A ignorância não tem culpa. Será que não? Essa frase da semana passada me fez pensar muito a respeito. Até que ponto realmente ela não tem culpa e não tem culpa de quê? Em primeiro lugar, quero deixar claro que “ignorância” a que me refiro - e também a frase - equivale a desconhecimento, falta de informação, de saber, inocência, e não no sentido de pejorativo de burrice, estupidez, cretinice. Todos nós temos conhecimento em muitas coisas, mas somos totalmente ignorantes em muito mais. Como diria Karl Popper, “O conhecimento sobre nossa ignorância é a principal fonte da nossa ignorância”. Sei que o título do post é intrigante, como assim, “ignorância fabricada”? Vem comigo.
Saiba que há uma espécie de ignorância nefasta, venenosa, covarde e com toda a culpa no cartório. Embora sempre praticada, somente nos últimos anos tem seio
estudada com mais interesse e com a devida importância. Trata-se da “ignorância estratégica”, atitude que assumiu protagonismo em tempos de fake news, neo ou pós-verdade, o que, de certa forma, não é nenhuma novidade, só ganharam mais visibilidade. O foco inicial dos estudiosos, em especial da socióloga canadense Linsey McGoey, que cunhou a expressão, foi a Saúde no Reino Undo, mas se estendeu rapidamente para economia, educação, direito, política, ciência, mídia, tecnologia, em nível global. A “ignorância estratégica” é viral e está fora de controle. Nem preciso entrar na discussão sobre a manipulação da informação - ou da ignorância - via redes sociais e mídia, temas abordados no estudo, de tão óbvio, nem da idiotizante cultura de massa e do não menos deletério senso comum, que solapam a razão. Se ignorância agrupa, inteligência isola. Se saber não tem preço, ignorar custa caro.
Em linhas gerais, a ignorância estratégica consiste na habilidade em explorar a falta de conhecimento público em busca de poder, mas vai muito além disso. Em sua recém-lançada obra, McGoey transpõe as fronteiras da indústria farmacêutica, sua primeira investida, e revela como a ignorância é arquitetada e manipulada por diferentes grupos para os mais diversos fins - políticos, jurídicos, midiáticos e nas mais influentes teorias econômicas. No coração da prática, a mentira. A mentira pertence a qualquer homem, a verdade, essa, a um só. Enquanto a mentira paira ruidosa sobre nossas cabeças ao alcance dos olhos, a verdade repousa em silêncio sob nossos pés à espera de ser encontrada pela nossa consciência. Se não for por ela, o tempo se encarrega de trazê-la à luz. Diz a autora:
Há hierarquias de ignorância e, em geral, a ignorância de pessoas simples é a mais criticada, mas eu argumento que essa hierarquia precisa ser invertida, porque é justamente entre as pessoas com maior poder que a ignorância se torna mais valiosa e com os efeitos políticos mais devastadores. Apesar de a ignorância ser universal, diferentes grupos sociais a usam de maneiras específicas, e as pessoas com mais poder são as que mais lucram com a exploração deliberada de incertezas.
O Dicionário Oxford, em 2016, definiu a pós-verdade como “Tudo o que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais.” Agora leia com atenção o que diz McGoey: “Se você olhar para a história moderna, verá vários exemplos de pessoas tentando gerar fatos alternativos ou dizendo que a realidade de alguém não é verdade para ganhar vantagens políticas. Não há nada novo na tentativa de manipular as fronteiras entre o que é real e o que não é”. Claro, o sublinhado é meu, você sabe bem do que e de quem estou falando.
Os estudos indicam ainda que há três tipos de homo ignorans: o ignorante inocente, pueril, singelo, sem instrução, que não tem ideia do que desconhece; o que sabe de que não sabe tudo, que pode ser entendido, em algum momento, como ignorância tática, ou voluntária, conveniente conforme as circunstâncias: “Não sei de nada”. E o terceiro tipo, que fabrica incertezas e dúvidas ou abusa da falta de conhecimento público intencionalmente. É aqui que mora o perigo, é aqui que o estudo - Agnotologia - ajusta sua mira, na produção de ignorância. Agnotologia é um neologismo criado em 2005 por Robert Proctor, historiador da Stanford University, aplicado a personagens que escondem ou desvirtuam informações em benefício próprio, e que estão em qualquer degrau da escala social e em qualquer função - governantes, juízes, empresários, autoridades, profissionais liberais, qualquer um. Pela gravidade dos danos, tal conduta é vista como criminosa, típica de canalhas e velhacos. Quero lembrar que, em Malebouge, a concepção infernal de Dante é democraticamente impiedosa, onde são despejados os mentirosos, os prevaricadores, os falsários: No décimo e último fosso, o mais profundo, sombrio, pestilento e fétido, para que apodreçam dementes cobertos de flagelos e dores lancinantes. Atenção novamente ao que diz a socióloga:
Muitas vezes as pessoas reclamam da falta de conhecimento sobre certos fatos, mas essa ideia de déficit cognitivo é limitada porque, geralmente, coloca a culpa da ignorância no público em geral, ou em um sistema de educação ou na falta de investimento nela, mas ainda não se estuda com profundidade a ideia de que, mesmo que você tenha acesso a toda informação, ainda assim estará social e institucionalmente numa posição de modo que não seja vantajoso buscar conhecimento.
