Ainda no espírito dos posts anteriores, hoje venho com um outro olhar diante do cenário de incertezas que estamos atravessando. Será o último desta série se nenhum fato novo pedir continuidade. Você poderá até não
concordar, achar que é tudo uma grande farsa, histeria, exagero, mas se ao menos parar um momento para pensar o texto, ele já
terá cumprido sua finalidade. Estou falando de um artigo que faz parte da coleção Janelas para o
Mundo, organizada pelo jornal alemão Frankfurter Algemeine Zeitung. Vários escritores e filósofos de todo o mundo
estão escrevendo sobre o que veem das suas janelas durante o período de isolamento
motivado pela pandemia. Os artigos são veiculados no Corriere della Sera da Itália, Politiken, da Dinamarca, Observador,de Portugal e Die Presse, Áustria. O presente autor é o escritor e acadêmico italiano Antonio Scurati, de
Milão, onde vive e está isolado. “O fim de uma era” é poético, pungente, verdadeiro e perturbador*. Um texto indispensável. Não me parece que ele integre uma teia maluca de conspiradores e paranoicos.
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Como poso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela
janela, estou trabalhando? - perguntava-se Joseph Conrad no início do século
passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como explicar à minha filha que, quando
olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não a
conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade
desfrutado na história da humanidade. Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída,
rica e brilhante cidade da Itália, uma das mais desejadas do mundo, a cidade da
moda, do design, da Expo.
A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e
o happy hour , e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a
capital da região que, sozinha, conta 30 mil contágios e três mil mortos.* Uma
taxa de mortalidade de 10%, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos
hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral
como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As sirenes das
ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias; as nossas noites são
atormentadas por homens adultos que choramingam no sono: “O que é, sente-se
bem?”; “Nada, não é nada, volte a dormir”.
Milhares de amigos, parentes e conhecidos seus tossem até cuspir
sangue, sozinhos, fora de todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas
camas dos seus quartos decorados por arquitetos de renome. Se, neste momento,
olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável
diligência por imigrantes cingaleses¹. Até ontem, era uma singular anomalia
neste bairro semi-central e, ao seu modo, elegante, uma nota dissonante. Hoje é
um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrines
despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter suas
marcas preferidas de farelo. Ficam, apoiados pela disciplina do desânimo, a um
metro de distância uns dos outros, ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com
máscaras improvisadas feitas de pedaços de tecido com os quais, até ontem,
protegiam as plantas exóticas do seu roof garden , gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole
dos restos de uma era acabada. Vejo estes homens e estas mulheres tristes,
incongruentes consigo mesmas. Olho-os, não tenho nenhuma intenção de os
diminuir ou de troçar deles.
São homens e mulheres adultos, contudo por cima das máscaras
mostram o olhar assustado das crianças carentes. Chegaram totalmente
despreparados ao seu encontro com a história e, no entanto, precisamente por
este motivo, são homens e mulheres corajosos. Fizeram parte do pedaço mais
abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e bem cuidado da Humanidade
a pisar a face da Terra e, agora, na casa dos cinquenta, estão na fila do pão. A sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da
irrealidade televisiva. Tinham 20 anos quando assistiram, a partir das suas
salas de estar, à primeira guerra da história humana direto na televisão, 30
quando foram alvejados através dos televisores pelo terror midiático, 40 quando
a odisseia dos condenados da terra aterrou nas praias das suas férias. Todos
encontros fatídicos que não poderiam perder. As grandes cenas da sua existência
foram consumidas em eventos midiáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas
praias dos migrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à
televisão. E agora estão na fila do pão.
A sua infância foi uma mangá japonesa, a sua juventude uma festa de piscina - lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa -, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões no outlet, o sublime do spa. Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca uma questão sobre o seu lugar no universo. E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdômen proeminente e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão.
A sua infância foi uma mangá japonesa, a sua juventude uma festa de piscina - lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa -, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões no outlet, o sublime do spa. Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca uma questão sobre o seu lugar no universo. E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdômen proeminente e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão.
Turistas compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e
agora a sua casa marca para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas
interiores e agora o drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma
pandemia global; têm uma casa na praia e um iphone de última geração, mas agora
estão na fila do pão; tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas
vidas para levar o seu poodle a mijar.
Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os
enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto a curva do contágio
cresce exponencialmente, enquanto sustenho a respiração para não inalar o ar do
tempo. Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da
história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente
quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro.
Porém, terão de o fazer, fá-lo-ão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo
que têm sido obrigados a experienciar nestes dias: um mundo que se questiona
sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável,
sobre como cuidar de si e dos outros. Uma era acabou, outra começará. Amanhã.
Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: resiste, Milão! E
Milão resiste.
Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos
dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes
repentinamente envelhecidos: como são grandes e patéticos com os seus tênis de
corrida e as suas máscaras cirúrgicas. Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me
deles. Dentro de alguns segundos estarei na fila junto deles.
* Publicado em 23 de março de 2020. U mês depois, a Itália contabiliza mais de 25 mil mortos.
¹ Do Sri Lanka, também conhecido como Ceilão.
E num espirro, seu Reis, e pela primeira vez na história, sumiu-se da mídia a violência em todas as suas formas. As almas se mandaram para as arquibancadas para assistir ao desfile solitário e deveras adereçado do famigerado Covid19 mark II.
ResponderExcluirAbraço.