Obras

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quarta-feira, 27 de maio de 2020

Combustão espontânea



COMBUSTÃO  ESPONTÂNEA 

Dê-me um fósforo e eu começo uma revolução! Ouvi essa fala em algum lugar, em algum momento, um filme talvez... não sei, mas não importa. Fato é que ela traduz com perfeição este momento tão singular que nem estranho é mais, é sinistro mesmo. Tenho escrito com (quase) obsessiva frequência sobre a natureza humana e a condição humana, duas coisas muito diferentes mas que, sob certa conjuntura, se cruzam, se chocam, e, ao se chocarem, provocam faíscas, e quando fagulhas caem em terreno encharcado de substância volátil a combustão é imediata. Basta uma faísca. Eu poderia listar vários posts em que tratei disso muito antes dessa pandemia, e a cada novo texto a situação parece piorar. Não só parece como piora mesmo.

Antes de tocar no coração do assunto (e falo de coração mesmo), quero lembrar algumas palavras de Jung a respeito dessa atmosfera de tensão que vivemos, na qual "forças demoníacas antes acorrentadas nas profundezas da psique lançam-se sobre as almas de milhões". Jung dizia que essas forças "aguardam em estado latente o momento em que condições políticas, sociais e econômicas façam ressurgir comportamentos primitivos e arcaicos" (o itálico é meu). E disse mais, que "a invasão da consciência por esses fundos psíquicos inconscientes, que submergem a razão e induzem a atitudes anormais, configura o que em psicopatologia se denomina psicose coletiva". Eu acrescentaria "comportamentos primitivos extremados". Agora olhe nos meus olhos e diga se ele não tem razão, diga se o que você vê pela sua janela o desmente. Como exemplo, darei um depoimento pessoal. Hora de falar ao coração.

Doeu-me fundo na alma quando, dias atrás, recebi mensagem de um ente muito querido que, a meu ver - e não tenho outra explicação - soou como uma provocação política gratuita, descabida e desrespeitosa. Pensei em ignorar, deletar a mensagem, mas optei por uma réplica educada. No entanto, as palavras foram num crescendo mais ardente, de ambas as partes, até que resolvi parar. Por pouco não perdi meu centro, por muito pouco não abandonei a sensatez. É sábio calar quando todos estão gritando. Não foi difícil identificar a matriz infantil daquela provocação, porque toda provocação é filha da imaturidade, que produz e expõe opiniões intestinais, irracionais, desinformadas e indefensáveis perante fatos concretos.

Me senti muito mal. Primeiro, não havia qualquer justificativa para o incitamento, ainda mais por quem o fez; segundo, por ter retrucado, porque não me calo quando estou seguro da meu poder de argumentar, mas, anda assim, me contive, coisa rara de acontecer, e terceiro, por baixar o nível da discussão. Já houvera um precedente de outra natureza que me causara profunda tristeza e mal-estar, e não queria passar por isso novamente. Se não sabe física, não discuta quântica. Vale lembrar ainda que toda provocação é, em última análise, negação da realidade para além do campo psicológico.

É esse o clima que recobre o mundo, que envolve as pessoas, que eleva a temperatura do mais simples diálogo, ferindo o espírito. Senti isso no seio familiar, o que é ainda mais doloroso. Não há um único analista social que não vislumbre um dia seguinte bastante sombrio, para dizer o mínimo. Esse estranhamento/enfrentamento atinge todos os estratos sociais e todas as esferas da vida pública, com relevo para a política como carro-chefe do debate transnacional.


Do meu posto de observação não vejo solução, e se há, ela deve partir do sujeito, do seu patrimônio moral e ético, que visivelmente se deteriora a cada dia; deve partir das instituições, que claudicam no cumprimento do dever porque são constituídas por sujeitos; deve partir do corpo social, igualmente formado por indivíduos, e dada sua diversidade e heterogeneidade, é praticamente inviável qualquer iniciativa ordenadora. Trocando em miúdos, estamos a dois passos não do paraíso, como diz a música, mas do inferno, e para isso basta só um fósforo. Ou ma fagulha.


