Obras

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quinta-feira, 23 de abril de 2020

UM CERTO OLHAR INCERTO
Ainda no espírito dos posts anteriores, hoje venho com um outro olhar diante do cenário de incertezas que estamos atravessando. Será o último desta série se nenhum fato novo pedir continuidade. Você poderá até não concordar, achar que é tudo uma grande farsa, histeria, exagero, mas se ao menos parar um momento para pensar o texto, ele já terá cumprido sua finalidade. Estou falando de um artigo que faz parte da coleção Janelas para o Mundo, organizada pelo jornal alemão Frankfurter Algemeine Zeitung. Vários escritores e filósofos de todo o mundo estão escrevendo sobre o que veem das suas janelas durante o período de isolamento motivado pela pandemia. Os artigos são veiculados no Corriere della Sera da Itália, Politiken, da Dinamarca, Observador,de  Portugal e Die Presse, Áustria. O presente autor é o escritor e acadêmico italiano Antonio Scurati, de Milão, onde vive e está isolado. “O fim de uma era” é poético, pungente, verdadeiro e perturbador*. Um texto indispensável. Não me parece que ele integre uma teia maluca de conspiradores e paranoicos.

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Como poso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou trabalhando? - perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não a conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da humanidade. Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade da Itália, uma das mais desejadas do mundo, a cidade da moda, do design, da Expo.

A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e o happy hour , e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, conta 30 mil contágios e três mil mortos.* Uma taxa de mortalidade de 10%, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas. As sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias; as nossas noites são atormentadas por homens adultos que choramingam no sono: “O que é, sente-se bem?”; “Nada, não é nada, volte a dormir”.

Milhares de amigos, parentes e conhecidos seus tossem até cuspir sangue, sozinhos, fora de todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas camas dos seus quartos decorados por arquitetos de renome. Se, neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável diligência por imigrantes cingaleses¹. Até ontem, era uma singular anomalia neste bairro semi-central e, ao seu modo, elegante, uma nota dissonante. Hoje é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrines despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter suas marcas preferidas de farelo. Ficam, apoiados pela disciplina do desânimo, a um metro de distância uns dos outros, ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com máscaras improvisadas feitas de pedaços de tecido com os quais, até ontem, protegiam as plantas exóticas do seu roof garden gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole dos restos de uma era acabada. Vejo estes homens e estas mulheres tristes, incongruentes consigo mesmas. Olho-os, não tenho nenhuma intenção de os diminuir ou de troçar deles.

São homens e mulheres adultos, contudo por cima das máscaras mostram o olhar assustado das crianças carentes. Chegaram totalmente despreparados ao seu encontro com a história e, no entanto, precisamente por este motivo, são homens e mulheres corajosos. Fizeram parte do pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e bem cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e, agora, na casa dos cinquenta, estão na fila do pão. A sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da irrealidade televisiva. Tinham 20 anos quando assistiram, a partir das suas salas de estar, à primeira guerra da história humana direto na televisão, 30 quando foram alvejados através dos televisores pelo terror midiático, 40 quando a odisseia dos condenados da terra aterrou nas praias das suas férias. Todos encontros fatídicos que não poderiam perder. As grandes cenas da sua existência foram consumidas em eventos midiáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas praias dos migrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à televisão. E agora estão na fila do pão. 

A sua infância foi uma mangá japonesa, a sua juventude uma festa de piscina - lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa -, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões no outlet, o sublime do spa. Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca uma questão sobre o seu lugar no universo. E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdômen proeminente e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão.

Turistas compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e agora a sua casa marca para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas interiores e agora o drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma pandemia global; têm uma casa na praia e um iphone de última geração, mas agora estão na fila do pão; tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas vidas para levar o seu poodle a mijar.

Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto a curva do contágio cresce exponencialmente, enquanto sustenho a respiração para não inalar o ar do tempo. Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro. Porém, terão de o fazer, fá-lo-ão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a experienciar nestes dias: um mundo que se questiona sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si e dos outros. Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: resiste, Milão! E Milão resiste.

Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos: como são grandes e patéticos com os seus tênis de corrida e as suas máscaras cirúrgicas. Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me deles. Dentro de alguns segundos estarei na fila junto deles.



