Obras

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sexta-feira, 26 de julho de 2019


ÓPERA DOS CORVOS


Deu na imprensa: “Força Aérea dos EUA diz que defenderá Área 51 de tentativa de invasão convocada por Facebook”¹. Num primeiro momento, não pretendia perder meu precioso tempo com tamanha bobagem, porém, dois outros desatinos ainda piores obrigaram me manifestar. Vamos a eles.

Para quem não sabe, “Área 51” designa um complexo militar instalado no Estado de Nevada de uso restrito das Forças Amadas, que serve como campo de testes e desenvolvimento de projetos secretos militares – armamento, aeronaves, veículos, etc. No final dos anos 1940, ganhou notoriedade devido a notícias fantasiosas de que o governo americano estaria escondendo destroços de naves e corpos alienígenas, ligados ao que ficou conhecido como “Caso Roswell”

Desde então, ufólogos, curiosos, entusiastas e fanáticos tentam a todo custo desvendar o mistério daquela base americana para “revelar ao mundo sua verdadeira finalidade”. Agora surge essa iniciativa estapafúrdia parida nas redes sociais. Só há três saídas possíveis: 1) Por se tratar de uma área de segurança máxima, os invasores serem rechaçados com força proporcional, com graves consequências; 2) Os tontos de ocasião serem bem recebidos, convidados a conhecer parte das instalações, ganhando, como presente de boas vindas, cópias de relatos embolorados e fotos antigas desfocadas em valor  algum de “discos voadores” – acervo excedente ali guardado por falta de espaço em outros prédios. 

Por último, diante das alternativas 1 e 2, os bobos agentes da baderna (que parece chegar a meio milhão de patetas) não se darão por vencidos, esbravejando tolices tais como “acobertamento de informação”, “ocultação de provas” ou “conspiração contra a verdade” e outras do gênero. Já vimos isto por aqui quando, há alguns anos, uma turba de patafísicos* exigiu do governo brasileiro a liberação de documentos sobre Óvnis. O que a tropa obteve foi um punhado de material pífio copiado de algum Arquivo X jogado num porão qualquer, ma suficiente para os tolinhos jactarem-se pela gloriosa conquista. Faça sua aposta. É esperar para ver.

Não há data limite para o fim da ignorância e da canalhice

Outro assunto que ganhou espaço foi uma tal “data limite” profetizada, segundo alguns, por ninguém menos que Chico Xavier. O conteúdo da “profecia” é uma mixórdia de disparates em um roteiro rocambolesco, num verdadeiro festim de aberrações: guerra nuclear, espiritismo, transição planetária, cataclismos, candomblé, Jesus Cristo, potentados celestiais e, claro, extraterrestres. 

Consta que o dito médium teria confidenciado a amigos próximos que, em 1969, por ocasião da chegada do homem à Lua, “Ocorrera uma reunião com as potências celestes de nosso sistema solar para verificar o avanço da sociedade terrena. Decidiram, pois, conceder à humanidade um prazo de 50 anos para que evoluísse moral e espiritualmente e convivesse em paz, sem provocar uma terceira guerra mundial”². Em outras palavras, se a humanidade não se autodestruísse via terceira guerra, ela entraria numa nova era de júbilo, glória e evolução. Esse prazo expirou em 20 de julho e, como se deve ter notado, o mundo não acabou, ou seja, a partir de agora, vamos todos ao infinito e além”, como diria o personagem de Toy Story. Evolução moral e espiritual? A quem querem enganar? Pensam que somos todos imbecis? Isso não passa de uma  farsa criminosa, propaganda enganosa de um documentário chulo cujos produtores estão associados a ufólogos e adeptos da crença extraterrestre!

O terceiro ato da ópera dos aloprados, diretamente ligado ao fato anterior, diz respeito ao editor de uma conhecida revista brasileira de ufologia, que teria sido sequestrado por extraterrestres! Este mesmo senhor, certa feita, informou ter extraído um chip do nariz, certamente implantado por alienígenas, mas que o perdera acidentalmente! Que pena. Suspeita-se, ainda, que ele esteja envolvido na farsa de supostos círculos (crop circles) descobertos em lavouras de trigo no Brasil, que seriam mensagens de civilizações extraterrestres! E agora, dias atrás, retornando de um Encontro de Ufologia na cidade de Peruíbe (São Paulo) em que se tratou também, oportuna e convenientemente, da “data limite”, ele, seus filhos e amigos teriam sido abduzidos por criaturas do espaço! É muita desfaçatez. Só falta este indivíduo se autoproclamar um demiurgo ungido pelos extraterrestres com a nobre missão de conduzir a humanidade ao seu venturoso futuro. Não duvido que o faça, e se o fizer, terá de ficar sob tratamento psiquiátrico para o bem dessa mesma humanidade.