Sou francamente otimista no que dependa das minhas ações e meus princípios, mas totalmente temeroso a respeito do outro, próximo ou distante. Por quê? Porque eu estou consciente da minha natureza e ciente da minha condição. Do outro, desconheço tudo. Sei até aonde posso ir, mas não sei se sei até aonde não posso ir. 

Não faço ideia de como será esse tal "novo normal" pós-pandêmico, só sei que não quero viver num mundo em que o distanciamento físico seja regra, que uma palavra possa ser o estopim de uma guerra, que um abraço me sentencie à morte ou que uma conversa à mesa se transforme numa carnificina verbal. Quero viver o que me resta viver cercado de afeição, não de fricção. Não pretendo riscar um fósforo, a não ser para acender meu candeeiro e seguir adiante. Cada um que se queime sozinho, mas acho que você percebeu a sutileza da última frase do parágrafo anterior. Com ou sem a tragédia que dizima milhares e corre insaciável mundo afora, o ser humano é o agente ainda mais letal, e seguirá sendo o que sempre foi - um animal, humano.

O homem não conhece o homem. Ele poderia ser maestro de si mesmo se soubesse ler a partitura. Como não sabe, é só um tocador de tuba. Não, não sou um visionário apocalíptico nem derrotista, muito menos negador das virtudes humanas. Elas existem, só que a realidade não me dá alternativas para pensar o contrário. Quem vê o mundo de modo diferente disso corre o risco de estar vivendo numa bolha de ilusão.

Estou errado? Pode ser, então quem tiver argumentos contrários solidamente fincados na ontologia do ser, isto é, na sua essência e não na exterioridade, na superfície, que se manifeste. Enquanto espero, tenho a humanidade no radar mapeando cada movimento, estudando cada gesto, sentindo a pulsação. Ela caminha trôpega em campo minado, e isso é desastre anunciado. Nosso velho conhecido Zygmunt Bauman dizia que somos indivíduos frágeis conduzindo nossas vidas numa realidade porosa, deslizando sobre uma fina camada de gelo. Se esta não for a chave que nos abre as portas da percepção para a realidade do mundo, então não sei qual será.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

LAVRA OU PALAVRA?

Uma entrevista* com a cientista política francesa Karoline Postel-Vinay, do Centre d'Etudes des Relations Internationales, de Paris, chamou-me a atenção para o ponto central que trata das incertezas científicas diante do cenário pandêmico mundial. Por ser longa, não vou reproduzi-la, apenas extrair algumas passagens para abrir a janela das nossas reflexões.

O foco da cientista está na Política, “que tem horror à zona vaga das incertezas”, gerando o que ela chama de “batalha de influências”, referindo-se ao confronto entre as narrativas política e científica. “Zona vaga das incertezas”, eis o biscoito fino que quero dividir com você, com ajuda da Karoline e de outros, sem tocar em política ou pandemia, temas que hoje ardem numa polarização passional onde a desinteligência é nota dominante.

Todos sabem que o universo científico toma o bonde das dúvidas, das indagações, das investigações, motivações e experimentações, que a conduz às respostas, descobertas, soluções, explicações, enfim, às “certezas”. Fora desse ambiente, contudo, a atitude é outra, e Karoline usa a Política no diálogo com a Saúde como exemplo, distinguindo a narrativa política de necessidade da de oportunidade. Sigo a partir daqui por outra vertente. Como não tenho o dom da síntese e o assunto apresenta múltiplas facetas, me esforcei para ser objetivo.

Como só a Ciência trabalha com a dúvida para encontrar a verdade, mesmo que leve um tempo maior que o desejado e tenha de refazer alguns caminhos, não se pode negar a ela o mérito de a humanidade estar onde está. Sim, é claro que existe o lado negro dessa força, mas não é disso que estou falando. Aliás, nem é muito de ciência que quero falar. Certos campos do debate renegam o valor do saber científico porque ele é sempre um “estorvo”, um empecilho, uma pedra no caminho. Sei bem do que estou falando porque convivemos - eu e uns poucos - com esse persistente enfrentamento de ideias.