* Publicado em 23 de março de 2020. U mês depois, a Itália contabiliza mais de 25 mil mortos.
¹ Do Sri Lanka, também conhecido como Ceilão.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

MELANCOLIA
Não há como não voltar ao tema, ou melhor, ao Poço. O momento pede, algumas reações ao post anterior também. Por que o filme é tão importante? perguntaria alguém. A questão não é se ele é ou não importante, ele é na medida em que conduz forçosamente a uma reflexão crítica, como aliás faz toda ficção - científica ou não. Se a ficção expõe a verdade pela mentira, Edgar Morin afirma que, justamente por ser um “espelho antropológico”, o cinema, como veículo de massa da ficção, reflete as realidades práticas e imaginárias, as necessidades e os dramas da individualidade humana. 


Umberto Eco entende que a ficção, de um modo geral, oferece uma realidade que nem a própria realidade concreta é capaz de suplantar, onde o universo da narrativa é o único no qual podemos estar totalmente seguros de uma coisa e que oferece uma ideia forte de verdade. Em sua rica historiografia sobre terras e lugares lendários, Eco não só revela a capacidade humana para criar mundos imaginários como também por que o faz

Eis um bom exemplo saído do forno. Em seu romance mais recente, lançado em 2018 mas escrito quatro anos antes, “Desta Terra Nada vai Sobrar a não ser o Vento que Sopra Sobre Ela”, o escritor Ignácio de Loyola Brandão parece antecipar o futuro. Eu não tenho culpa da minha literatura vir na frente, a vida que vem atrás (...) Não sou vidente. Sou um escritor que sabe que a literatura é uma coisa que faz você ver a possível vida que vem. A gente vive uma situação de medo, de sobressalto, de angústia, disse ele em uma entrevista.¹

Assisti ao filme mais algumas vezes com a sensação de olhar o mundo por uma janela. Só não sei se ela está molhada por fora pela névoa e pela chuva, ou por dentro, pelas lágrimas. Vejo a relação humana se deteriorando, escorrendo como gotas que deslizam pelo vidro. Um amigo escreveu que não conseguiu assistir ao filme e nem depois de ler a sinopse. Óbvio, diria Trimagasi; ele não quer encarar a realidade, quer segurar a flor, mas esquece que o espinho vem junto. Se te consola, meu amigo, tem mais gente como você nesse quadrado. Aviso novamente que o texto descreve cenas do filme.

No filme, alguém diz: Quem está em cima quer pular, os de baixo não têm coragem. Você está onde? O vão central do poço é o abismo. Quando Goreng cai na real”, ele se dá conta do quanto seu idealismo é frágil, vulnerável, desfiado pela lâmina afiada do mundo real, e não tem dúvida, engole as páginas do seu querido D. Quixote. Quando a fome bate, adeus idealismo, adeus metafísica, não é mesmo? Na luta pelo pão, que se dane o próximo, é melhor comer que ser comido, recomenda o realista, porque a fome desata a loucura. Trimagasi lhe conta que está preso de modo injusto, só porque atirou uma televisão pela janela e ela acertou um imigrante ilegal que nem devia estar ali. Imigrantes, refugiados, indigentes, excluídos, negros, gays, mulheres... o indígena que queime na calçada, quem se importa? A ameaça já não vem só do invisível, vem também do outro, essa é a questão! A aldeia global é terra de ninguém, não há fronteira, muro ou cortina de ferro que detenha o mal. Ele é global e indistinguível, por isso inextinguível.

Uma cena explícita de racismo social ocorre quando um preso diz ao negro Baharat: O que é que há, negro, virou criado do branquelo agora? Em outro momento, na tentativa de convencer uma detenta a dividir a comida pensando nos de baixo, Baharat usa um linguajar educado, polido, mas não é compreendido e é destratado, e a mulher se atira em direção à comida. Num impulso, o até então idealista Goreng lhe desfere um violento golpe na cabeça com a barra de ferro, matando-a. A partir daí a barbárie se instala. Normal, o homem sempre foi predador do homem. Para a escritora Ursula Le Guin, a ficção científica não prevê, descreve, sendo de fato uma grande metáfora, ou um processo alegórico, algo como um jogo de mentiras” em que interatuam as 'dominantes' da contemporaneidade. Não é a única a pensar desse modo.

