Obras

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2017


O OUTRO NO ESPELHO DE NARCISO, QUEM É?



Apesar de narcisismo ter sido referido pelo viés filosófico no curso dos meus estudos, não posso deixar de fazer uma brevíssima inserção sobre o Mito de Narciso pelas letras da Psicanálise, de onde emergem as melhores definições. Para isso, exploro um pouco a competência de Ana Vicentini:
Podemos também ver esse jogo¹ sob a ótica do mesmo e do outro, do paradoxo que preside à pulsão de Eros: na busca do outro, busca-se o que falta a si mesmo, busca-se a reparação ou ortopedia da falta e, em última instância, a perfeição do Todo. O que o mito erótico de Narciso sublinha, em cores trágicas, é que essa busca pela completude necessariamente passa pelo outro, mas por um outro não mais tomado como tal, mas reduzido à imagem de si, a um reflexo. É com esse reflexo, com essa “sombra tomada como substância”, que Narciso se identifica e na qual se perde de forma trágica. Ao invés do jogo amoroso da reciprocidade, Narciso põe cruamente em jogo a lógica da reflexividade, da confluência sobre si de sujeito e objeto, encerrando-se em uma circularidade mortífera.
Nesse ponto, Ana enfatiza que é no mito de Narciso que a Psicanálise encontra uma valiosa fonte para teorizações sobre identidade e identificações, e acrescenta que Lacan também se ocupou bastante com o drama do espelho em seu conhecido trabalho "O estádio do espelho como formador da função do eu". "A criança (l’infans) é capturada pela imagem completa e totalizante de seu corpo, fragmentário e sem coordenação, que se forma no espelho. A imagem especular precipita-o de um estado de prematuração motriz, inerente à espécie humana, como lembrou Freud, ao regozijo de uma imagem que justamente vai conformar esse corpo despedaçado em uma ilusória totalidade."

Freud também se ocupou do mito, construindo a concepção metapsicológica de sua teoria sob os pressupostos básicos da noção de sexualidade do aparelho psíquico e do recalque observados na prática diária. Contudo, é quando ele começa a compreender as psicoses a partir dos preceitos psicanalíticos que se iniciam as revisões e inovações em sua visão, surgindo a partir daí o conceito de narcisismo. Freud atesta a aplicabilidade da teoria sexual também às psicoses, firmando a sexualidade como propulsora do funcionamento do aparelho psíquico. Mesmo partindo da psicose, Freud não se limita a ela, ampliando o narcisismo também às neuroses. No transcorrer do estudo, ele relaciona as pulsões sexuais com “necessidades”, que chama de pulsão de autoconservação.

Aos poucos, Freud vai adensando seu trabalho, e em “Totem e Tabu” ele reformula sua concepção, afirmando que o narcisismo não seria apenas uma fase passageira do desenvolvimento sexual do sujeito, e sim uma estrutura perene, envolvida na formação do Eu. Por fim, usa das observações da esquizofrenia, da vida mental de crianças e dos povos primitivos para desenvolver o conceito do narcisismo. Segundo ele, enquanto na esquizofrenia há uma retirada da libido do mundo externo para o Eu, na neurose a libido retirada dos objetos externos será investida nos objetos da fantasia. Para finalizar, em “Além do Princípio do Prazer”, Freud introduz o conceito de pulsão de morte, substituindo os termos pulsões do eu e pulsões sexuais por pulsões de vida e pulsões de morte, que teriam desdobramentos em outras obras. 

Ainda para Ana Vicentini,
Paralelamente ao júbilo que essa imagem especular provoca, permanece, tal como para Narciso, o hiato entre ela e o sujeito: ao mesmo tempo em que ela sou eu, ela é outro que não eu. Para estabilizar esse pequeno júbilo delirante, há a presença de um terceiro termo, de um grande Outro (na expressão de Lacan), diverso desse pequeno outro identificatório da imagem, que pode aquiescer ou negar a exclamação de Narciso ao se reconhecer: “Iste ego sum.” (Este sou eu.) Dito de outra forma, subjacente a essa imago idealmente completa, há uma tensão paranóica em relação ao que esse Outro pode fazer: reconhecer o reconhecimento ou negá-lo, afirmar o sujeito ou negá-lo. Esse drama, cuja dimensão de ficção, de metáfora, não nos deve passar desapercebida, adquire o status de uma matriz na estruturação subjetiva e irá presidir às relações do sujeito com o mundo.
Segundo Lipovetsky, toda geração costuma eleger uma figura mitológica ou lendária para se identificar, reinterpretando-a de acordo com o momento vivido. “Hoje em dia é Narciso que, aos olhos de considerável número de pesquisadores [...] simboliza os tempos atuais.” Instala-se, dessa forma, um novo paradigma de individualismo, que designa um novo perfil nas relações do sujeito consigo próprio, com seu corpo, com o outro, com o mundo, com o tempo, no momento em que surge uma cultura inteiramente voltada ao hedonismo e ao permissivo.

A comprovação do heliocentrismo retirou do homem o protagonismo na peça cósmica, Deus deixa de ser o centro do conhecimento, deslocando a verdade mais uma vez. Demolir um dogma de mais de mil anos, ir contra todas as concepções geocêntricas de Ptolomeu e todos os saberes da Bíblia e os ditames da Igreja era algo inaceitável, mas o golpe foi letal e certeiro na autoestima e no orgulho do homem. Não bastasse essa dura realidade, 200 anos depois foi a vez de Darwin lacerar a alma ao demonstrar que éramos apenas uma consequência natural da evolução da vida no planeta, aparentados com os primatas, uma espécie proveniente da combinação aleatória de genes, e não uma criação divina. Como escreveu Millôr Fernandes com acre ironia, “O homem é um macaco que não deu certo”.  Os pilares dos estatutos religiosos começavam a ceder. 