O que mais posso dizer? No primeiro caso, a horda de  irresponsáveis está fazendo das redes um instrumento de extermínio da ética e destruição do bom senso, em um bunker de idiotice e irracionalidade. A burrice perde a vergonha quando o corvo canta de galo pensando ser pavão. Essa turma ainda não se deu conta do efeito bumerangue das redes e da exposição ao ridículo a que está sujeita. Quanto ao conteúdo, sem comentários. No segundo caso, uma comédia de horror. Trazer Chico Xavier pensando dar peso e credibilidade a um despautério em forma de profecia é imoral, uma falácia perigosa, ordinária e grotesca. Um tiro no pé. Entenda como quiser. O terceiro episódio é de uma vigarice exemplar. Em todos, o que há de fato são delírios, insânia, mentira, desvario e impostura. Entendeu agora? 

Estou preocupado – mas não surpreso – que o ser humano esteja emburrecendo tão rapidamente, voltando às suas origens, ao estado de natureza  primitivo, estúpido e selvagem. Os três eventos reforçam isso – incapacidade de reflexão, empobrecimento moral e intelectual, falta de senso crítico e desrazão, sinais inequívocos de um notório conflito psíquico: bípede falante agindo como quadrúpede fungante. Ou o contrário. Já escrevi muito disso aqui antes e não serei repetitivo. A preocupação é real porque este é o Zeitgeist – o espírito da época, o sinal dos tempos no qual a humanidade está inexoravelmente mergulhada. Não diga que não avisei.

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* Patafísica - ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções.
¹ https://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2019/07/forca-aerea-dos-eua-diz-que-defendera-area-51-de-tentativa-de-invasao-convocada-pelo-facebook.shtml
² http://www.e-farsas.com/chico-xavier-previu-que-dia-20-de-julho-de-2019-sera-a-data-limite-para-a-humanidade.html

terça-feira, 16 de julho de 2019

 
APENAS UM PONTO



Após uma pausa necessária, cujos motivos explicarei em outro momento, este blog volta ao circuito, com uma diferença – sua periodicidade não será mais semanal, mas apenas quando assuntos realmente relevantes justificarem sua publicação e o debate. Assim, recentemente, uma amiga enviou um vídeo intitulado “Pálido ponto azul”, produzido a partir do livro homônimo de Carl Sagan publicado em 1994. Extraí o áudio na íntegra para uma oportuna reflexão, lembrando que é apenas um recorte da obra. Sagan se inspirou quando, ao passar pela órbita de Saturno, a nave Voyager fotografou a Terra distante 1,4 bilhão de quilômetros. Fiz pequenos ajustes para adequar a narração ao texto escrito.Um pouco de lirismo vai bem nos dias atuais.
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A espaçonave estava bem longe de casa, e eu pensei que seria uma boa ideia, logo depois de Saturno, fazê-la dar uma última olhada em direção de casa. De Saturno, a Terra parecia muito pequena para a Voyager apanhar qualquer detalhe. Nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um pixel solitário, dificilmente distinguível de muitos outros pontos de luz que a nave avistaria – planetas vizinhos, sóis distantes, mas, justamente por causa dessa impressão de nosso mundo assim revelado, valeria a pena ter tal fotografia.

Já havia sido bem entendido por cientistas e filósofos da Antiguidade clássica que a Terra era um mero ponto de luz em um vasto cosmo circundante, mas ninguém jamais a tinha visto assim. Aqui estava a nossa primeira chance, e talvez a última nas próximas décadas.

Então, aqui está! A Terra parece que está apoiada em um raio de sol como se houvesse alguma coisa especial para esse pequeno mundo, mas é apenas um acidente ótico. Não tem sinal nenhum de humanos nessa foto, nem nossas mudanças da superfície da Terra, nem nossas máquinas, nem nós mesmos. Desse ponto de vista, nossa obsessão com o nacionalismo não aparece em evidência. Nós somos muito pequenos. Na escala dos mundos, humanos são irrelevantes, uma fina película de vida num solitário torrão de rocha e metal.

Olhe novamente para esse ponto: ele é nosso lar, ele xsomos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas, a totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas. Cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada jovem casal apaixonado, cada pai e mãe, cada criança esperançosa, cada inventor e explorador, cada educador, político corrupto, superstar, “líder supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, num grão de poeira suspenso em um raio de Sol.

A Terra é um minúsculo palco em uma imensa arena cósmica. Pense nas infindáveis crueldades infligidas pelos habitantes em um canto desse pixel nos quase imperceptíveis habitantes de algum outro canto, ou quão frequentemente são seus mal-entendidos, sua ânsia por se matarem, o quão fervorosamente eles se odeiam.

Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em sua glória e triunfo, pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma fração de um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginária auto-importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo é desafiada por esse pálido ponto de luz. Nosso planeta é um espécime solitário na grande e envolvente escuridão cósmica.
Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão não há nenhum indício que ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nós mesmos. A Terra é o único mundo conhecido até agora que sustenta a vida. Não há outro. Não há lugar algum, pelo menos no futuro próximo, em que nossa espécie possa imigrar. Visitar, talvez, assentar-se, não. Gostando ou não, por enquanto, a Terra é onde temos de ficar.

Tem-se falado da Astronomia como uma experiência criadora de firmeza e humildade. Não há, talvez, melhor demonstração das tolas e vãs soberbas humanas do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela enfatiza a nossa responsabilidade de tratarmos mais amavelmente uns aos outros, de preservar e acarinhar o único lar que conhecemos – esse pálido ponto azul.