“A razão pode provocar o desejo de crer, porém, nunca terá a força de fazer crer.” Nesta última parte da nossa conversa, mais uma vez a palavra de Le Bon serve de roteiro. No post Nascido para o saber, Dante canta em um dos versos aquilo que deveria ser essência do ser: ... feitos para praticar a virtude e aprender a conhecer. Não aprendemos a lição. Então, seguimos com o pensador francês no intuito de trazer novas luzes. No post citado, o Espiritismo foi alvo do debate, atiçando os guardiães da doutrina. Deixemos que Le Bon retome a palavra.
Outros autores seguem a mesma trilha e eu poderia trazê-los aqui em contribuição, não apenas sobre o espiritismo como também o misticismo, o sobrenatural e o mágico. Fica para outro momento. Em plena ebulição tecnológica de um mundo digital, ainda não nos livramos das fantasmagorias ancestrais. Talvez a explicação esteja nas palavras da historiadora ao mencionar as mudanças sociais e culturais na virada do século 19 para o 20, a belle époque. Sua argumentação é longa e esclarecedora, abrangendo todo o leque do sobrenatural, sendo a leitura da obra altamente recomendada. A seguir, dois breves trechos:
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Mary Del Priore, Do Outro Lado. Planeta, 2014.
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Perante os progressos das ideias científicas, a
crença na magia se afigurava destruída. Os feiticeiros, despojados do seu
prestígio, só achavam crédito em algumas aldeias obscuras. Mas o amor ao
mistério, as necessidades religiosas que uma fé muito antiga alimentava mal, a
esperança de sobreviver ao túmulo, são sentimentos tão vivos que não poderiam
morrer. A magia antiga devia, ainda uma vez, reaparecer, mudando de nome sem sofrer
notável modificação. Chama-se hoje ocultismo de espiritismo, os áugures se denominam
médiuns, os deuses inspiradores de oráculos se intitulam espíritos, as evocações
dos mortos têm o nome de materialização.
Durante muito tempo a nova crença foi desdenhada
pelos sábios; mas, há uns vinte anos* que assistimos a este fenômeno muito
imprevisto: eminentes professores tornam-se convencidos adeptos de todas as
formas de magia. Assim, reputados antropologistas, como Lombroso, afirmam que
evocaram as sombras dos mortos e com elas conversaram; ilustres químicos, como Crookes, dizem ter vivido meses com um espírito que diariamente se materializava
e desmaterializava, professores de filosofia célebres, como Richet, declaram ter
visto um guerreiro de capacete surgir espontaneamente do corpo de uma menina,
físicos distintos, como d’Arsonval, referem que um “médium pode fazer variar, à
vontade e de um modo considerável, o peso de um objeto”. Vemos, enfim, ilustres
filósofos, como o sr. Boutroux, dissertarem em brilhantes conferências sobre os
espíritos, as comunicações sobrenaturais, e afirmarem que “a porta subliminal é
a abertura pela qual o divino pode penetrar na alma humana”.
É certo que outros sábios, igualmente ilustres,
rejeitam essas observações, atribuíveis, no seu conceito, a simples
alucinações, e eles se indignam contra o que chamam retorno às formas mais
baixas da feitiçaria e da superstição. A fim de mostrar a ilimitada credulidade de certos
sábios eminentes, desde que penetram no domínio da crença, vou escolher o
fenômeno ocultista mais estudado por eles, o que é denominado das
materializações. Veremos reputados fisiologistas admitir, sem hesitação, que um
ser vivo se pode constituir instantaneamente com os seus ossos, as suas artérias,
os seus nervos, em uma palavra, com todos os seus órgãos. Naturalmente, as explicações dos espíritas sobre tal
assunto são bastante confusas e variam com a imaginação de cada autor. Cumpre
unicamente reter que do corpo de um ente vivo poderia instantaneamente surgir
outro ser, possuindo os mesmos órgãos e não o seu simples aspecto.