E o derradeiro golpe e desferido por Freud, ao apresentar as bases científicas sobre o inconsciente. O homem deixava definitivamente de ser o centro do mundo e senhor de si mesmo. Sua dignidade se esfacelara, e nessa topografia acidentada ele começava a conhecer sua frouxidão, seus temores e suas inquietudes, escancarando sua vulnerabilidade mais profunda, comprovando quão longe está da maioridade no calendário do universo. Condensando esse trajeto, o homem deixou de ser o centro do Universo (Copérnico), o centro da espécie (Darwin) e, como último prego do caixão, o centro de si mesmo (Freud), isto é, não passa de uma criatura vazia que só sobrevive graças à sua estrutura de linguagem. E é a linguagem o define.

"O espelho de Narciso" - completa Ana - "mapeia todo um campo visual onde se constroem e destroem imagens, identidades - ou melhor, identificações -, relações amorosas e revela, como em um baixo-relevo, um outro registro subjacente a esse cenário imaginário. Ama-se a si próprio através do outro e assim se confunde a reciprocidade do amar e ser amado, da voz ativa e passiva, tão cara, por exemplo, à tradição cristã. Uma confusão de vozes verbais que pode ser vista pela ótica de uma voz marcante da língua grega, a voz média, de valor reflexivo, cuja importância para a gramática da psicanálise foi ressaltada tanto por Freud quanto por Lacan no que concerne às vias e aos desvios da pulsão."

Achou o tema complexo? Eu também, mas quem disse que é fácil compreender a nós mesmos? Há muito mais por debaixo dessa fina película que nos reflete. Tomando como ponto de partida o delicado poema de Cecília Meireles - "Em qual espelho ficou perdida minha face?", podemos divagar... De quantos espelhos preciso para encontrar minha face? Qual deles a revelará? O que revelará?
 

¹ “Ele ama uma esperança sem substância e crê que é substância o que é somente sombra.” Ovídio (43 a.C. -18 d.C.)
____________________
Ana Vicentini de Azevedo, Mito e Psicanálise . J. Zahar, 2004.
Gilles Lipovetisky, A Era do Vazio. Manole, 2005.
Sigmund Freud, Totem e Tabu. Cia. das Letras, 1999.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017


ESPELHO QUE NOS REVELA - 1 

Crer em criaturas fabulosas é como estar diante de um espelho prodigioso que nos permite ver e entender a nós próprios de maneira muito mais clara e verdadeira, desde que se tenha coragem para tal. Confrontar o mundo exterior é encarar o mundo interior, real termômetro de nossa estabilidade psíquica e mental. Ainda que com ressalvas, Jung afirmava que a maior vitória da sanidade foi a conquista da racionalidade. Assim como o mito, a religião e a ficção – e aqui nos permitimos uma breve digressão, a arte também tem ligações com as forças inconscientes. Aniela Jaffé, discípula de Jung, estudou o modo como a arte moderna pretende restabelecer aquelas conexões, mostrando quais são os símbolos religiosos subjacentes a esse movimento artístico.

O escritor e roteirista Lúcio Manfredi destaca esse aspecto. Tomando por base para exemplificar a produção artística de Salvador Dalí e René Magritte, ele postula que um dos motivos pelos quais o estudo das obras de arte é útil para compreender o fenômeno Óvni é a vertente psicossociológica porque, independentemente de sua origem, os discos voadores são uma espécie de espelho no qual, à maneira das figuras de Rorschach, o homem projeta as questões centrais de sua vida e de sua sociedade. Se no mundo exterior surge algo novo, estranho à nossa compreensão, só podemos recorrer a signos igualmente novos para interpretá-lo, e não ficar tentando adivinhar possíveis respostas ou arranjando explicações  espúrias e delirantes.


É isso que faz a psicóloga junguiana ao relatar que os rumores sobre discos voadores começaram a circular mais ou menos na mesma época em que o símbolo do círculo tornou-se dominante na pintura moderna. Usando como referências Vassily Kandinsky, Paul Klee e Pierre Delaumay (sequência abaixo), entre outros, Jaffé sugere que tanto essas obras quanto as aparições dos discos sejam interpretados como uma tentativa da psique inconsciente coletiva para curar a dissociação de nossa época apocalíptica através do símbolo do círculo.

Contudo, o espelho revela algo além do que nossos olhos veem: revela, na verdade, o que não vemos. E o que não vemos ou não queremos ver? Quando diante do espelho, literal ou alegórico - o cinema ou a ficção, por exemplo - o que está refletida é a imagem do Narciso em nós, não do 'monstro' que nos habita e que nos escapa como viajante nômade.

O monstro nunca pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz sua imagem. O espelho refletirá sempre a divindade, o herói: se a face do Outro revela a nossa, ela não pode jamais ser “ultrajada”, pois que feita “à imagem e semelhança do Criador”, logo, o monstro "não existe", e por não existir, será ignorado. A presença do monstro representa uma anomalia, um desvio, uma (dis)torção, um afastamento do modelo divino, ou seja, uma condenação do corpo. Para Umberto Eco, o espelho fala a verdade de modo desumano – a perda da ilusão sobre a própria juventude. Mas o monstro existe, e por ele se colocam questões extremamente contemporâneas, porque precisamos de sua imagem para retomar a reflexão sobre a humanidade do homem, uma vez esgarçadas as certezas de sua identidade e integridade. 

Diante deste quadro, embora Tucherman refira-se mais diretamente ao hibridismo dos cyborgs, entendo e aplico sua escrita a qualquer outro, monstro ou não: “Pois não é a oposição simples que marca a diferença entre monstros e homens, mas um sistema complexo de aproximações e distâncias. Sendo o Outro, ele não é externo como deuses e animais, vigora sempre no limite do humano, um limite “interno”, produtor de figuras estranhas em relação às quais não deixamos de nos perguntar se são efetivamente humanas, já que nos surgem como a folia do corpo, o desregramento da cultura, a desfiguração do Mesmo no Outro. Como algo com o qual não nos confundimos, mas também não nos diferenciamos totalmente: nesse sentido, sua definição é instável e sua alteridade é móvel.” No mesmo texto, ela cita um pensamento de Ralph Waldo Emerson, de 1832: “Os sonhos e as bestas são duas chaves através das quais vamos descobrir nossa natureza, são objetos de prova”.