A narrativa política de necessidade surge exatamente quando a “sua certeza” precisa prevalecer, dar respostas, para que o fluxo das ações, propostas, ideologias e crenças não se perca no vazio. Sobre a narrativa política de oportunidade, Karoline diz:
A oportunidade se dá quando já existe uma mensagem política que se quer desenvolver ainda mais, e esta situação [de crise] é uma oportunidade para promover certas narrativas, que não são totalmente novas. É preciso organizar uma narrativa que vá produzir algo plausível, que tenha um sentido, seja coerente.
Não será difícil entender o que ela quis dizer, se colocarmos no centro da discussão qualquer uma de nossas crenças - místicas, religiosas, culturais, sociais, etc. Toda narrativa não científica precisa fazer sentido, dar materialidade ao que é imaterial na essência, e a Ciência não faz isso, não entrega resposta na bandeja, não dá o prato pronto porque não escreve sua história levianamente. Se não se dá tempo ao tempo necessário, aposta-se na contranarrativa política, mística, metafísica, no ideário, no imaginário, na doutrina, ou simplesmente na necessidade da uma satisfação pública. Ou isso, ou a estrutura - qualquer uma - desmorona.


É o que Karoline chama de batalha de influências, e eu de queda-de-braço: ou se segue a narrativa científica de sólida construção histórica, ou a contranarrativa, com seu repertório de necessidades e oportunismos. Tem-se assim, numa ponta, responsabilidade, na outra, estabilidade no gelo. Paradoxalmente, é a primeira, robusta e com lastro, que encontrará as respostas, enquanto a segunda, transitória e fugidia, seguirá sempre em busca de um porto seguro, equilibrando-se precariamente na corda bamba das circunstâncias.

Mas cabe uma pergunta: Não haveria em algum momento uma ciência ideologizada, que atendesse a interesses outros que não o da ciência dia pura? A neurofisiologista da USP, Cecilia Café-Mendes, ressalta que uma série de trabalhos tem discutido que as ciências exatas e as biológicas, antes vistas como racionais e supra-sociais, também possuem um peso ideológico que não pode ser ignorado, e isso abre espaço para contestações. Cabe outra pergunta: Estaria a Ciência isenta de opiniões e ideias pré-concebidas que estejam em voga em determinado momento social? Quais as ideias extra-científicas camufladas nas hipóteses e teorias? Ela responde:
Ao se discutir se a ciência apresenta ou não um cunho ideológico passamos a discutir a capacidade de contestação. Uma teoria científica pressupõe uma possível refutação, questionamentos sobre seus métodos e crenças como ocorreu, por exemplo, com a teoria geocêntrica desenvolvida por Ptolomeu, e com a teoria heliocêntrica formulada por Copérnico. Ideologias são recorrentemente tidas como verdadeiras e inquestionáveis. Entretanto, assim como as teorias científicas, as ideologias também são superadas e revistas dependendo do momento histórico.
Oswaldo Pessoa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, afirma que “apesar de as teorias científicas apresentarem um núcleo objetivo, há também teses interpretativas, ou seja, desvinculadas de experimentos”. Pessoa alerta, entretanto, que nem sempre uma dada interpretação é necessariamente a defesa de uma ideologia, ela simplesmente pode estar influenciada pela cultura reinante no contexto social do grupo. Cecilia entende que, dentro desse contexto, pode-se inferir que a base das ideologias também nos leva a compreender as bases da ciência. Umberto Eco entra na conversa com a questão de se saber se a Ciência não se comporta de forma dogmática quando se entrincheira atrás dos muros de um determinado paradigma, para defender seu poder e rotular como heréticos todos aqueles que desafiam a sua autoridade. É uma possibilidade que não se pode ignorar.

