Há um cansaço da
inteligência abstrata,
e é o mais
horroroso dos cansaços.
Não pesa como o
cansaço do corpo,
nem inquieta como
o cansaço do saber.
É um peso da
consciência do mundo,
um não poder
respirar da alma.
Bernardo Soares
(heterônimo de Fernando Pessoa)
A trilogia sobre opiniões e crenças terminou, é certo, mas não poderia deixar de trazer, uma vez mais, em continuidade, a voz de Freud sobre a questão, de tão fundamental e necessária. Ele dissecou de tal forma as entranhas psíquicas do ser que seu repertório é imenso, e seu estudo sobre religião e sistema de crenças não envelhece nunca. Para ele, a religião não é detentora do monopólio das construções ilusórias do homem, mas contribui majoritariamente para manter as crenças ativas. Segundo Morano, “O segredo de sua força [religião], como no sonho, reside exclusivamente na força do desejo da qual derivam.” Lembro sempre que os sublinhados são destaques meus.
Do ponto de vista freudiano, a crença religiosa, ou as crenças de modo geral, no ponto em que projeta desejos ao mundo exterior, o mundo real, e gera ilusões contrárias a essa realidade, transforma-se numa demência de caráter alucinatório. Orar torna-se um solilóquio, um diálogo de cegos em que o “transcendente” é o próprio sujeito, encarcerado em seus desejos mais temidos e ocultos. A caracterização da crença (todo ato religioso em essência) como quadro ilusório é exatamente por gerar uma realidade completamente avessa erguida sobre os próprios desejos dos quais não encaramos de forma consciente. Tal irracionalidade ocorre porque o inconsciente não conhece contradições, como nos sonhos. Tudo que lá acontece é perfeitamente natural, coerente, faz sentido.
Freud considerava a magia, o medo, a fantasia, o desejo, a poesia, o devaneio, o sonho como fases formadoras do sistema de crenças, entendendo serem a magia e a feitiçaria elementos que mantinham ativo tal sistema. O homem cria a magia como forma
de se impor sobre o mundo, as forças da natureza, o
universo, os animais, as doenças, os homens. Ademais, ele trata da onipotência do pensamento como uma ilusão em relação ao mundo externo, como já se disse, o desejo de que o mundo seja o que se deseja que seja:
A primeira imagem que o ser humano formou do mundo - o animismo - foi psicológica. Não precisou, então, de base científica, uma vez que a ciência só começa depois de ter-se dado conta de que o mundo é desconhecido e que, por conseguinte, tem-se de procurar meios para conseguir conhecê-lo.
Freud vê o homem alimentando a crença onde a
fantasia é uma força maior que a da mente que a cria, identificando troca tanto nos seres humanos primitivos quanto nos neuróticos,
o que propõe a compreensão de que, nos dois sistemas de crença, a fuga do real
tem certo limite ligado ora ao desejo de se situar no mundo, ora ao desejo de
fuga desse mundo, característica típica do homem moderno. O psicanalista vienense aborda três crenças importantes presentes no animismo: 1) o povoamento do mundo com seres espirituais bons e maus; 2) são a causa dos fenômenos; 3) somos povoados desses espíritos. Isso indica que sua visão sobre o animismo revela que os elementos que criamos para nos situarmos não precisam necessariamente serem verdadeiros nem lógicos, e não é pelo fato de se usar tais elementos que estamos perto ou longe da neurose: “Essas almas que vivem nos seres humanos podem deixar suas habitações e emigrar para outros seres humanos; são o veículo das atividades mentais e são, até certo ponto, independentes de seus corpos”.
Todos sabemos que a compreensão da obra de Freud não é fácil, em absoluto, e que é preciso muitos anos de dedicação exclusiva a tal empreendimento. Logo, entendo que o texto de hoje, apesar de necessário, é torturante em sua complexidade. Não estou livre desse martírio. Talvez o próprio Freud possa nos ajudar:
Concluindo, até onde me foi possível depreender, as crenças humanas - ainda que ilusões - se formaram de modo natural no curso de um longo processo histórico de identificação de si e do mundo, que estabeleceu regras e o sentimento de esperança, proteção, segurança e sentido existencial. Esperança da imortalidade, proteção contra as tormentas da vida, segurança contra as ameaças naturais. Cada um de nós possui seus credos - verdades que se inventa, cria sonha, projeta, desejando que sejam verdadeiras. Os pressupostos religiosos não mais dizem a uma realidade óbvia de transcendência, mas antes, a uma
expressão deformada de desejos
inconscientes. É nesse ponto que ilusão e crença se aproximam e se unem. Freud inaugurou uma escola de pensamento, alçando o homem a um ser pensante de si mesmo, e isso tem um peso incalculável. Para muitos, um peso insustentável.
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Carlos Dominguez Morano, Crer Depois de Freud, Loyola, 2014.Todos sabemos que a compreensão da obra de Freud não é fácil, em absoluto, e que é preciso muitos anos de dedicação exclusiva a tal empreendimento. Logo, entendo que o texto de hoje, apesar de necessário, é torturante em sua complexidade. Não estou livre desse martírio. Talvez o próprio Freud possa nos ajudar:
Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção.O desejo surge na teoria psicanalítica como propulsor da atividade humana, e, manifestado de diversas formas, é especificamente na maneira como se manifesta no sonho que poderá nos servir de base para compreender como ele se coloca nas outras esferas da vida. Sonhar, diz Freud, é realizar um desejo alucinatoriamente. Um desejo inconsciente, não podendo manifestar-se de forma desperta, se utiliza do estado de relaxamento da vida onírica para ter voz. A psicanálise mostrou que existem conflitos internos no próprio sujeito em distintas instâncias psíquicas o tempo todo. Dessa forma, desejos que pertencem ao sistema inconsciente estão lá por não poderem ter acesso à consciência. Não podendo se manifestar, deslocam-se e condensam-se numa mudança de foco por meio associativo, transferindo sua representação na vida consciente para uma imagem, por exemplo.
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Sigmund Freud, Totem e Tabu. Cia das Letras, 2006.
_______. O Futuro de uma Ilusão. LP&M, 2010,
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