Sherry Turkle, também citada por Tucherman, afirma que ele, Emerson, “encontrara (antecipara) os objetos de pensamento da modernidade, sendo profético: Freud pensou a racionalidade confrontando-a com o sonho; Darwin e seguidores pensaram o mesmo confrontando o homem com a natureza: o mundo das bestas visto como nosso passado e ascendência”. Tucherman finaliza: “Os monstros talvez existam para nos mostrar o que poderíamos ser, não o que somos, mas também não o que nunca seríamos, e assim articulam a questão: Até que grau de deformação ou estranheza permanecemos humanos?”

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Lúcio Manfredi, Os Óvnis da Dalí. Metaxy, Rio de Janeiro, 2003.
Carl G. Jung, O Homem e seus Símbolos. Noca Fronteira, 19686.
Ieda Tucherman, Breve História do Corpo e de seus Monstros. Vega, Lisboa, 1999.
_______. A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo.
www.comciencia.br/reportagens/2004/10/09.html. Acessado em 12/01/2014.
Umberto Eco. Signo. São Paulo. Presença. 2005.
 05.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017


A ÁRVORE DE DOURADOS FRUTOS


Hoje trago uma pequena fábula que mais parece um conto de fadas sem fadas, príncipes, batalhas, cavaleiros, tesouros e criaturas fantásticas. A autora é a querida amiga Laura Elias, escritora e contadora de histórias. O texto foi publicado, não por acaso, ao contrário, na obra A Desconstrução de um Mito. A entenderá é muito óbvia.

Era uma vez um reino onde as pessoas possuíam pouco alimento. Não que a terra fosse improdutiva ou não houvesse possibilidade de se encontrar novas fontes, mas apenas porque costumeiramente os habitantes de lá consumiam sempre as mesmas coisas. Um belo dia, surgiu uma árvore carregada de frutos dourados e chamativos, cuja aparência suculenta levou os esfomeados habitantes do reino a salivarem de desejo.
Os olhos brilhavam de encantamento, admirando a beleza que aqueles frutos dourados invocavam em seus inconscientes. Agarrados à expectativa de receber um alimento rico e saboroso, não ouviam os que, à sua volta, preveniam contra o perigo que os frutos representavam. Ninguém sabia de onde tinham vindo e do que eram feitos!
Completamente tomados pela sedução que brotava de suas almas, pelas promessas contidas naquele alimento, atiraram-se a ele, devorando, enlouquecidos, a casca dourada, a polpa macia, o doce sumo. Durante algum tempo, sentiram-se felizes e saciados, toda a sua fome havia sumido! Mas então, algo começou a acontecer.
Primeiro, foi o comportamento que se alterou. Passaram a ver aqueles que recuavam à sedução dos frutos como pessoas obtusas e frias, cujas opiniões advinham do fato de não se deixarem levar pelos apelos da alma, não ouvirem seus corações. Passaram a se reunir em grupos onde discutiam as benesses dos frutos, de que forma haviam se tornado pessoas melhores, mais brilhantes, mais sábias, apenas porque se alimentavam daquelas maravilhas.
Aquele fruto estupendo, cuja aparência sedutora, gosto imebriante e polpa carnuda os fascinavam, mostrou finalmente o que era. Jazia em sua essência um veneno de ação lenta, que aos poucos atingiu com violência àquele que alimentava. Alguns morreram, muitos perderam a capacidade de raciocinar, a maioria enlouqueceu.
Comenta-se que após certo tempo, outras árvores foram surgindo ao longo do reino e as pessoas, ainda que conhecendo a história da primeira árvore, recusavam-se a aceitar que fossem iguais e continuaram a alimentar-se dos frutos malignos. Nenhuma delas jamais se perguntou por que, mesmo sabendo que estavam se envenenando, atiravam-se, famintas, à sedução que as douradas cascas ofereciam.
A resposta, talvez, os fizesse ver que não precisavam daquele alimento, mas que poderiam melhorar os já existentes. Era só querer. Exatamente aí residia o problema. 




sábado, 18 de novembro de 2017


ALUCINAÇÃO:NOS MEANDROS DA PSIQUE


Com a segunda e última parte do artigo do Dr. Ubirajara Rodrigues, encerro a série sobre alucinação. Voltando à origem do debate, a pergunta "Visões coletivas são possíveis?" tem por resposta, sim, a visão coletiva é possível e até demonstrável, o que explica uma infinidade de eventos tais como aparições de natureza religiosa, espíritos, criaturas extraordinárias, alienígenas, discos voadores e muitas outras coisas do tipo. Vamos à conclusão do autor convidado.

No fundo, essa experiência é importante porque abrange um processo que nos permite chegar a conclusões surpreendentes. Por exemplo: numa noite escura, durante vigílias, um grupo inteiro pode testemunhar a observação de fenôme
nos estranhos pertencentes ao mundo abstrato da mente. Se interrogados separadamente, cada um dos indivíduos poderá acusar detalhes extremamente coincidentes, sem contudo oferecer prova de que tenha avistado alguma coisa realmente objetiva e concreta. Podemos relatar uma ocasião em que um senhor de 40 anos, negro e de cabelos curtos, observado por um grupo de dezoito pessoas, pareceu-lhes uma mulher jovem, loura, de longos cabelos, seios voluptuosos e vestida apenas com um sutiã.