Agora chego ao ponto da nossa reflexão, um diálogo que não me passou despercebido. Em um dos níveis mais baixos, onde a cegueira, o sofrimento e a insanidade chegam ao extremo, Goreng e Baharat, depois de passarem por corpos em decomposição e prováveis suicídios, encontram um velho bastante debilitado, estirado na cama, um moribundo precisando de alguém que lhe dê a comida na boca; seu parceiro condenado é portador da Síndrome de Down que, face à sua própria desnutrição, planeja sobreviver: Vou abrir o velho e comer tudo o que deram para ele. Ele vai morrer, de qualquer jeito. Macabro? Mas não é o retrato da sociedade dita moderna, civilizada? O idoso, independente do nível, é alvo fácil da ganância, familiar ou não, impotente, descartável, um estorvo, abandonado à míngua. Abrem seu espólio e tiram-lhe tudo que conquistou, da casa à conta bancária, do anel à dignidade. Ele vai morrer, de qualquer jeito.

Tudo se torna ainda mais terrível nessa hora de distanciamento forçado. As clínicas de repouso, eufemismo para asilo, pouco ou nada podem fazer. Aquele que mora sozinho tem de se valer de algum bom vizinho para ajudá-lo, porque os familiares estão distantes, muito  distantes”, ainda mais agora. Cuidadores e enfermeiros contratados não estão podendo dar assistência, um por precaução, outro porque seus serviços foram requisitados nos hospitais lotados. Não é só o vírus que os mata, é a dor da solidão, a tristeza de não poder sair para jogar conversa fora na praça, tomar uns goles com os amigos, jogar damas, dominó, xadrez. Nem de futebol se fala mais, porque não há futebol para se falar. Com sorte, encontrar-se-ão na fila da vacina. Ou do pão.

O noticiário não tem outra voz a não ser narrar a tragédia alheia, repetir o mantra da higiene, atualizar as estatísticas, a instrução do médico, a crise na economia, a política atrapalhada. Quando a alma encolhe, irrompem a angústia, a apatia, a frustração, a depressão, o sentimento de inutilidade e de morte 'antecipada'; outras morbidades tendem a agravar um quadro por si frágil, e não serão incluídas nas estatísticas do morticínio. Na hora do luto solitário, não serão os entes queridos a levá-los ao túmulo, será um comboio de caminhões iguais levando caixotes iguais para a cova dos iguais. Despedidas à distância, enterro simbólico, choro na sacada. O normal do absurdo. Em certo sentido, o velho é tão invisível quanto o invasor do seu corpo. Paradoxo surreal digno de um conto de Borges - o abraço dos invisíveis.

Os velhos precisam morrer logo para desafogar a Previdência, desembaraçar a família, desocupar hospitais e UTIs. Velho custa caro, é inservível e dá trabalho. O envelhecimento da população tornou-se uma equação sócio-econômica complexa que a pandemia ajuda a resolver. Macabro? Veja o que Loyola diz sobre sua obra: Os idosos estão sendo jogados do alto das montanhas. Não podem sair, mas autorizados a sair, que trabalhem. Está autorizada a eutanásia no país. Meu livro não é o futuro, é o agora. Estou muito triste. Nós também.



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¹ https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/a-reacao-ja-comecou-com-a-desobediencia-civil-diz-ignacio-de-loyola-brandao-autor-de-distopia-politica.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
Edgar Morin, O Cinema ou o Homem Imaginário, Relógio d'Água, 1997.
Ursula Le Guin, A Mão Esquerda da Escuridão. Aleph, 2008.
Norbert Elias, A Solidão dos Moribundos. Zahar, 2001.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

O POÇO E A MENSAGEM

No post de hoje, proponho uma reflexão a partir do filme “O Poço”¹ (2019, Netflix), tendo por base a análise do historiador Leandro Karnal, publicada em seu Instagram e reproduzida, com autorização, no site https://papodehomem.com.br/o-poco-e-a-pandemia-or-analise-por-leandro-karnal/E por que o faço? Porque entendo estar em perfeita consonância com os textos recentemente publicados aqui, como “A diferença é ser humano” e “Tempestade no deserto do real”, entre outros, considerando que assisti ao filme no último final de semana, depois dos posts publicados. O filme é anterior à pandemia do coronavírus, mas serve perfeitamente ao contexto atual de isolamento, confinamento (prisão domiciliar compulsória”) e distanciamento social, mas vai muito além disso.

