não o farei. Isso ocorre quando se quer torcer, distorcer, ocultar ou falsear a realidade, o que vem acontecendo cada vez mais nos últimos anos. Há, também, os casos de oportunismo, interesses pessoais suspeitosos e outras artimanhas do tipo. Incorrer nessa irresponsabilidade é flertar com o caos. O ponto é: realidade, verdade e fato não podem ter versões porque são indissociáveis. O fato, ao existir e por existir, já é real e verdadeiro. Esta é uma questão complexa que pede muita atenção, não é fácil compreender de imediato. Tomemos como exemplo os 500 mil mortos na pandemia; o número “500” pode ser questionado, corrigido, o que não muda, porque real e verdadeiro, é o fato gerador - a pandemia -, os mortos são consequência. Um fato pode ser relativo e subjetivo na sua interpretação, mas será sempre real e verdadeiro na sua crueza. A realidade é uma sucessão ininterrupta de fatos, portanto, sempre verdadeira, sem intermediações nem inferências. 


Quem não vê a realidade dessa forma, quem a subestima ou a reescreve em sua própria linguagem, denuncia sua rota de fuga, declara sua imaturidade e incapacidade de lidar com o enredamento do mundo, e de compreender as regras do jogo. Ou navega no maremoto da realidade, ou vai andar de pedalinho na represa, onde estão os medrosos e os insuficientes de si próprios. Outro amigo vive me dizendo que temos realidades diferentes. A ser assim, então são 7 bilhões de realidades diferentes ao mesmo tempo, e o mundo passa a ser o que cada um quer que ele seja!

O conceito de realidade tem sido debatido ao longo da história pelos melhores pensadores, de Platão e Aristóteles a Kant e Spinoza, entre outros. É uma boa conversa para abstrações filosóficas depois do jantar, mas é também uma saída estratégica para quem não quer topar de frente com um muro de concreto. O mundo real. A realidade é uma e única coisa, o que muda é a leitura que cada um faz dela. Em si mesma, ela é imutável e irredutível, como a verdade e o fato.


É fundamental o exercício da reflexão livre de conceitos preestabelecidos, e senso crítico apurado diante daquilo que se apresenta aos olhos. Não há fórmula pronta, não basta “virar a chave” e esperar que tudo mude. É um longo e gradual processo de maturação das estruturas cognitivas a que poucos se dispõem, o que não lhes apetece porque a resposta tem que ser rápida. O que há é um árduo sacrifício intelectual para abdicar das conveniências, dos ranços e matrizes ultrapassadas; é, em certo sentido, reaprender a pensar. Há que se ir além do campo de visão microscópico contido nos limites das percepções e expandi-lo ao tamanho e no compasso do mundo. Do mundo real.


Só compreendendo o real é possível compreender o irreal, e o inverso é tão ou mais verdadeiro. A realidade não deve ser interpretada, vertida, retificada, ela é como o tempo, que não encurta nem estica, ele é imperturbável, nós é que o colocamos na métrica aparente. A realidade é como a Verdade da parábola judaica onde, em estado puro, anda nua pela rua, só não a vê quem não quer encará-la. Uma rosa é uma rosa e não importa o que se pense sobre ela, será sempre uma rosa. La rose est sans pourquoi - a rosa não tem porquê (Silesius, poeta, 1624), ela é o que é porque é. Alberto Caiero, ou Fernando Pessoa, propõe a síntese definitiva: A realidade não precisa de mim”.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

A ILHA DOS MORTOS

L’île des morts
Arnold Böcklin
óleo s/tela, 1886


Excepcionalmente, hoje quero abordar um assunto fora do habitual deste blog, porque atendo à minha consciência e minha indignação. Tenho esse espaço para me expressar e sempre o fiz baseado na consistência de dados, e não teria porque ser diferente agora. Não se trata de mera opinião sem base e sem estudo. Estou atento ao farto noticiário nacional e internacional com o devido filtro crítico, aos fatos em sua inteireza, e também à literatura pertinente, porque só informação jornalística não basta. Deixo claro que sou apartidário, para dissipar qualquer dúvida a respeito, mas me incomoda, constrange, envergonha, revolta e causa náuseas ver este país mais destroçado do que já está. Só tenho o recurso da minha escrita como forma de acalmar o espírito, por isso o texto é longo e contundente, sem poupar ninguém.