Apesar do aparente aspecto hilariante, o resultado coincidiu com as fortes tendências sexuais confessadas pelo 
objeto da experiência. Mais complexo foi o índice de coincidência obtido por 22 pessoas, num grupo de 32, durante um curso de parapsicologia ministrado por nós. Uma jovem foi vista como uma freira idosa, de hábito completo, no interior de um prédio antigo, onde de fato residira uma religiosa por toda a vida, coisa que foi confirmada posteriormente e não era do conhecimento de qualquer um dos presentes. [Neste ponto, acrescento que participei da referida experiência naquela ocasião como parte da plateia seguindo os passos de todo o processo, atestando a lisura da pesquisa. Os resultados foram de fato surpreendentes].

Para casos semelhantes é fartamente demonstrado que o inconsciente humano pode representar a realidade que capta de um ambiente impregnado pelas impressões vibratórias de pessoas e fatos que o marcaram. Em grupo, tudo leva a crer que a captação é mais forte e bem mais fácil, portanto, menos rara do que se supunha. Numa de nossas tentativas, uma senhora foi observada por 60% dos presentes com o ventre aberto e luminoso, de onde se projetava a figura de um bebê. Jamais pudera ser mãe e, de idade madura, guardava só para si o que chamava de sua “maior frustração”.

De grande interesse para a ufologia são os registros que os observadores fazem de movimentos, não só do indivíduo sentado, como de objetos fixos do ambiente, movimentos esses, é lógico, não ocorridos. Na verdade, tudo se trata de simbolismos materializados em imagens, que o inconsciente projeta à interpretação das pessoas. Esse recôndito amplo e onisciente do psiquismo humano necessita, pois, de pontos de referência e estímulo para se manifestar. Em casos de observação de Óvnis irreais, atribui- se, primeiramente, à vontade da testemunha em ter pelo menos um contato visual com tais corpos, sem se falar no extremo fanatismo que hoje reina em certos segmentos da área ufológica, que a cada dia criam mais e mais “contatados” Outra razão é o mito do disco voador (mito apenas por seu aspecto de mistério secular), que já está plasmado na mente da humanidade e é trabalhado pelo nosso inconsciente de quando em vez. Ainda melhores e mais fortes são as facetas de um simbolismo arquetípico tão bem analisado por Jung.

Nos demais casos, principalmente durante as experiências já comentadas, o primeiro impulso que forçará a manifestação do inconsciente é a ilusão de ótica. Num ambiente totalmente negro, apenas com uma tênue luz infravermelha incidindo sobre o observado, a vista custa a adaptar-se, provocando perda de perspectiva e distância. Depois a fixação do olhar leva os objetos, quase todos delineados somente em silhueta, a perderem suas referências reais. Nessa situação, se permanecermos de olhos abertos e despertos, a percepção tem que ser suprida de algum modo. Consequentemente, nada mais propício à ação quase imediata do inconsciente, que se utilizará da ilusão para logo nos levar a interpretar as imagens disformes que, aos poucos, tratamos de moldar segundo diversos fatores. 

A projeção de imagens mentais é um campo vastíssimo de estudo, onde já se conhecem fenômenos registráveis até no mundo físico. As fotos paranormais estariam aqui enquadradas, nos casos em que a película grava cenas não-concretas e pessoas que não se acham presentes no momento do disparo da câmera, como revelam muitas dessas fotos em nosso poder. A parapsicologia caminha a passos largos para provar que a mente coletiva humana é capaz de materializar imagens em um espaço dimensional que normalmente não temos condições de observar, embora possa estar mais próximo de nós do que imaginamos.


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Aí está. Finda a série, espero ter contribuído minimamente para esclarecer um assunto que circula com frequência no meio acadêmico mas é pouco discutido no ambiente laico, e, por isso mesmo, objeto de compreensível incompreensão. Todos nós as vivenciamos, em certa medida, porque são mais comuns do que se pensa. Espero, também, ter ficado claro que as alucinações não explicam todos os fenômenos, os fatos espetaculares, fabulosos, apenas parte deles -  discos voadores e alienígenas, por exemplo, criaturas etéreas, celestiais, míticas e sobrenaturais - e toda uma imensa galeria pertencente ao universo simbólico das abstrações necessárias do homem.

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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.

sábado, 11 de novembro de 2017


ALUCINAÇÃO: UM MUNDO EM PARALELO (IV)


A série que você está acompanhando e que se aproxima do final foi inspirada no artigo "Visões coletivas são possíveis?", assinado pelo amigo Dr. Ubirajara Rodrigues publicado na revista Planeta Especial Ufologia n° 1, em 1986. Passadas três décadas, a matéria não perdeu vitalidade, primeiro porque se baseia no experimento prático da manifestação alucinatória, induzida e controlada, e segundo porque os estudos nesse campo continuam sendo revisitados de forma sistemática, sempre com revelações interessantes. Com Rodrigues, voltamos nossa atenção à análise junguiana.

A observação, em grupo, de objetos ou cenas que não pertençam a uma realidade objetiva tem sido meramente teórica tanto para a Psicanálise como para a própria Parapsicologia. Fala-se muito em “alucinação coletiva”, sem se contar com incidentes que a justifiquem em termos práticos como, por exemplo, o avistamento de um disco voador numa só data. A alucinação é mais explicável como origem de um tipo de imagem ou objeto que, por fatores diversos, acaba por se tomar símbolo básico de um momento histórico ou social. Mais remota é sua utilização para justificar uma ocorrência determinada. Assim é que muitos indivíduos podem ter um tipo único de visão em épocas e lugares distintos.

Jung explorou e demonstrou com sérios argumentos as informações arquetípicas do ser humano que provocam visões mentais e se projetam num espaço subjetivo, com detalhes e características idênticas, devido às tendências e impulsos atávicos que se vão firmando no inconsciente dos povos. Alguns pesquisadores da área ufológica, além de não terem entendido as proposições do grande psicanalista, vêm gritando contra a falta de comprovação prática da alucinação coletiva como explicação para um caso concreto. Entretanto, esta comprovação torna-se cada vez mais possível de ser realizada com um grupo.