E serve mesmo, repleto de metáforas e simbolismos: céu, inferno e purgatório, de Dante, ficam subentendidos em um dos diálogos. A análise contém spoiler, portanto, se preferir, assista ao filme primeiro e depois volte à leitura. Um detalhe: não me ocupei com reflexões sociológicas, políticas ou religiosas, embora apareçam de relance; preferi um viés mais psicológico e filosófico. Em certo sentido, para bom entendedor, o filme se explica por si, e não só revira o estômago com a crueza própria do lugar como também, e principalmente, impacta a consciência. E é só uma leitura superficial, há mais a ser pensado em várias camadas interpretativas. Em contraste com a atmosfera sombria, densa e deprimente, a estética é brilhante e a narrativa, visceral. Falando em contraste, há que se notar também que, apesar dos diferentes níveis, os cárceres são rigorosamente iguais, a dizer, estamos encapsulados em nosso mundo particular, que não difere subjetivamente dos outros mundos.

Em um mundo distópico, existe uma instituição penal-educativa chamada O Poço. Uma estrutura vertical onde cada nível é uma cela descolorida, árida, sem grades, para duas pessoas, que são alimentadas por uma plataforma que passa pelo vão central levando pratos cuidadosamente preparados, com requinte, qualidade e higiene impecáveis. Os presos dos níveis superiores são os que se servem melhor, e à medida que a mesa desce, os demais se jogam vorazes nos restos que vão sendo deixados. Não há qualquer explicação sobre os critérios de destinação dos prisioneiros, até porque alguns são voluntários que almejam algum benefício com a pena, por exemplo, um diploma, ou certificado homologado

No piso 48, os dois personagens principais estabelecem um diálogo/duelo entre o realismo e o idealismo; cada um pode levar consigo um objeto de sua escolha, e enquanto o realista opta por uma faca afiada, o idealista prefere um livro, D. Quixote, de Cervantes. Segundo Karnal,
O filme trata de uma metáfora óbvia: a sociedade é desigual e os de cima não se preocupam com os de baixo. Leitura de um sistema no qual é “comer ou ser comido” [diz o personagem realista]. Há alimento para todos, porém o egoísmo produz fome. O tema parece retirado da metáfora do livro do mexicano Mariano Azuela González: Los de Abajo. Existe um nível psicológico: submeter personagens a situações limite para discutir a condição humana é um recurso clássico (...) O choque de mundos de Goreng e Trimagasi é o atrito entre a visão idealista e a realista. A palavra-chave de Trimagasi é óbvio porque, para o prisioneiro mais velho, tudo está inserido em regras claras, naturais e que exigem adaptação para sobreviver. Goreng questiona tudo do sistema do poço. Que preço estaríamos dispostos a pagar pelo que fizemos ou por um diploma? Sobreviver é o que importa?
Quanto mais a mesa desce, maior a dor, o sofrimento e o desespero. A gula egoísta dos de cima tortura e mata os espíritos já condenados de baixo. Para os dias atuais, é só trocar por ganância e individualismo. A administração (Estado?, indaga Karnal) do Poço parece desconhecer o que acontece de fato nas celas. A teoria é oposta à prática. Como a plataforma volta sempre vazia, supõem que todos se serviram à vontade, enquanto os encarcerados não veem o rosto dos que controlam o sistema. É óbvio que assim deva ser, o distanciamento das classes é o padrão. Na prática, para Karnal,
Tenho de me salvar, comprar o máximo possível, salvar a mim. Pouco ou nada me importam os outros. Assim como no filme, a teoria de Hobbes supera a de Rousseau: a natureza humana é má e egoísta. Uma criança seria a esperança? Um bom selvagem? Só a ameaça educa e só funciona para baixo.