Me inquieto ante a quantidade inominável de descalabros que está ocorrendo no país e corroendo nossa vida, por conta da mais absoluta incompetência e irresponsabilidade de um governo acéfalo e disruptivo em toda a sua estrutura hierárquica. O mundo nos olha atônito e assiste com desconfiança ao cenário político caótico em pleno curso de uma crise sanitária sem igual e em seu momento mais agudo. Algumas nações declararam abertamente distanciamento deste país, com graves prejuízos comerciais e econômicos, com séria possibilidade de sanções. Equiparado aos regimes autocráticos mais danosos, a reputação deste país, hoje, é a pior em toda a sua história, comparada a uma latrina, em razão da quantidade de embaraços diplomáticos, crimes ambientais e errâncias diversas, entre outros vexames.


Um país desgovernado e um ministério-chave inoperante e sem ministro é tudo o que não precisamos. São meses à deriva com um governo apalermado, e o povo tentando se salvar como pode. Os que não conseguem sobreviver são jogados na vala e apagados do obituário. O simulacro de ente mitológico entronizado, que se julga acima da lei e da ordem, é vocacionado para o confronto, a discórdia, o enfrentamento, a cizânia, incapaz de um único ato minimamente ético, sendo indigno do cargo que ocupa. Tentando sobreviver politicamente e se livrar de seu destino certo e merecido, cerca-se de uma súcia de sabujos, nomeia apadrinhados, aventureiros ineptos e inaptos, manobra nas coxias para safar-se de acusações de improbidade e outras mais graves com conchavos, chicanas protelatórias, afagos oportunistas hipócritas, e para intimidar ou silenciar opositores e desafetos. Cada dia mais amedrontado, acuado e isolado, ajoelha servil e rendido, fatiando e vendendo o país a uma máfia de larápios parasitas, enquanto o país assiste, incrédulo, sem saída. 


Parafraseando o poeta, mas sem fazer poesia, os generais que aqui comandam não comandam como lá, porque aqui não comandam nada. Omissos, pífios, sem apreço pela cultura, polidez e reflexão, esbanjam arrogância. Faltam-lhes a sobriedade e a envergadura que a patente exige. Se tivessem atitude, se honrassem a farda que vestem e a Constituição que juraram defender e obedecer, jamais seriam coniventes com a barbárie institucional deflagrada neste país. Em nome da ética, jamais deveriam aceitar qualquer cargo público. Erraram feio na aposta de um governo sereno sustentado pela tropa de retaguarda não ideologizada e apolítica como “guardiã da ordem”. Ao contrário, no entanto, são os primeiros a profanarem a Carta Magna, marchando sobre ela com seus coturnos ao apoiarem atos contra a democracia e os demais Poderes. Se não querem cumplicidade com a baderna, que voltem para a caserna. O que vai ser? Não podem ficar com evasivas, ameaças e insinuações ambíguas, a menos que estejam cortejando uma intervenção no Estado. Estão? E o país adoece, refém do medo.