A doutora lidera uma equipe de acadêmicos que estuda a temática nas ciências sociais, econômicas e criminais no que foi denominado Estudos da Ignorância. Em 2015 foi publicado o primeiro manual internacional sobre a matéria. De acordo com a equipe, a busca pelo conhecimento foi teorizada como a essência do ser humano, mas, apesar de parecer óbvio que as pessoas queiram ignorar fatos, a ignorância nunca foi tão estudada quanto a geração de conhecimento. A ignorância não tem medida e isso explica em parte seu poder. É terra de ninguém, todos falam o que querem e escutam só o que querem. E isso é um desafio enorme para os cientistas sociais porque eles fazem mapeamentos, anotações, estabelecem parâmetros para entender o tamanho do fenômeno, e a ignorância, por sua natureza, é o não saber.
A ignorância planejada coloca a todos no patamar zero de racionalidade, utilizando-se da força da mídia em todas as plataformas com alcance planetário imediato, agrupando as pessoas por contágio em nichos próprios. A violência da linguagem é tão maléfica quanto a física, se não pior, porque aquela conduz a esta. Toda ignorância, em qualquer nível, coloca a fantasia no lugar da realidade. A ignorância, planejada ou não, cerceia, inibe ou mesmo desestimula a busca pelo conhecimento, gera crenças, preconceitos, superstições, paranoias e distorções e, em certo sentido, embrutece o ser e o aproxima da animalidade - seja como cordeiro ou como leão. Percebeu como este raciocínio dialoga com a réplica feita no post O ser em desconstrução? E também estabelece ligação com o texto anterior - Ferida que não fecha, sangra?
Paradoxalmente, a ignorância agrupa mas não une - o céu é o mesmo mas os horizontes não. Se é que há um, nessas circunstâncias. Em última análise, e essa é uma verdade perversa, devo dizer, o ignorante doutrinado não é, ele apenas existe, incondicional e melancolicamente, como o cordeiro ou o leão. Não havendo percepção da realidade, não há nada, só espaço e tempo, e nem eles são percebidos como tais. Pouca diferença há entre um ignoto doutrinado e seu papagaio de estimação, ambos apenas repetem o que lhes é ensinado. Enfim, cada um faz da sua vida o que bem entender e do jeito que lhe convém, afinal, ignorância não é apenas uma questão de informação, mas, antes, de formação.
Para terminar, trago de volta perguntas feitas semanas atrás: A quem interessa disseminar ignorância se ela ia é autodestruição de um povo? A quem interessa ocultar a verdade e produzir mentiras? A quem interessa o caos, o colapso, o abismo? O antídoto está na informação, no saber, no discernimento, questionamento, reflexão e percepção do mundo real. Perdoe a imodéstia, mas tudo isso você tem aqui mesmo o tempo todo. Uma última palavra, em tom de sugestão: Que tal começar a investir no conhecimento planejado? As futuras gerações agradecem.
A ignorância planejada coloca a todos no patamar zero de racionalidade, utilizando-se da força da mídia em todas as plataformas com alcance planetário imediato, agrupando as pessoas por contágio em nichos próprios. A violência da linguagem é tão maléfica quanto a física, se não pior, porque aquela conduz a esta. Toda ignorância, em qualquer nível, coloca a fantasia no lugar da realidade. A ignorância, planejada ou não, cerceia, inibe ou mesmo desestimula a busca pelo conhecimento, gera crenças, preconceitos, superstições, paranoias e distorções e, em certo sentido, embrutece o ser e o aproxima da animalidade - seja como cordeiro ou como leão. Percebeu como este raciocínio dialoga com a réplica feita no post O ser em desconstrução? E também estabelece ligação com o texto anterior - Ferida que não fecha, sangra?
Paradoxalmente, a ignorância agrupa mas não une - o céu é o mesmo mas os horizontes não. Se é que há um, nessas circunstâncias. Em última análise, e essa é uma verdade perversa, devo dizer, o ignorante doutrinado não é, ele apenas existe, incondicional e melancolicamente, como o cordeiro ou o leão. Não havendo percepção da realidade, não há nada, só espaço e tempo, e nem eles são percebidos como tais. Pouca diferença há entre um ignoto doutrinado e seu papagaio de estimação, ambos apenas repetem o que lhes é ensinado. Enfim, cada um faz da sua vida o que bem entender e do jeito que lhe convém, afinal, ignorância não é apenas uma questão de informação, mas, antes, de formação.
Para terminar, trago de volta perguntas feitas semanas atrás: A quem interessa disseminar ignorância se ela ia é autodestruição de um povo? A quem interessa ocultar a verdade e produzir mentiras? A quem interessa o caos, o colapso, o abismo? O antídoto está na informação, no saber, no discernimento, questionamento, reflexão e percepção do mundo real. Perdoe a imodéstia, mas tudo isso você tem aqui mesmo o tempo todo. Uma última palavra, em tom de sugestão: Que tal começar a investir no conhecimento planejado? As futuras gerações agradecem.
Agnotologia: Estudo das políticas de produção de ignorância.
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Linsey McGoey, The Unknowers: How Strategic Ignorance Rules the world. Zed Books, 2019.
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