Não é por outra razão que Edgar Morin aconselha a fazer ciência com consciência, porque nela nada é absoluto como nada é relativo, solicitando, sempre, autorreflexão, autocrítica, convivência com a incerteza, a complexidade, o conflito e o jogo entre todos. A Ciência está a serviço da sociedade, ambas em transformações e releituras num permanente processo de autoanálise e autoconhecimento. Ambas não estão imunes a contaminações, deturpações, interpretações, fracassos e sucessos porque são interdependentes. Morin:
Vivemos uma era histórica em que os desenvolvimentos científicos, técnicos e sociológicos estão cada vez mais em inter-relações estéticas e múltiplas. Faz falta uma ciência capital, a ciência das coisas do espírito, ou noologia, capaz de conceber como e em que condições culturais as ideias se agrupam, se encadeiam, se ajustam umas às outras. Falta-nos uma sociologia do conhecimento científico.
O embate entre Ciência e Crença (porque no fundo é disso que se trata) atravessa milênios, com larga vantagem cronológica para a crença, que veio com o homem desde quando ele vislumbrou as estrelas, os fenômenos celestes e telúricos e não obteve respostas para o seu assombro. Então, passou a crer naquilo que ele próprio formulou em sua consciência para apreender o mundo. A Ciência, por sua vez, é mais “recente”, surgida há cerca de 5 mil anos com os sumérios, gregos e chineses, mas só se consolidou no século 16.


Pode-se crer que o aquecimento global seja uma bobagem, uma mentira, mas se a Ciência o comprova através de estudos técnicos e medições rigorosas por longos períodos em várias partes do planeta, então não há como negar a curva crescente da temperatura. O mesmo sujeito que acha a pandemia uma histeria estará amanhã na fila do teste, usando máscara.

Crença é escolha pessoal, por exemplo Terra plana), ciência é fato universal, como o teorema de Pitágoras. É assim que a roda gira, não há meio termo, ou a narrativa é desidratada pelar necessidade ou falaciosa pelo oportunismo, ou está assentada na materialidade do fato. Ciência não é mitologia, não é magia, não tergiversa, não torce, não discute, não reza, não espera. Ciência faz, e faz a diferença porque trabalha, transpira, semeia e colhe. 

quarta-feira, 13 de maio de 2020

INVASÃO ALIENÍGENA


Finalmente aconteceu o tão acalentado sonho dos ufólogos, dos fanáticos, dos tolos, crédulos, esotéricos e profetas do apocalipse: o mundo sob invasão alienígena! Atenção, eu disse alienígena e não extraterrestre, é diferente. Do latim alien - estranho, de fora, alheio. Sim, estamos sob ataque aéreo tomando o planeta de assalto. Sim, são seres malignos que invadem nossos corpos, como em Invasores de Corpos, destruindo-os, matando-os, exceto algumas pessoas que, por razões ainda não muito claras, sobrevivem, tipo heróis da resistência. Essas criaturas são esféricas tais como descritas na casuística ufológica, com antenas ou “chifres” como os entes do mal, microscópicas lanças venenosas e letais. Não era a invasão que queriam, mas a outra não terão. 

É claro que você entende que a comparação não é para fazer graça, ainda mais em um momento tão estranho quanto o mundo em que vivemos. É só um pretexto para engatar o assunto de hoje. Se fôssemos lembrar outa obra cinematográfica, estamos quase que testemunhando O dia em que a Terra parou, só que ao invés de ficção, é realidade, dura e cruel. Os estragos que esses organismos estão fazendo são pavorosos, e estamos só começando a conhecer seu poder de devastação. Outros danos e possíveis sequelas estão por vir.

Sua origem é incerta, primeiro falou-se de contaminação animal, depois, de um acidente (ou não) em um laboratório de pesquisa viral, daí descambou para todo tipo de conspiranoia - conluio de instituições oficiais e imprensa mundial para instaurar uma nova ordem planetária, estratégia chinesa de dominação econômica para abater o capitalismo e o imperialismo americano e fazer ressurgir o comunismo, farsa, histeria, fantasia, exagero e outras piruetas. Não importa, fato é que vieram para ficar. Melhor seria que fosse mesmo uma invasão alienígena.