Seria honroso, e inteligente, ao menos para salvaguardar o respeito e a dignidade, que se declarassem demissionários das funções para as quais nunca estiveram capacitados, como demonstram os sucessivos erros, pronunciamentos e atos contraditórios. Seria recomendável que se mirassem no exemplo da maior autoridade militar americana, Chefe do Estado-Maior, General Mark Milley, que se desculpou publicamente por ter participado de ato político ao lado do Presidente Trump:
O resultado da minha foto na Praça Lafayette foi visto por todos vocês. Aquilo provocou um debate nacional sobre o papel das Forças Armadas na sociedade civil. Eu não deveria estar lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna. Como oficial da ativa uniformizado, foi um erro com o qual aprendi. Devemos defender o princípio de um Exército apolítico, que está tão profundamente enraizado na própria essência de nossa república. Isso leva tempo, trabalho e esforço, mas pode ser a coisa mais importante que cada um de nós faz a cada dia.
Qual parte do discurso nossos senhores generais não entenderam? A História nos conta com fartura: sempre que militar ascende ao poder, boa coisa não é. Governo armado fede a naftalina, pólvora e enxofre em permanente tensão. Por que seria diferente aqui e agora? Não adianta escamotear a realidade com pajelança, falácias e desmentidos, pois os mortos estão aí em número crescente dia após dia. Não adianta subtrair, eles continuam a somar. Morto não se esconde, se enterra, e eles chegam hoje a mais de 50 mil em três meses de uma quarentena desdenhada pela população e desincentivada pelo governo. O país caminha para o topo da mortandade e vai continuar padecendo por culpa exclusivamente sua.


Não adianta querer dividir a nação com uma facada, ela - a nação - é muito maior que a carne que ela - a facada - rasgou. Não adianta arreganhar os dentes sujos de sangue e vociferar e prevaricar, o que manda é a rédea curta, e quando ela refreia a demanda sistemática de medidas arbitrárias sem amparo legal, transgressões tão orgânicas quanto a burrice é visceral, o rito é enfiar o rabo entre as pernas, baixar as orelhas e obedecer, sem espernear. Nunca houve precedente de uma camarilha de figuras tão desprezíveis em torno de uma única mesa fingindo governar, espancando a língua pátria com vocabulário chulo e ofensivo, sua identidade fundadora, sua estética de comunicação.


É um governo aquartelado em sua bolha de mentiras, vícios, fantasias, imundície, tramoias e manipulações, inteiramente avesso, surdo e cego à realidade externa. Quando ela bate à porta, quem atende é o “ministério da verdade”, que engendra uma alquimia estranha de modo a encaixar os fatos à sua lógica, sua versão, sua, recriando uma narrativa conforme a realidade conveniente, ficcional - autoverdade. E o país, traumatizado, sitiado, tenta se equilibrar numa gangorra escorregadia ao enfrentar uma doença pestilenta fora de controle, de um lado, e de outro, lidar com a hemorragia moral de um governo com fratura exposta necrosada. Como se não bastasse, ainda tem que esperar pelo dia seguinte na mais completa escuridão, sem luz em túnel algum. É no que dá governar em causa própria, nem a chama de uma vela afasta os fantasmas que a cada fato novo que surge no horizonte assombram um governo agonizante.

Este é mesmo um país singular, mas não como gostaríamos que fosse. É o único que, em meio a uma pandemia, não tem um Ministério da Saúde nem um ministro de verdade; o arremedo de ministro que lá está lá não está, nem médico é, desceu de paraquedas no cargo, paraquedista que é, mas errou o salto e caiu num buraco. Seu antecessor, que médico era, não sabia nem pronunciar nome de remédio. Resumo da ópera-bufa, uma política de saúde pública relapsa, num descaso imperdoável.

Os titulares das demais pastas e órgãos, militares e civis, com raríssimas exceções não estão qualificados para os cargos que ocupam. A troca de nomes não cessa, por óbvio, e o novo indicado é sempre uma reencarnação em vida, piorada, do substituído. Destemperados, amadores, de intelecto raso e mente perturbada, confusos, desconexos, iracundos, apedeutas sem o menor trato com a compostura e a educação. A bandalheira é geral e o povo que se dane. 

Temos um governo civil militarizado, onde general cinco estrelas é ordenança de oficial inferior, escumalho da política, expulso por insubordinação, acusado de atentado terrorista, punido com prisão disciplinar. País singular é assim. Um antigoverno doente que comete crime de lesa-humanidade ao instituir protocolo para uso de droga que sabidamente não cura e pode matar. Disléxico, sob o pretexto de “salvar a economia”, conclama seu povo a voltar às ruas para trabalhar, consumir, aglomerar, contrariando o que o resto do mundo fez, e quem não fez paga um alto preço. E o povo sai massivo, manada obediente que é, e a curva da morte volta a subir.