Observa-se o papel da sugestão e do contágio mental
nos maravilhosos fenômenos que se prendem à magia e na sua influência sobre os
espíritos mais eminentes. As ilusões de que foram vítimas os sábios dedicados
ao estudo dos fenômenos espíritas mostram que os métodos de investigação,
utilizáveis no domínio do conhecimento, já não o são no terreno da crença. Observa-se também que os crentes nos
fenômenos ocultistas afirmam que eles não se podem reproduzir à vontade, não se
achando, por conseguinte, submetidos a nenhum determinismo. As potências superiores
criadoras de tais fenômenos não obedecem aos nossos caprichos. Júpiter lança o
raio quando lhe apraz, Netuno desencadeia as tempestades sem atender ao desejo
dos navegantes.
Em história, o método de estudo é o testemunho. Em
matéria científica, a experiência e a observação servem de guia. Ora, para os
fenômenos ocultistas, o primeiro método consiste em rejeitar inteiramente o
testemunho e lembrar que a observação, assim como a experiência, são unicamente
utilizáveis em circunstâncias excepcionais. Eliminados o testemunho e a observação como meio de
estudo, resta a experiência. Um erro muito generalizado é o que consiste em
imaginar que um sábio, distinto na sua especialidade, possui por essa única
razão uma aptidão particular na observação dos fatos alheios a essa
especialidade, principalmente aqueles em que a ilusão e a fraude desempenham um
papel preponderante. Vivendo na sinceridade, habituados a crer no
testemunho dos seus sentidos, completados pela precisão dos instrumentos, os
sábios são, na realidade, os homens mais facilmente iludíveis. Os fenômenos do espiritismo não poderiam, portanto,
ser eficazmente observados por sábios. Os únicos observadores competentes são
os homens habituados a criar ilusões e, por conseguinte, a desvendá-las, isto é,
os prestidigitadores.
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Encerro a série com a historiadora Mary Del Priore ao dizer que, ainda no século 19, o antropólogo brasileiro Arthur Ramos escrevia: “O Brasil vive impregnado de magia. Nós, brasileiros, ainda vivemos sob o domínio do mundo mágico, impermeável em muito ao influxo de uma verdadeira cultura”. Sua fala não envelheceu. Nesse sentido, Del Priore sublinha:
Sim, pois a mentalidade mágica e a crença no sobrenatural acompanhavam e envolviam as ideias, as ciências e as letras. Não à toa, essa literatura de sensação enchia as noites dos que acreditavam que, no contexto da fé, o sobrenatural era coisa normal. (...) O que se convencionou chamar de sobrenatural, maravilhoso ou fantástico revela, na realidade, atos de fé. (...) Crenças são capazes de exprimir a humanidade na sua mais profunda e intensa medida. Passados séculos, muitos desses objetos de fé e convicção continuam aí, jovens, oxigenados, vivos. Ninguém procura explicá-los. Eles são recebidos como uma mensagem na qual se lê toda a onipotência e as marcas da intervenção de Deus, ou de deuses, em nosso mundo.
A modernidade dos bondes, da luz elétrica e do telefone trazia também uma resistência às mudanças. Vivia-se o que um historiador denominou de “a revolta contra a razão”. Em revanche, recorria-se ao fantástico e ao imaginário popular, recheado de fadas, demônios e aparições. A literatura escapista transportava para outro mundo, onde o sobrenatural dava as cartas. Nele, nada causava espanto ou surpresa. Tudo era possível!
No universo sobrenatural, “mortos-vivos”, espíritos ou fantasmas fazem parte do cenário desde a Antiguidade e a Idade Média. Eles atravessaram os séculos invadindo a literatura romântica, fantástica e gótica. Emergiram de castelos assombrados por fantasmas e vampiros, todos eles atores de uma cultura que acreditava em sua existência. Hoje fazem parte do cinema e dos quadrinhos. E também das pesquisas nas áreas de parapsicologia e metapsicologia. Empurrado para a marginalidade ou a clandestinidade, o sobrenatural progrediu.Uma última frase de Le Bon sacramenta o vão esforço do conhecimento: “Os convictos permanecerão convictos, e os críticos continuarão críticos. Nos domínios da fé, a razão não intervém”. Por fim, acrescento que na próxima semana trarei de volta Freud, absolutamente imprescindível na sequência da reflexão.
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Mary Del Priore, Do Outro Lado. Planeta, 2014.
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