A questão que se levanta é “solidariedade espontânea, obviamente ausente naquelas circunstâncias. Inconformado com a sofreguidão e a falta de um espírito comunitário, o preso idealista ameaça defecar na comida dos que estão abaixo do seu nível, para que eles passem a pensar nos que estão abaixo, e abaixo e abaixo. Se o bom senso inexiste, a intimidação tem de funcionar. O Poço não alimenta esperanças. O filme é realista, politicamente maquiavélico (no sentido de não mostrar o mundo como deveria ser, mas como é)”, ressalta o historiador. A maternidade (no filme) não supera a barbárie, posto que a mãe, à procura da filha, mata, trucida e comete canibalismo. Nesse momento dramático, Deus literalmente está morto. Adeus idealismo, adeus metafísica. Somos civilizados enquanto a fome não bater na cara, a realidade não rasgar a carne. Somos um corpo com necessidades e que, para escapar à dor, criamos metafísica”. Se nem da dor escapamos, que a nossa seja menor que a do outro. A certa altura, Trimagasi, o realista, diz a Goreng: “Se está com fome, por que não come o livro?”. O inferno não são os outros, somos todos.

Em períodos de crise, adoraríamos uma mensagem de esperança e redenção. O Poço recusa nossa vontade e piora a percepção do mundo. Quem suportaria olhar para a Medusa e sobreviver? Quem consegue olhar para o seu próprio poço?”, encerra Karnal. Mas há um ponto no filme que o historiador não toca e que, no meu entender, é crucial: a mensagem”. Descendo com seu novo parceiro de cela sobre a plataforma, deparam, no meio do caminho, com um sábio”, um homem que parece estar lá há muito tempo, que lhes diz: A mensagem é o alimento”. Goreng percebe então que, se algum alimento retornar intacto ao nível zero, à cozinha, isso pode desestabilizar o sistema, tumultuar as regras, provocando uma ruptura na lógica do complexo: “Algo deu errado, pensarão os administradores. Goreng decide ir até o fim do poço mesmo sem saber onde ele termina. E segue-se uma sucessão de enfrentamentos brutais para preservar o alimento e fazê-lo retornar intocado à sua origem.

Quando a plataforma enfim chega ao término da descida, os homens, exaustos, combalidos, encontram a menina procurada pela mãe, milagrosamente viva. E faminta. Então vem o dilema: subir com o alimento intocado e implodir o sistema, ou salvar a vida da criança dando-lhe a comida? Se lhe derem o doce, a mensagem morre. E se a criança for a própria mensagem? Seria ela o futuro? A pureza do espírito? A trava daquela engrenagem mórbida? Ou ela é um delírio, um fantasma, alucinação, uma ilusão quixotesca? Como saber? Óbvio, não contarei o final. Nesse momento, o “fantasma” de Trimagasi diz a Goreng: “A mensagem não precisa de portador”. Uma sacada genial, a frase crucial para se entender o filme, código para se compreender o mundo.

Quando alguém diz que não entendeu o final é porque esperava por uma cena, uma palavra ou um sinal que desse sentido à trama, trouxesse esperança ou redenção. Mas o filme não faz nada disso, é cruel e nada sutil. O diretor, o espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, usa um argumento que lembra Sartre* para jogar a responsabilidade no nosso colo: “O que importa é o que cada um faz com as cartas que tem”. Mas a vida não é um jogo de cartas marcadas. A mensagem não precisa de portador.

Pergunto: Qual mensagem não precisa de portador?

A única mensagem que consigo pensar - e, claro, posso estar errado - a partir do entendimento que tenho do filme, pela sua narrativa nuclear e pelas entrelinhas do diretor nas entrevistas, é aquela em que ela mesma é portadora: A realidade. A realidade é o que é, não precisa de intermediário, tradutor, porta-voz, intérprete ou estafeta. Ela mesma se conduz no mundo e na vida dos homens, e quem não entende a mensagem, por óbvio, não entende o mundo, não entende a vida, não entende nem a si mesmo. Será que precisamos chegar ao fundo do poço para entendê-la? Será que ela já não é óbvia” o suficiente? O poço é um caminho, o pior deles, mas quem pode dizer quão fundo é? O que diremos à história amanhã?


¹ Título original The Platform.
* Não importa o que a vida fez de você, mas o que você faz com o que a vida fez de você.
https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2020/04/07/o-poco-segredos-polemicas/