Desde alguns anos, vimos tentando tais experiências com boa margem de êxito; o teste, perfeitamente aplicável em qualquer ambiente, consiste em se dirigir o foco de uma lâmpada infravermelha sobre um indivíduo sentado frente a um grupo de pessoas que tentará registrar toda e qualquer modificação nele observada. Com a sala totalmente às escuras, pede-se aos integrantes do grupo para fixarem o olhar na pessoa que está iluminada pela luz infravermelha, a uma distância de, no mínimo 5 m. Após alguns minutos, interrompe-se o teste e cada uma delas anotará todas as variações de imagens e supostos movimentos que conseguiram notar.

É importante evitar ao máximo o condicionamento dos observadores, eliminando, na medida do possível, a influência pela sugestão. O experimentador nada fala durante o teste. Quando checamos os dados registrados em folhas separadas, o índice de coincidências marcantes chega a impressionar. Evidentemente, as impressões escritas são exigidas para que as pessoas não se induzam umas às outras, imprimindo, assim, um inegável cunho de autenticidade à experiência. Logicamente, os observadores permanecerão de olhos abertos durante todo o teste, tentando assumir a chamada “visão de 180º” e procurando abster-se ao máximo de mover os olhos, mesmo que isso seja inevitável, uma vez que esses órgãos executam movimentos involuntários num ambiente sem contrastes normais de luz. A fim de facilitar esse entendimento, o experimentador sugere antes uma fixação do tipo “abstrato”, tal como nos comportamos quando estamos “distraídos”.

Não se pode explicar com segurança as razões da clara e elevada porcentagem de coincidências que são registradas. É possível que ocorra uma interação psíquica entre os observadores que, telepaticamente, formam em conjunto as imagens básicas visualizadas na pessoa sentada. Por outro lado, não se descarta a hipótese de essa mesma pessoa estar projetando, inconscientemente, as figuras de seu próprio estado emocional, simbolizando aos olhos dos que a observam tendências de personalidade e situações importantes de sua vida atual ou pretérita. Nesse caso, aceita-se que os observadores tiveram sua clarividência despertada pelo teste.

Continua na próxima semana.


domingo, 29 de outubro de 2017


ALUCINAÇÃO: CRENÇA NO NÃO REAL (III)



Nos textos anteriores vimos que a alucinação carrega tintas que pintam um quadro de reflexões profundas. A traição dos sentidos e o descompasso da mente conduzem a um preocupante desequilíbrio do físico, do mental e do emocional. É deste que falamos agora. O antropólogo britânico Ioan Lewis (1930-2004) afirma que o rito, a fé e a experiência espiritual são a base das religiões, mas destaca que a experiência deve ser vista sob o quadro social onde é vivenciada, porque ela carrega as marcas da cultura e da história daquela sociedade:
Os fenômenos acessórios ligados a tais experiências, particularmente o 'dom das línguas' (xenoglossia), a profecia, a clarividência, a transmissão de mensagens e outros dotes místicos têm, naturalmente, atraído a atenção não apenas dos devotos mas também de céticos. Para muitos, de fato, esses fenômenos parecem fornecer provas persuasivas da existência de um mundo transcendente ao da experiência cotidiana comum. 
 Não é errado afirmar que as visões de cunho religioso se equiparam às de fantasmas e seres da natureza conhecidos como elementais – fadas, duendes, gnomos, sílfides e outras entidades míticas (ou místicas). Todos provêm do psiquismo humano e são classificados como alucinações, diferentemente de delírio. De acordo com a American Psychiatric Association, a definição técnica para alucinação é “A percepção sensorial falsa na ausência de um estímulo externo real. Pode ser induzida por fatores emocionais e outros como drogas, álcool e estresse, em qualquer dos sentidos - visão, audição, olfato...”

Por sua vez, o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910) defendia a ideia de que a experiência religiosa pessoal tem raízes nos estados místicos da consciência: 
O estudo das alucinações tem sido, para os psicólogos, a chave da compreensão da sensação normal, assim como o estudo das ilusões tem propiciado a chave da compreensão da percepção. Os impulsos mórbidos e as concepções imperativas, as chamadas “ideias fixas”, projetaram torrentes de luz sobre a psicologia da vontade normal; e as obsessões e delírios executaram o mesmo serviço para o estudo da faculdade normal da crença". James estava convencido que a imaginação ontológica humana é o poder de convicção do que ela cria. "Seres irretratáveis são concebidos, e concebidos com uma intensidade quase igual à de uma alucinação.”
Chamo a sua atenção para o que nos conta o historiador israelense Yuval Harari a respeito da "criatividade" humana para crer no que não vê, no ponto em que trata da revolução cognitiva no capítulo A árvore do conhecimento. O que fica claro é que o exercício da imaginação é ancestral, atravessa milênios, muitos milênios - cerca de 70 mil anos. O texto é instigante:
Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Antes disso, muitas espécies animais e humanas foram capazes de dizer: Cuidado! Um leão!” Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: O leão é o espírito guardião da nossa tribo. Essa capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos sapiens. É relativamente fácil concordar que só o Homo sapiens pode falar sobre coisas que não existem de fato e acreditar em meia dúzia de coisas impossíveis antes do café da manhã. Você nunca convencerá um macaco a lhe dar uma banana prometendo a ele bananas ilimitadas após a morte no céu dos macacos.
Mas isso é tão importante? Afinal, a ficção pode ser perigosamente enganosa ou confusa. As pessoas que vão à floresta à procura de fadas e unicórnios parecem ter uma chance menor de sobrevivência do que as que vão à procura de cogumelos e cervos. E, se você passa horas rezando para espíritos guardiães inexistentes, não está perdendo um tempo precioso, tempo que seria mais bem utilizado procurando comida, guerreando e copulando? Mas a ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso coletivamente. Podemos tecer mitos partilhados, tais como a história bíblica da criação, os mitos do Tempo do Sonho dos aborígenes australianos e os mitos nacionalistas dos Estados modernos. Tais mitos dão aos sapiens a capacidade sem precedentes de cooperar de modo versátil em grande número. 
Do ponto de vista da psicologia analítica, Jung preconiza que, na doença mental, o inconsciente se sobrepõe à consciência, rompendo as barreiras de contenção do próprio inconsciente, e, com isso, as alucinações apresentam à consciência uma parte do conteúdo ali depositado, que passa para o seu domínio. Assim sendo, as alucinações - e os delírios - não nascem de processos  conscientes, e sim, inconscientes, cujos fragmentos brotam na consciência tal qual no sonho, ou seja, dissociados. A metáfora é pertinente: a alucinação pode ser vista como um sonhar desperto, ou, o sonho uma alucinação dos lúcidos. Faz sentido: todo sonho é sim uma "alucinação", já que estamos tão envolvidos no cenário onírico que os elementos, por mais absurdos que sejam, são tomados pelo sonhador como normais, fazendo parte daquela realidade, a sua realidade, sem contestação. É a manifestação do repertório inconsciente sob a forma de alucinação na consciência. A predisposição da consciência para tal é latente. Falaremos mais sobre este aspecto na próxima semana, quando teremos a participação de um  convidado especial com larga bagagem nesse campo.

