Obras

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sexta-feira, 17 de maio de 2019

O VÍRUS DA LINGUAGEM

Da simbiose ao parasitismo é um pequeno passo.
A palavra agora é um vírus.
O vírus da gripe pode ter sido uma vez uma célula pulmonar saudável.
Agora é um organismo parasita que invade e danifica os pulmões.
A palavra pode ter sido uma célula neural saudável.
É agora um organismo parasita que invade e danifica o sistema nervoso central.
A linguagem é um vírus
William Burroighs, 1994

O que inspirou o texto de hoje foi a manifestação de uma amiga ao relatar o debate havido entre ela e um seu amigo. Achei que valia a pena trazer o tema para cá. Uma das armadilhas do pensamento é a contralógica, argumento que parece correto num primeiro momento mas que, na verdade, parte de pressupostos construídas pelo avesso. É um sofisma,  raciocínio ou retórica que induz ao erro pela aparente lógica, mas seu arcabouço de fundamentos é inconsistente, falho, incorreto e enganoso. Isso geralmente ocorre quando se trata de um argumento utilitarista, ou seja, é conveniente pensar dessa forma porque apresenta uma conclusão supostamente "indiscutível".

Um exemplo clássico é o argumento da "pluralidade de mundos habitados", usado para justificar a nossa própria existência: "Não é possível que na vastidão do universo só a Terra seja habitada"; "Deus não fez o universo tão grande só para nós" e assim por diante. Mesmo que não haja o menor sinal de vida no cosmo, a argumentação persiste.
Atenção, é bastante possível que a vida pulse em todo o universo, seja ela de que tipo for, mas ao se falar em pluralidade de mundos habitados está-se sugerindo vida igual a nossa, ilação pura, devaneio, sem qualquer base científica ou lógica. Além de querer justificar a vida na Terra, pretende-se também legitimar os "discos voadores, seres alienígenas, civilizações longevas e avançadas"... fantasia, ficção, delírios.

Outro discurso que se ouve amiúde e falsamente científico é quando se diz que "Se nós viajamos pelo espaço, por que eles, com tecnologia tão mais avançada, não poderiam vir até aqui?" Vários erros numa só frase, uma simplificação que omite muitos elementos: O primeiro está no desconhecimento do assunto: nós não viajamos pelo espaço, só chegamos até a Lua, o resto são sondas que ou vagam espaço afora ou pousaram em planetas próximos, ou chocaram-se com eles. O segundo erro está em afirmar que eles - plural - estão por aí, indicando a crença absoluta em alienígenas. Por último, a suposição extraída da ficção científica de que tais civilizações possuem uma "tecnologia avançada"! 

Um raciocínio equivocado, quase falacioso, porquanto embora pareça verdadeiro, assenta-se em pressupostos falsos que induzem ao erro. Mesmo uma falácia pode ser tão bem arquitetada que se torna convincente, persuasiva. No debate citado acima, minha amiga, ao se declarar ateia, seu interlocutor retrucou dizendo que "ao negar a existência de deus, ela estaria admitindo a sua existência". Não poderia haver distorção maior de pensamento. A tréplica foi letal: "Neste caso, a mesma proposição seria válida para o coelhinho da Páscoa, a fada dos dentes e o papai Noel!". Parece que a conversa não prosperou.

A falácia é um truque de linguagem sutil, intencional, de uso corrente na política e por aquele que pretende ludibriar a fé alheia ou levar vantagem argumentativa, sem qualquer preocupação com a construção lógica. Certas falácias estão de tal forma cristalizadas, são tão repetidas e consagradas que raramente têm sua falsidade reconhecida, e isso é ainda mais notável no campo religioso e nas crenças em geral. Muitas dessas falácias apelam para a convocação de massa: "Milhões de pessoas acreditam em discos voadores, e você?", ou recorrem à tradição: "A astrologia é uma arte divinatória praticada há milhares de anos no Oriente, não há como refutá-la."

O antídoto para a contralógica, a falácia, o sofisma, está na honestidade intelectual, no apego à verdade e aversão à mentira, sabendo discernir uma da outra; está na reflexão profunda contínua, na capacidade de ouvir e ir à essência dos fatos. Está no desassombro com o imaginário e na coragem frente à realidade, na isenção ideológica, na autonomia e independência intelectual.