Continuando o assunto da semana passada, caso você não tenha lido recomendo que o faça, ou vai pegar o trem em movimento sem saber para onde está indo. Recapitulando, alteridade é assunto de gente grande e cabeçuda. "Cabeçuda", na minha língua, é quem tem grande capacidade de reflexão e inteligência para chegar à estratosfera do pensamento. Discutir alteridade é para poucos.
O título acima resume o problema. Como ser o que não sou se
ainda nem sei quem sou? Como ser o que nunca fui, se nunca fui o que penso ser?
Entre mim e o outro há um silêncio e entre todos os outros, todos os
silêncios. Esforçamo-nos para compreender essa linguagem silente, mas estamos na pré-história do conhecimento de nós como primatas engravatados. Nada
sabemos sobre nós, conquanto alguns creem saber tudo sobre os outros, e você sabe de que "outros" estou falando.
Para enfrentar essa longa caminhada em busca de uma identidade, alguns balizadores são fundamentais: ética, formação humanista, autocrítica, educação, responsabilidade. Conforme esclarece Abbagnano, alteridade é "Ser outro, pôr-se ou constituir-se como outro". Quem sabe a máxima socrática não poderia ser reescrita para Conhece o outro para conhecer a ti mesmo. Que identidade é essa, qual é nosso Rosto? Temos um?
O outro vai além de simplesmente refletir a nossa imagem. Ele é nosso algoz porque reflete o que julgamos ver ou imaginamos ser. Rimbaud escreveu: "Eu é um outro", um efeito boomerang: A ideia nuclear da alteridade é nos colocar como "outro" e trazê-lo de volta a nós. Somos essencialmente seres relacionais dentro de um solipsismo multitudinário. Nota de rodapé: o selfie é o exemplo bem atual de busca da identidade, quando "saio" de mim para mostrar-me ao(s) outro(s) e a mim mesmo, imagem que supostamente é diferente daquela que vejo no espelho.
É na relação com o mundo, com a natureza, as coisas e as pessoas que nos fazemos, daí surgindo nosso Eu e nossa identificação com o mundo, a natureza, as coisas e as pessoas. E é dessa relação tensional, inclusive, que desenvolvemos as artes, as religiões, a imaginação e as crenças como formas de se integrar, interagir, entender e se fazer entender. Lacan elaborou suas teorias como base do desenvolvimento da função do Eu no denso trabalho "Estádio do Espelho". Em certo momento, após a fase inicial de contato com esse outro corpo, ainda não reconhecido como seu, a criança adquire a sensação de totalidade e unidade. Antes disso, ela possuía uma sensação de fragmentação, de despedaçamento, de corpo desgovernado. O espelho dá a ilusão de unidade. Os itálicos encontram sua correspondência a seguir.
Ao admitirmos nossa infância e solidão cósmicas - e elas são reais, é possível traçar paralelos com o estudo lacaniano: a presença do alienígena dá ao homem a mesma ilusória sensação de totalidade e unidade, dissipa sua desorientação e lhe fornece um registro identitário. Outro, em latim, é alienus. Alienígena - o "de fora" ou qualquer outro fora da dimensão humana - deuses, anjos, demônios, espíritos. Bizarros, anômalos, burlescos, habitantes do reino da fantasia, do imaginário, dos mitos e dos delírios, por isso mesmo tão cativantes. Como o homem é marcado pela incompletude, insuficiência, fragmentação e descaracterização de si próprio, sente que algo lhe falta, e crê que a 'alienterapia' lhe restituirá o ser integral e mitigará a dor provocada pela presença desse vazio.
Depois dessa resumida e complexa reflexão, você ainda acha que o fenômeno Óvni pode ser reduzido à ideia vulgar de naves e seres extraterrestres? Não tenho nenhum escrúpulo em afirmar que só mentalidades medievais se ancoram em um raciocínio tão raso, pobre, rançoso. Alteridade é apenas um dos requintados pratos de um fausto banquete proporcionado pelo estudo sério do fenômeno Óvni para pessoas de refinado saber, rejeitado pelos acometidos de inapetência ou abstinência cultural.
Emmanuel Lévinas, O Humanismo do Outro Homem. Vozes, 1993.
Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007.
Antonio Quinet. Os Outros em Lacan. Zahar, 2012.
Querido Carlos,
ResponderExcluirMais uma vez, tenho a dizer que seu texto é mesmo impecável, cada dia mais sofisticado e contumaz, explicitando com maestria suas ideias e suas emoções. Confesso, porém, que me encontro entre as mentalidades medievais citadas no artigo, figura quixotesca que sou, defendendo com humildade meu olhar sobre o mistério quando contemplo o céu que me arrebata com o espetáculo que meus olhos teimam em fitar dia após dia, noite pós noite, sem nunca decifrá-lo. O universo me intriga e me faz pensar em minha insignificância, me remetendo à frase que se atribui ao filósofo grego: “Só sei que nada sei...”. O fato é que somos muitos... Afinal, estamos em mutação, quando abertos a novas histórias, a novos conhecimentos, a novas descobertas. Reconheço o movimento constante dessa roda que é a vida, a história, a ciência, como o próprio cosmos, que supomos harmonia, mas se principia no caos... Triste pressupor que em tão vasto horizonte, nossa Terra seja a única a pensar...