Para encerrar a conversa de hoje, há um aspecto que não pode ser posto de . Na esfera da Filosofia, as alucinações podem ser consideradas como mecanismo de defesa patológico do sujeito social ante uma cultura cada vez mais esquizofrênica; é o surgimento de uma realidade metafísica que se funde na realidade física, tornando-se indistinguível. Sobre a cultura esquizofrênica, não sou apenas eu quem diz, é a radiografia que estudiosos de vários setores fazem sobre o presente, e não precisamos ir muito longe para constatar isso. Toda sociedade tem sua cultura própria, e se ela for esquizofrênica, a sociedade também o será. Esquizofrênica, aqui, cabe perfeitamente ser entendida como alienante, podendo ser idiotizante chegando ao limiar da insanidade.
Entre tantos, este é mais um tema recorrente, e se insisto nele é para que você saiba da extensão e gravidade do problema. Só para constar: do grego skhizen - separar, dividir, cindir, e phrein - razão, mente. Acho que você entendeu.




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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.
Vilayanur Ramachandran, Fantasmas no Cérebro. Record, 2004.
Yuval Harari, Sapiens: Uma breve história da humanidade. L&PM, 2015.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017




ALUCINAÇÃO: DESCOMPASSO DA MENTE (II)

Neste segundo capítulo sobre as alucinações, vamos conhecer algumas de suas muitas causas, descritas resumidamente:
Transtorno psicótico compartilhado - quando  o sujeito portador de um distúrbio  psicológico com manifestações delirantes mantém estreita relação com outras pessoas, passando a ser o "caso primário", reforçando as crenças paranoicas dos demais; 
Lesão cerebral -  traumatismos, concussão, choque, aneurisma, câncer, esclerose, etc;
Deficiência visual - glaucoma, catarata, tumores, Síndrome de Charles Bonnet*;
Histeria em massa - acomete grande número de pessoas, com sintomas de náuseas, hiperventilação, desmaios;
Doença de Creutzfeldt-Jakob - rara doença degenerativa do cérebro que quando afeta o lobo occipital causa perda de movimentos e sensações, provocando as alucinações;
Síndrome de Alice no país das maravilhas - síndrome neurológica que provoca percepções distorcidas de tempo e espaço, inclusive do seu próprio corpo;
Licantropia clínica - distúrbio psiquiátrico extremamente raro no qual a pessoa acometida acredita ter se transformado em lobo ou outro animal, com nítida sensação de possuir pelos, garras, dentes salientes e outras características não humanas;
Síndrome de Erikson - também conhecido por "delírio parasitário", quando a pessoa credita estar infestada de parasitas sob a pele. Tentando se livrar dos patógenos, provocam escoriações, feridas, infecções graves e automutilações;
Síndrome de Cushing - é a alta concentração de hormônio cortisol, ou hormônio de stress, com visíveis sinais cutâneos (estrias em várias partes), inchaço facial, obesidade e perda da libido. Casos psiquiátricos relatam euforia, delírios paranoicos e alucinações visuais e auditivas.
As alucinações podem acontecer quando um elemento interno dispara um padrão de atividade equivalente ao que é normalmente gerado quando um órgão do sentido responde a um evento publicamente observável. Estudos revelam que cerca de 4% das pessoas em uma população possuem uma imaginação muito intensa e mais dificuldade em julgar as diferenças entre eventos reais e imaginários.  Alguns exemplos típicos de personalidades propensas às fantasias são os grandes visionários do passado compelidos por vozes ou visões alucinatórias, como Sócrates, Joana D'Arc, Santa Terezinha e Swedenborg, mas se encaixam nessa definição também os que relatam abduções em naves alienígenas, os que ouvem vozes e os “médiuns visuais” que veem espíritos em profusão, por toda parte e a todo momento. As alucinações aproveitam o material já arquivado na memória arquetípica  do indivíduo, que é interpretado segundo seu sistema de crenças e valores e em seu universo cultural.

Pierre Janet (1859-1947), filósofo e psicólogo, defendia a existência de uma “segunda consciência” subjacente à corrente normal de pensamentos. Quando a personalidade humana perde sua coesão, se liquefaz, uma parcela da consciência separa-se do conjunto e dá origem a diversos automatismos motores e sensoriais, isto é, fenômenos tão distintos como anestesias, catalepsias, escrita automática, sonambulismo, alucinações e possessões seriam formas de “desagregação psíquica”, manifestações de uma corrente secundária (Janet usa “conservadora”) de pensamentos, vontades e imagens que se sobrepõe ao campo habitual de consciência.