E há ainda outra invasão em curso, dessa vez dentro de casa, a dos profissionais de saúde - epidemiologistas, infectologistas, virologista, psicólogos, que se esforçam para entender e esclarecer a coisa toda. Em paralelo, cientistas políticos, economistas, sociólogos, futurólogos e políticos, estes sem a menor noção do que estão a dizer. Os primeiros baseiam-se em fatos, dados técnicos, gráficos, números, observações, UTIs lotadas, falta de leitos, vida que se esvai, companheiro que se vai, covas sem fim, quarentena sem fim, plantão sem fim, problemas sem fim. Os segundos, em projeções, abstrações, tendências e especulações, recorrendo à história pregressa das semelhanças. Nenhum deles aposta que tudo vai se acabar na quarta-feira, porque não é carnaval, mas tem gosto de cinza. São dois mundos por ora antagônicos, versão moderna de Guerra dos Mundos. Que mundos? 

De um lado, ciência e consciência, de outro, negligência, imprudência, incompetência e ausência. De um lado dedicação e tensão, de outro inação, omissão e disrupção. De um lado, dor pela desgraça, de outro rancor com ameaça, trapaça, mordaça. De um lado, escolha de Sofia, de outro, luto da Ética. De um lado, agonia interminável, de outro, ironia irresponsável. De um lado, vítimas de um mal sinistro, profundo e atroz, de outro, vítimas de um mau ministro, iracundo e sem voz. De um lado, máscara, morfina e medo, de outro, Hermès, Prada, Chivas, Rolex, Bulgari. Indecente e criminosa discrepância. No meio desse vácuo abismal, atarantados iguais e desiguais se misturam na fila do banco, da farmácia, do feijão, do caixão, literalmente Perdidos no Espaço. Os alienígenas não vieram só para devorar nossas entranhas, mas para nos transformar por fora, mostrar o que somos de fato. A miséria vai muito além da matéria, vai Além da Imaginação.

O bom e velho Raul Seixas cantava profetizando, 40 anos atrás: “As pessoas do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa” ... “o empregado não saiu para o trabalho” ... “a dona de casa não saiu para comprar pão” ... “o guarda não saiu para prender”... “o ladrão não saiu para roubar”. Soa mais leve que a poesia de Murilo Mendes, cruciante, bela mesmo assim, O homem, a luta e a eternidade:
Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo,
vertigem,
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo para se definir
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno para te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!
Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição.
E não haverá mais tempo.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

ERRANTES POR NATUREZA

Enquanto saboreava um sanduíche observando as borbulhas do refrigerante subirem à tona, a tela do computador exibia uma miríade de pontos luminescentes vagando no fundo negro do espaço. Estranha semelhança com nós humanos: de um lado, bolinhas vazias subindo apressadas pelo líquido em direção à superfície para estourar em no nada, sem notarem o nutriente que as mantém; de outro, corpos que se distanciam e se isolam cada vez mais num balé caótico em direção a lugar nenhum, indiferentes à beleza do meio que os cercam. Curiosa semelhança a ver com o assunto de hoje.

Durante muito tempo, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman lançou e defendeu a ideia de “sociedade líquida”, expressão que se consagrou e se tornou âncora em muitos estudos, trabalhos e discussões acadêmicas e não acadêmicas. Esse conceito de liquidez se desmembrou em amor líquido, medo líquido, tempo líquido, modernidade líquida, mundo líquido, demarcando um movimento social de resiliência e adaptação às mudanças cada vez mais vorazes e incontornáveis que o mundo patrocina. É a civilização se amoldando às contingências que ela mesma elabora. Até aí, nenhuma novidade, quem é da área e acompanhou a trajetória de Bauman há de concordar, quem não é, mas vive antenado, certamente já teve em mãos um de seus livros ou assistiu debates a respeito.

Ocorre que essa transfiguração caleidoscópica do mundo está delineando um novo padrão de sociedade, onde a pandemia que nos assola é um acontecimento fortuito que se torna apenas um fator a mais nessa equação, não sendo o principal. O que coloca esse corpo social em ebulição é o indivíduo e suas ações, seu aparelhamento psíquico, seu não lugar no ilusório lugar de um grupo. Esse novo perfil começa a se deslocar do estado líquido para o gasoso, volátil, instável, efêmero. Nesse contexto, as partículas, vaporosas, perdem seu elemento agregador, tornando-se aleatórias.