Para encerrar, temos um governante celerado que libera armas pesadas e munição à vontade para que todos se defendam, mesmerizado e mimetizando os mais insanos reinados, impérios, tiranias e dinastias que o mundo já viu. Truculento, falastrão, alardeia “bala na agulha” com tambor vazio; um vice que se compraz com tanques e canhões, um hediondo “gabinete do ódio” e, o mais bizarro, um trio de de alucinados “co-presidentes” que atua numa corte paralela dizendo quem entra e quem sai do “Palácio”. Um acinte inaceitável. Um prédio que abriga um ministério da verdade, um gabinete do ódio, um escritório do crime e um puxadinho presidencial, tem rachadinhas na estrutura e não vai resistir muito tempo, uma hora desmorona.

Por tudo isso e pelo que mais não foi dito, é preocupante saber que estamos, de fato, à mercê de um maníaco, desequilibrado, amoral, grosseiro, imaturo, vulgar e autoritário. Arquiteto da destruição, ostenta o signo do ódio, articula o retrocesso, faz apologia dos estados totalitários e ditatoriais, instiga compulsivamente o descumprimento das regras institucionais e constitucionais e fomenta a desobediência civil, julgando-se blindado e inimputável. Não está e não é, e as consequências estão a caminho. Quanto mais no fundo do poço, mais esticada a corda. Parafraseando outro poeta, no meio do caminho há um abismo, há um abismo no meio do caminho, e não se dança à beira do abismo na rota do furacão. O retrato deste país, hoje, mostra que ele é mesmo tão singular que, desterrado de si mesmo, tornou-se insular: a ilha dos mortos.

quarta-feira, 17 de junho de 2020



VITRINE DE EGOS


O que intensifica o comportamento antissocial? Foi essa a questão deixada em aberto no fim do post anterior, e a resposta é escancaradamente óbvia, dada pela quase totalidade dos autores, cientistas, analistas e filósofos: exibicionismo, com suas equivalentes narcisismo, ostentação, egolatria, autopromoção. cabotinismo, jactância, vaidade, etc. Dito isso, ao buscar uma arte para ilustrar o texto, consultei o Google para “exibicionismo” e o resultado foi deplorável: 95% de nu frontal feminino, seios e glúteos. É a degradação moral e depreciação estética da mulher por ela mesma.

O exibicionismo não é apenas do corpo, é também de opiniões, ideias, discursos, talento, trabalhos e arte, até um ponto de razoável exposição. Para além desse ponto, entram em cena aspectos psicológicos, psiquiátricos, educacionais, psicanalíticos e legais. Cresceu vertiginosamente a necessidade do indivíduo de se fazer notar, ou continuará sendo um mísero ninguém, um zero, imerso na insignificância e no esquecimento.

A era da comunicação digital dos últimos anos provocou uma explosão de super exposição imagética do sujeito e de todo tipo de verbalização de seu pensamento. Umberto Eco já preconizava que a internet daria voz e vez aos idiotas, e eles se multiplicam a uma velocidade viral. O indivíduo em todos os lugares ao mesmo tempo, onipresente, para ser visto, ouvido e admirado à exaustão numa autovalorização do ego. Exibicionismo, protagonismo, causar, acontecer, ser centro das atenções, ter seguidores e likes preenchem seu vazio. Não me ocupei em fazer levantamento sobre o material útil veiculado no Facebook, por exemplo, mas numa rápida mirada constatei que um número irrisório de postagens pode ser aproveitado. O mesmo vale para as demais plataformas, e quanto mais privativo o meio, mais censurável, mais impublicável será o conteúdo.