O historiador e antropólogo Michel de Certeau (1925-1986) sugere uma análise da mística a partir de componentes psicanalíticos sublimatórios e de deslocamentos libidinais, expondo sua visão sobre as alucinações e visões coletivas: “As referências englobantes e os discursos dogmáticos que vêm da tradição, aparecem como particularidades. Estão na própria experiência dos crentes, elementos, entre outros, num quadro onde tudo fala de uma unidade desaparecida. O que era totalizante não é mais senão uma parte nesta paisagem em desordem, que requer um outro princípio de coerência. Os critérios de cada comunidade crente se encontram, por isso, relativizados [...].” Seu comentário final pede atenção: “Desta maneira, massas populares sem âncoras e como que errantes através dos enquadramentos sociais e simbólicos, são entregues a alucinações feiticeiras que esta ausência cria. O ceticismo que se estende atesta a mesma ausência, mas nos meios cultivados. Feitiçaria e ceticismo, com efeito, esboçam o vazio que uma razão universal ou uma Lei Natural não preenchem.”

Ele chega a concluir que as alucinações desempenham um importante papel na nossa vida e na história das artes, da religião e da cultura de um modo geral, e que nossa ingênua concepção da realidade, segundo a qual nós percebemos o mundo de forma praticamente direta por meio de nossos sentidos, parece estar totalmente equivocada. O contínuo avanço das pesquisas nas neurociências contribui enormemente para a compreensão da nossa estrutura mental, mas isso só será possível quando e se admitirmos que os deuses não são astronautas ou entidades sutis vindos do puro éter que só se revelam a eleitos. "São apenas projeções de um drama interior encenado desde as origens em cada um de nós, cujos medos e esperanças se recortam à contraluz da película invisível da mente". 

Para concluir, o desenvolvimento nos últimos anos dos processos laboratoriais de análise investigativa da genética sobre aspectos moleculares fez um grande avanço, despertando a atenção da comunidade científica nos estudos etiológicos sobre a importância do ambiente familiar na arquitetura dos processos alucinatórios. Segundo Aranha, "Há suficientes evidências da presença de um componente genético familiar substancial na origem dos processos alucinatórios, notadamente quando ocorrem na esquizofrenia. Essas evidências provêm de um grande número de estudos familiares, em irmãos gêmeos, não gêmeos e adotados, realizados em diversas populações." Estudos mais recentes recrudescem essa validade graças a aparatos diagnósticos cada vez mais precisos. 

As alucinações coletivas podem ser induzidas pelo poder da sugestão? Sim. Ocorrem geralmente em situações de exaltação emotiva, especialmente entre devotos religiosos, mas não necessariamente. A expectativa e esperança de ser testemunha de um milagre (a causa predisponente de Esquirol)  combinadas com longas horas de olhar fixo num objeto ou lugar (a causa exitante), torna certas pessoas suscetíveis a ver coisas tais como uma imagem que chora ou que se move, ou a aparição da Virgem Maria ou até de sóis dançantes. Relatos de guerra dão conta de soldados que, mortos em combate, “ressurgem” no campo de batalha para avisar os companheiros sobre ciladas e ataques inimigos, ou simplesmente para “se despedirem”. Sacks acrescenta que as alucinações podem ser cheias de surpresas e  frequentemente mais detalhadas do que as imagens mentais. Muitos casos envolvendo a morte de entes queridos dão conta de que os familiares, por diversas vezes e por muito tempo (meses ou anos), “conversaram” longamente com seus cônjuges, filhos, pais e parentes falecidos, segundo Sacks, um claro sintoma de alucinação visual e auditiva.

* Descoberta em 1769 em pacientes com perda parcial ou total da visão por acidente, tumores ou lesões internas; as alucinações podem ser simples ou complexas, nítidas, silenciosas, com duração variável.



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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
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Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.
Vilayanur Ramachandran, Fantasmas no Cérebro. Record, 2004.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017


ALUCINAÇÃO: A TRAIÇÃO DOS SENTIDOS (I)


Começo hoje uma nova série para debate, desta vez sobre alucinação, incluindo as "visões" coletivas. É assunto controverso, extenso, complexo, delicado, objeto de interpretações diversas e geralmente errôneas, por desinformação, o que pede a intervenção esclarecedora de especialistas nos domínios da Religião, da Psicologia e da Neurociência, áreas em que iremos nos ocupar para tentar trazer um pouco de luz. A Psicologia do comportamento, as Ciências Sociais, a Psiquiatria e agora a Engenharia Genética também se debruçam sobre o tema, mas não serão abordadas aqui por motivos óbvios. Não tenha dúvidas, a literatura é enorme, permanentemente atualizada, portanto não cabe a pretensão de esgotar o assunto, mas proporcionar um panorama razoável. Ademais, vou me ater apenas às alucinações visuais, porque as olfativas e auditivas (vozes, música, ruídos), também importantes, ficam de fora neste momento.