Volátil, do latim volatilisvolare - que pode voar, por extensão, disperso, errático, inconstante, mas é entendido também como aquilo que evapora facilmente. Volátil nas ações de curto prazo, no imediatismo compulsivo, na premência de respostas, na superposição de agendas, em prejuízo do tempo como vetor de qualificação, equilíbrio e consolidação de resultados e maturação destas mesmas ações. Volátil pela visão de curto alcance, ou falta dela, ausência de planejamento duradouro e reflexão crítica. Volátil pela falta de informação ou excesso de má informação em um mar de desinformação. Volátil nas emoções, relações, sentimentos e valores. Volatilidade está associada a outros aspectos - efemeridade e voracidade, mas não só. Aí as areias do tempo apagam as pegadas antes que o próximo passo seja dado, e a história não vai perdoar. 

Esse padrão efervescente de humanidade está calcado na superficialidade, na ausência, no cinismo, na futilidade e artificialidade; o sujeito literalmente dissolvido na massa disforme, na multidão de solitários, no coletivo espectral de anônimos. Solipsismo compartilhado. Já falei disso aqui, óbvia menção às redes sociais, hoje principal canal de “integração ideológica”, quando não seu condutor: Se os membros da comunidade estão em sintonia com uma determinada proposta, o grupo se fortalece, mas se houver uma voz dissonante ela será bloqueada, excluída, deletada. Não, a rede não é um mau negócio, ruim é o que se faz dela quando o interesse privado se sobrepõe ao público, ao ético comum. Por quê?

Porque o dado perturbador é que essa volatilidade é descontrolada e irrefreável, como todo elemento gasoso. Volatilidade, efemeridade e voracidade formam um quarto elemento, por si autodestruidor - vulnerabilidade. Juntas, elas alienam e entorpecem a consciência para negar o real. Segundo o sociólogo francês Jean Baudrillard, massa não é um conceito, mas uma noção fluida, viscosa, um conjunto vazio de partículas individuais, de resíduos do social e de impulsos indiretos: “opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes para finalmente desabar sobre seu próprio peso. Buraco negro em que o social se precipita”. A massa é heterogênea, entrópica, disruptiva (como pensar em coesão e unidade?), torpedeada por estímulos, provocações, solicitações e signos, constituída por sujeitos de pensamentos fragmentados, míopes e atomizados. A bolha gasosa se expandirá até que sua termodinâmica a faça explodir. Ou implodir.

Mencionei a pandemia, e sendo um tema presente e premente, cabe retomar o exame. Qual o efeito que esse distanciamento/isolamento social poderá causar no que os especialistas chamam de “novo normal”? Ora, se eles mesmos se cercam de incógnitas, eu não me atreveria a um exercício de futurologia, mas me dou sim o direito de propor algumas possibilidades. O mundo pós-pandemia pode desencadear, num primeiro momento, o desejo do reencontro de amigos e familiares, reuniões, festas, jantares, comemorações, passeios e viagens, ainda que o risco de contágio e aumento da curva de contaminação, internação e morte volte a crescer. Seria uma volta à normalidade com outros padrões de comportamento. No contraponto, a consolidação do home office, as aulas online, as reuniões não presenciais, lives, fortalecimento do comércio eletrônico e outras atividades remotas servidas pela revolução digital parecem conduzir à atomização social preconizada por Baudrillard. É difícil antecipar os danos colaterais em qualquer um destes cenários. Que o mundo não será mais o mesmo todos parecem concordar, o problema é esse estranho e incômodo “não será mais o mesmo”.

