Em lugar de ter esperança, tenha coragem
No post Você não precisa de
muletas... uma das perguntas era se você é do tipo que “Encara o mundo de frente com coragem e
soberania, ou se refugia medrosamente nas sombras de uma delirante e falsa
espiritualidade?” Pois um leitor assumiu o refúgio dizendo textualmente: Torço para que uma força desconhecida
reverta uma situação desfavorável. Com certeza vou botar a mão num
vespeiro, e ainda que você não concorde comigo, pensar não dói.
O leitor recorreu explicitamente à “transferência de responsabilidade”,
delegando a poderes sobrenaturais a
tarefa de resolver seus problemas, ou “reverter uma situação
desfavorável”. Em outras palavras, ele
tem esperança. Ter esperança é ficar
inerte, é sentar e esperar acontecer alguma coisa que atenda seus desejos, suas
carências ou necessidades. A isso chamamos milagre, fato extraordinário, maravilhoso, 'sinal de uma vontade divina', diz Abbagnano. A raiz etimológica vai além de miracolo, que deriva de mirare
- espelho, ou “encantar-se consigo próprio”. A divindade sou eu?. Existe algo mais corrosivo para o
espírito humano?
O que o nosso caro leitor quer, transferindo um encargo seu para
outrem, caracteriza, para usar uma expressão da moda, “desvio de finalidade”,
ou seja, é o mesmo que usar placebo para tratar fígado necrosado. A bem da
verdade, esse desvio atinge todos os estratos culturais, da fé no prêmio da
loteria ao torcedor que paga para o santo se o goleiro defender o pênalti
fatal; do político que cumpre promessa caso eleito ao estudante que sobe de joelhos
a escadaria da catedral ao passar no vestibular. Existe algo mais apalermante
para o espírito humano?
Que me perdoem o leitor e todos aqueles que pensem como ele, mas não se
trata de discutir religião ou ateísmo, mas paixões. Sim, paixões, do latim passio – passividade, sofrimento,
suportar a dor. Ter esperança é exatamente isso - suportar a dor e o sofrimento
passivamente, esperando que uma força superior venha mitigar o infortúnio. Em
sentido filosófico, ainda que rude, ter esperança é indicativo de debilidade,
ignorância, tristeza, insegurança, medo. Em sentido prático, esperança é um mecanismo de defesa contra a realidade. Existe algo que enluta o mais espírito
humano?
Como psicanalista, filósofo e sociólogo, Erich Fromm era profundo
estudioso da alma, e não fazia rodeios na hora de aconselhar. Para ele, o
problema da religião não se resume simplesmente a “Deus”, mas, principalmente,
ao homem, à relação consigo mesmo e com os outros. Ele condena a idolatria, que
conduz ao estado de alienação, à prostração e ao aniquilamento da individualidade.
Existe algo mais ignóbil para o espírito humano?
O que é mais digno: lutar com suas próprias forças e coragem em busca do
que se quer, ou “sentar e esperar” que um poder
invisível faça o serviço? Fromm propõe uma longa reflexão a respeito, apontando
as diferenças entre a religião autoritária e a humanista. Naquela, o homem é
submisso, fraco, penitente, insignificante, vazio e obediente a um poder
transcendente. Nas palavras de Calvino “(...) humildade é a submissão
sistemática de quem se sente dominado por uma profunda certeza de sua miséria.”
Existe algo mais empobrecedor para o espírito humano?
Na filosofia humanista, ao contrário, quem está no centro e no poder é
o homem, para, com a força da razão, entender a si e o seu lugar no universo. O
pleno desenvolvimento da razão está umbilicalmente relacionado à liberdade e à
independência, estimulando o indivíduo a ouvir a voz madura e sábia de sua
consciência. Não é tarefa fácil, é para fortes. É o que Nietzsche nos impõe.
Minha recomendação, bem mais modesta, é não deixar a vida em estado de
suspensão, desligar o piloto automático. Não esperar, não adormecer, não
negociar, não fugir. Trabalhar, amar, lutar. Não existe nutriente melhor para o
espírito humano.
Nota:
“Espírito humano” não é redundância, é pleonasmo legítimo para conferir intensidade
à expressão.
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FROMM, E. Psicanálise e Religião. Ibero Americano. 1966.
DURAND, G. O Imaginário. Difel. 2010.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão. L&PM. 2010.
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Martins
Fontes. 1992.
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