De todo modo, a questão é que, antes do surgimento das mídias digitais, o homem só expunha suas ideias entre quatro paredes, nas rodas de bar, reuniões, festas, no clube, em pequenos grupos. Agora, ele tem um canal poderosíssimo para fazer ecoar a sua voz, encontrar parceiros ideológicos, compartilhar subjetividades, neuroses, doutrinas, psicoses, ódios e ressentimentos, provocar, ofender, instigar, caluniar e ameaçar. A atividade em grupo fortalece o ser humano, lhe dá fôlego, inspiração, abrigo, ressonância, estímulos para propagandear e difundir seus objetivos, sejam quais forem, inclusive os ilícitos e os perigosos. No mercado há comprador para tudo, no virtual, então, não há fronteiras.

É importante acrescentar outros aspectos relevantes no excesso de “confiança” na rede. A difusão de fake news, desinformação, bullying e difamação, entre outros sortilégios, geralmente originados de falsos perfis, induzem a erros e danos irreparáveis. Todo perfil falso é esconderijo e antro de covardes. Como (ainda) não há normatização ou “senso ético” sobre o uso das redes, nem um sistema legal de segurança eficiente, a vigilância e a restrição ficam por conta das próprias plataformas, que bloqueiam postagens consideradas ofensivas, transgressoras e inapropriadas. Na pirâmide social, ninguém está imune à condenação, seja figura pública ou anônima, presidente ou servente. Nada impede, entretanto, a livre circulação de material pernicioso na deep web, o submundo sem lei da internet.

Mensagens ilegais estão sendo monitoradas e impedidas de circular: pedofilia, pornografia, terrorismo, incitação à violência, ameaça a instituições públicas ou privadas, à pessoa física ou jurídica, violação das leis de segurança nacional, intimidação, racismo, extremismo, truculência, intolerância, preconceito ou ofensa étnica, de credo ou de gênero e outras. Estas é que são verdadeiras “bombas de defeito moral”. Advogados, juristas, criminalistas, constitucionalistas, educadores, jornalistas, profissionais de mídia e demais instituições estão empenhadas em estabelecer diretrizes reguladoras para a liberdade de expressão nas mídias digitais, de modo a evitar medidas judiciais severas. Há uma longa e dura batalha pela frente, porque opera uma indústria muito bem montada de falsas notícias, células e facções criminosas com patrocínio suspeito, que insuflam o ódio, pregam a violência doutrinando a massa de modo astuto e persuasivo. Não sei se posso evocar o Zeitgeist - o espírito de uma época - como justificativa para o que estamos vivendo. E por que mão?

Porque o tempo está frenético, dando a impressão de “encolher”, escoar pelos dedos; o sujeito almoça jantando, dorme na segunda quando acorda já é sexta, beija sua mulher sem saber se está saindo ou chegando. O tempo todo conectado no mundo, o tempo todo desconectado de si. O tempo não tem mais tempo nem para ter um “espírito” que o defina. Essa “imaterialidade” ou “virtualidade” das relações humanas, sociais, econômicas e políticas são sintomas cristalinos de que mundo perdeu sua concretude estrutural, e a sedução por um projeto futuro de longo prazo deixou de ser verossímil, esfumou mais rápido que o giro dos ponteiros. Estamos na transição acelerada entre dois modelos de mundo: o que está deixando de ser e o que ainda não é e não sabemos como será. A pandemia não é nem rascunho dessa transformação. Os valores pétreos de um serão pó na visão do que está por vir. Daí o fim das utopias e o desencantamento do mundo, promovidos por um angustiante sentimento de insegurança, impotência, vulnerabilidade e medo, onde a ação reativa é o ataque, de preferência em grupo e sorrateiro.

Eu arriscaria dizer que o espírito que o tempo não tem é o do senso crítico, da ética coletiva, da noção real de cidadania, do valor moral de responsabilidade. Sem estes princípios, fica realmente difícil conduzir-se com decência, dentro ou fora das redes sociais. O que se publica revela o que se é, e se o que se vê em grande medida é matéria banal, nociva, falsa e inútil é porque a fonte também o é. Se o que se vê são selfies e sorrisos esterilizados e estetizados, é porque se procura pelo rosto perdido, e quem não tem um rosto não tem olhos para se ver, é um ego cego, facilmente manobrável a ser levado para onde quer que se queira levá-lo.