Fato é que a mudança já começou e é irreversível: a presença do corpo já não é tão imprescindível, o face-a-face perdeu relevância. O relevo do real tornou-se achatado pelas telas do virtual; só a imagem importa, impulsionada pelo motor veloz e voraz do consumo. Quando quantidade passa a valer mais que qualidade, o risco é incalculável e inexorável; os transtornos psíquicos e sociais se multiplicam, a memória perde a memória, a consciência perde a consciência, a cultura perde a cultura. Não é pouco. A mobilidade do indivíduo tornou-se outra, deu lugar à inércia crescente - a mobilidade no mesmo lugarÉ de se notar que há 100 anos o filósofo e crítico literário Walter Benjamin já se preocupava com a mudança de patamar da experiência humana, pela via da tecnologia, entre a atividade coletiva e o fortalecimento da vivência da solidão. Os efeitos dessa mudança estão se verificando no cerne da pandemia.

Um estudo militar americano do final dos anos 1980 já analisava as consequências do avanço tecnológico que se instalava no cotidiano, e descrevia o mundo como volátil, incerto, complexo e ambíguo. Poderia parecer uma visão profética do quadro atual, mas não, é uma projeção linear de perspectiva histórica. A perda do emprego, por exemplo, um marcador social e econômico referencial da própria existência, o porto seguro, é uma das consequências, quiçá a mais grave, de onde deriva o impasse do capitalismo: como ele pode sobreviver se descarta empregos mais rapidamente do que os consegue criar? A economia mão pode girar com base em aposta e risco, incerteza e achismo, pois é frágil demais e desconhece todas as variáveis do “mercado”. Como as grandes corporações vão gerir seus negócios globalmente e as pequenas, localmente? Como a geopolítica vai redefinir e administrar suas “fronteiras sociais”? O “custo-saúde” vai se pautar pela tecnologia de ponta ou pelo paciente na outra ponta? Quais valores vão permanecer, quais serão descartados e quais surgirão dominantes? O que será feito da Educação, da Política, da Cultura, da Economia, da Segurança. da Justiça? A Ciência terá novo statuCiência é caminho, construção, ruptura, remoção de obstáculos. Qual será a sua ética no “pós-humano”, técnicos montando cyborgs em larga escala ou médicos salvando a espécie em tendas de campanha? 

Se o indivíduo perde seu valor funcional, se se torna “invisível” aos olhos do Estado, pulverizado e desenraizado do tronco social, se deixa de ter um “rosto” para ser mera estatística, por que então se investe tanto em sistemas de geolocalização, em níveis de valoração pessoal, em programas de reconhecimento facial e mapeamento de costumes e comportamento? “Eu sei quem você é e o que fez no verão passado” não é mais ficção, é vigilância explícita, de todos para todos, consensualmente. Big Brother é o Big Data - informação é poder. Liberdade cerceada é falsa liberdade, ou seja, privacidade e segurança já eram. Se a rede é sua única companhia, saiba que você só é mais um  no rebanho.


O mundo real requere análise e visão realistas e não escapistas, exige leitura objetiva e não subjetiva, porque opera com fatos e princípios físicos, e não com ilações e metafísica. Entretanto, se o horizonte está turvado pelas incertezas, pela impaciência, voracidade, volatilidade, indefinições, impermanência, ambiguidades, ambivalência, transitoriedade, complexidades e contradições, qual direção seguir? Numa existência errática desde o nascedouro, não existe norte quando se é partícula cega debatendo-se no vazio.

Pandora sumiu, está em algum lugar incerto e não sabido, e deixou a caixa vazia.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

INIMIGA ÍNTIMA

 Sou tão íntima que sei tudo sobre você, te acompanho desde o nascimento e vou ficar até o último dos seus dias. Por mais que se esforce, jamais se verá livre de mim. Estou em todos os lugares. o tempo todo. Vou repetir: em todos os lugares o tempo todo, nas escolas, no esporte, na ciência, na política, na família, nas ruas, nas religiões, até o Papa fala de mim às vezes, de forma velada e a contragosto, mas fala.