Uma boa definição de alucinação é dada pelo neurologista inglês Oliver Sacks (1933-25015), autor de prestígio e infatigável divulgador científico:
Quando a palavra ‘alucinação’ foi usada pela primeira vez, no começo do século XVI, denotava apenas ‘uma mente divagante’. Só nos anos 1830, o psiquiatra francês Jean-Étienne Esquirol deu ao termo sua presente acepção. Ele apontava a "loucura" como a soma de duas causas: a predisponente, associada à personalidade, e a excitante, fornecida pelo ambiente. A Psiquiatria atual emprega outros termos para dizer a mesma coisa. Antes disso, o que hoje chamamos de alucinação era chamado simplesmente de ‘aparição’. As definições precisas da palavra variam consideravelmente, sobretudo porque nem sempre é fácil discernir as fronteiras entre alucinação, erro de percepção e ilusão. De modo geral, porém, definimos alucinações como percepções que surgem na ausência de qualquer realidade externa - ver ou ouvir coisas que não existem. 
Os relatos de alucinações atravessam a história humana, mas nos tempos pré-modernos elas eram explicadas através da linguagem simbólica das experiências religiosas de transe, de magia, profecias, ou por intermédio da percepção meta-empírica de ordem mística ou divina. Somente no fim do século 18 e início do seguinte é que foi possível traçar uma etiologia e uma fenomenologia da manifestação alucinatória nas áreas da Neurociência, da Psicologia e da Psiquiatria. Um ponto interessante é a relação que Sacks apresenta entre alucinações e religião. Ele entende que muitas dessas percepções podem adquirir uma interpretação divina, como a visão de anjos, demônios, pessoas que já se foram – ou a visão de si mesmo, como uma experiência extracorpórea enquanto se está entre a vida e a morte, acreditando que o espírito “saiu do corpo”. 

Foi-se o tempo de atrelar a alucinação à loucura, à demência ou a outros distúrbios mentais como a esquizofrenia, por exemplo. A alucinação, principalmente aquela não patológica, a do tipo transitória, é comum em nossa cultura, porém muito mal compreendida. Está na raiz das religiões e do misticismo e pode explicar uma boa quantidade de acontecimentos misteriosos como aparições de criaturas sobrenaturais, santas, entidades etéreas, deuses e fantasmas, visões e encontros com alienígenas, "viagem astral" e experiências de quase-morte.

Enquanto certas aparições envolvem um único observador, vidente ou receptor de uma suposta mensagem, pode-se interpelar fortemente sobre a sua legitimidade, mas quando ocorre para centenas ou milhares de olhos simultaneamente, é lícito duvidar? Poderia afirmar tratar-se de alucinação coletiva? É possível tal fenômeno? No caso de Fátima, por exemplo, teria ocorrido uma visão em massa ou a santa, de fato, apareceu para a multidão? Teria o sol “dançado” como afirmam os presentes?

Sacks conhece bem estes aspectos e derruba alguns preconceitos, desmistifica outros e discorre com clareza sobre a riqueza da percepção e das faculdades imaginativas. Ele está seguro de que, nas alucinações, as imagens evocadas se projetam no espaço externo e possuem as mesmas qualidades (ou quase) das coisas percebidas pelos sentidos. Ele salienta que “Muitas alucinações parecem ter a criatividade da imaginação, dos sonhos ou da fantasia – ou os vívidos detalhes e a externalidade da percepção. Mas uma alucinação não é nenhuma dessas coisas, embora possa ter alguns mecanismos neurofisiológicos em comum com cada uma delas.”

Caso você não saiba as sutis diferenças entre alucinação, delírio e ilusão, sintetizo-as:

Alucinação - É a percepção real de um objeto inexistente, isto é, são percepções sem um estímulo externo. A percepção é real, considerando a convicção que a pessoa manifesta em relação ao objeto alucinado, portanto, "real" para o alucinando. Sendo a percepção da alucinação de origem interna, emancipada de todas as variáveis que possam acompanhar os estímulos ambientais, o objeto alucinado é percebido mais nitidamente que o objeto real.

Ilusão - (raiz latina ludus) - Estímulo percebido de forma deformada, ou seja, apenas um “engano”dos sentidos, sem a presença real do objeto. Pode ser traduzida por farsa, logro, jogo (daí "lúdico"). O fenômeno alucinatório tem conotação muito mais mórbida que a ilusão, sendo normalmente associado a estados psicóticos que ultrapassam uma simples falha dos sentidos. Na alucinação, o envolvimento psíquico é muito mais contundente que nos estados necessários à ilusão.

Delírio - O filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers definia-o como um juízo patologicamente falso da realidade. Para tal, ele deve apresentar três características, ou "regras": a) Deve apresentar-se como uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável; b) Deve ser impenetrável e incompreensível para o indivíduo normal, bem como impossível de sujeitar-se às influências de correções quaisquer, seja através da experiência ou da argumentação lógica e; c) Impossibilidade de conteúdo plausível.
Os casos que não se encaixarem nessas regras não devem ser entendidos como delírios verdadeiros ou primários, mas como ideias deliroides ou delírios secundários.

Sacks despeja uma avalanche de interrogações:
As alucinações sempre tiveram um lugar importante em nossa vida mental e em nossa cultura. Devemos até nos perguntar em que medida experiências alucinatórias ensejaram nossa arte, nosso folclore e até mesmo nossa religião. Será que os padrões geométricos vistos na enxaqueca e em outros distúrbios prefiguram os temas da arte aborígine? As alucinações liliputianas (que não são raras) teriam originado os gnomos, diabretes, leprechauns e fadas do folclore? As terríveis alucinações do pesadelo de ser cavalgado e sufocado por uma presença maligna teriam algum papel na geração dos nossos conceitos de demônios, bruxas e alienígenas malévolos? As convulsões extáticas, como as de Dostoiévski, contribuíram de algum modo para gerar o nosso senso do divino? As experiências extracorpóreas legitimam a ideia de que uma pessoa pode sair do corpo? A insubstancialidade das alucinações encoraja a crença em fantasmas e espíritos? Por que toda cultura conhecida procurou e encontrou drogas alucinógenas e as usou, antes de tudo, com propósitos sacramentais? O tempo só fez ampliar e aprofundar nossa compreensão da grande importância cultural do que poderia, a princípio, parecer pouco mais do que uma peculiaridade neurológica.
Por ora é o que nos basta. Aguarde a próxima publicação.
  
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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
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Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.