Vou brincar de forca com você, aquele joguinho de descobrir uma palavra adivinhando as letras que a compõem, quem sabe isso revele quem sou. Presumo que queira começar com a letra A, como todo mundo. Acertou, tenho-a duas vezes, a de amor, de atenção, de altruísmo, mas não se iluda, não tenho nenhuma dessas virtudes. É a primeira pista. Talvez agora você peça a letra E, de esperança, ética, educação ou estudo, coisas com as quais definitivamente não tenho nenhuma afinidade, e aí você errou, então estou desenhando a sua cabeça na forca. Outra pista dada. Quer tentar o I? Essa é fácil, acertou novamente, e também ela se repete no meu nome. Só restam duas vogais, O e U, qual vai ser? Vou dar um tempo para você pensar.

Eu não conto a história do mundo e sim a da humanidade, afinal cheguei junto com os homens, nasci com eles, nasci deles, e agora eles me pertencem, embora pensem o contrário. Sim, você me pertence também. Sou íntima de todos os senhores do mundo, do mais inteligente ao mais tolo - imperadores, reis, rainhas, tiranos, sacerdotes, fidalgos, autoridades, soberanos, líderes, generais, guerreiros e governantes. Convivo com operários, banqueiros, prostitutas, ladrões, canalhas, patifes, damas e cavalheiros. Frequento bordéis, hotéis, palácios, condomínios, gabinetes, coberturas e favelas. Flertam comigo doutores, literatos, artistas, eruditos, cientistas e santos e filósofos; os sábios não me negam, reverenciam-me com diálogos permanentes. Porque são sábios. 

Escolheu a próxima letra? Quer partir para as consoantes? Que tal M, ou R, S talvez... Vai tentar T? Errou de novo, e agora traço seu tronco na forca. Você disse C? Boa pedida, acertou! E a F, pode ser? Você não sabe se estou te induzindo ao erro ou ao acerto, não é mesmo? Não tem como saber porque, de qualquer modo, vou vencer, como sempre, mesmo que você acerte todas as letras ou pronuncie meu nome de primeira. Aceita o desafio de continuar ou vai desistir?

Eu participei do começo de todas as guerras, todos os conflitos e todas as batalhas, mas não testemunhei seu fim. Eu estou no ato de você abrir um livro, e posso também ser a causa de você fechá-lo. Estou ao seu lado na sala de aula, na biblioteca, na consulta médica e no vestibular. Estou presente na conversa de bar, na discussão política, no debate acadêmico e até no jogo de futebol, acredita? Às vezes apareço de surpresa à mesa do jantar, na hora de discutir a relação ou no meio de uma reunião de trabalho. Posso ser a causa da vida e da morte, e de muito do que acontece entre uma e outra. Não facilito as coisas, a vida é complexa, ambivalente, caótica e distópica.

Você não pode me tocar, não pode me ver, nem falar comigo, até porque eu não te darei ouvidos. Você nada sabe sobre mim, eu sou uma esfinge, inviolável, e por mais que queira saber, jamais conseguirá, porque quando me decifrar, já não estou mais lá, terei mudado de lugar. Eu também nada sei sobre mim, nunca poderei saber, não tenho como saber. Um famoso poeta português escreveu que eu e a inocência é que somos felizes, mas não o sabemos. Um filósofo disse que sou uma benção dos deuses. Eles têm razão, mas porque só olharam para uma das minhas três faces, a mais bela e mais jovem. A segunda estampa desperta compreensão e tolerância, mas a terceira, essa é tão terrível que me deixa poderosa a ponto de destruir o mundo num rompante de ira. Tenha cuidado, convém não me provocar, sou temperamental, diabólica, imprevisível, explosiva, traiçoeira, indomável, corrosiva, impulsiva, camaleônica, instável e ressentida. Sou pouco dada a conversa, na verdade, entendimento comigo é zero, e embora ninguém me queira por perto, cresce o número de adeptos. Como explicar?

Já descobriu quem sou? Se sim, muito bem, darei uma trégua e voltarei amanhã, caso contrário, tarde demais, a brincadeira acabou e seu corpo já está pendurado na forca. Eu avisei. Dei várias pistas e confundi deliberadamente, sem mentir, para te fazer pensar, como fazem o filósofo e o sábio, mesmo que não seja um deles. Vale a pena o esforço. Acho sugestivo lembrar Clarice Lispector: Decifra-me, mas não me concluas, eu posso te surpreender.