Obras

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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

PÁSSAROS SOTURNOS

Por que subitamente essa inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam,
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
dizem que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros, o que será de nós?
Ah, eles eram uma solução . 
À espera dos bárbaros
Konstantinos Kaváfis (1863-1933)



Nota importante: Um leitor fez uma observação sobre a edição passada que cabe comentar. Assim como é mínima a distância entre fanatismo e loucura, é tênue também a linha que divide o fanatismo da farsa, da vigarice, da picaretagem, como ele disse. Tem razão, mas preferi não entrar nesse tópico, assim como não falar do fanático “da moda”, o sujeito que entra com volúpia na temática do momento sem ter noção do que está fazendo ali, pelas razões mais diversas, principalmente “aparecer” nas mídias, sentir-se no mundo já que, de outra forma, seria olimpicamente ignorado. Esse é o narcisismo extremado abrindo passagem a pontapés, literalmente. Pauta a caminho.


•••

Nas últimas três edições tratei do fanatismo em suas várias facetas, e o que você lerá agora e nas próximas semanas analisa a advertência feita por Morin – o temor da barbárie através dos seus operadores: dominação, conquista, fanatismo e intolerância. A literatura é farta, vem de longa data e aumenta à medida que se observam estas indesejáveis aves de maus presságios pairando ameaçadoramente sobre nós. Algumas já pousaram. Com elas, as distopias saem da ficção para o mundo real. O outro se torna um predador camaleônico e móvel que nos assombra a cada manhã. Não precisa ser um outro qualquer, desconhecido e distante, pode ser qualquer um – vizinho, porteiro, passageiro ao lado, amiga, policial, namorado, professor... A barbárie é a extrapolação do fanatismo, a irrupção explosiva e sangrenta da natureza humana crua.

Como você percebeu, vamos desviar do tema habitual porque trata-se de uma reflexão fundamental para se compreender um pouco melhor o momento que vivemos. Vamos falar do eclipse da razão, da dissensão da alteridade e autoverdade como versão contemporânea do estado de natureza. Como sempre, complexidade será a tônica. Recomendo enfaticamente que não disperse nem interrompa a leitura.

Pretendo mostrar da maneira mais clara possível que diversos fatores entrelaçados contribuem para criar um quadro de permanente tensão social, com contornos de uma barbárie em trânsito, através do ressurgimento do estado de natureza do homem. Quero mostrar também que os princípios religiosos estão sendo subvertidos para outras formas de crenças pessoais dessacralizadas, que assumem a função de guias morais individuais e coletivos com forte tônus extremista. A argumentação se constrói e se legitima pela literatura que vai da Antiguidade aos autores do nosso tempo, pela vivência pessoal e exame atento do cotidiano, local e global, produzindo uma crítica dura e sólida com inflexões densas acerca da “natureza bruta do animal humano”. 

O primeiro ponto é que essa “natureza bruta” se mantém viva e inalterada apesar do polimento cultural, social e científico que se produziu na espécie ao longo da história. Este estado de natureza o impede de ver a realidade como ela é, gerando, em decorrência, uma cizânia psíquica entre o real e o imaginário, entre verdade e ficção – vetores inconciliáveis do conflito existencial, da perda identitária e das pulsões de morte. O segundo [ponto] é mostrar que a única solução possível estaria na religião, sendo, ela mesma, porém, também uma ilusão. E, por fim, apontar as possíveis causas e os descaminhos pelos quais o homem decidiu trilhar. No cerne dessa experiência caótica os valores essenciais para a integridade constitutiva do ser estão lentamente se extinguindo: ética e moral. Então não há saída para essa tragédia anunciada? Saída há, mas não creio que será posta em prática, porque nunca foi.

Não há dúvidas de que o mundo passa por um dos períodos mais turbulentos já vividos desde a metade do século 20, com transformações profundas sem precedentes em velocidade e alcance. Política, economia, religião, ciência, arte, educação, cultura, justiça, esporte, tecnologia, relações humanas, comportamento, nada escapa ao abraço ardiloso dessa Quimera voraz insaciável. Pensadores, eruditos, filósofos, cientistas sociais, todos aglutinam o “mal-estar da civilização” de  Freud com a “sociedade do espetáculo” de Debord e os “tempos líquidos” de Bauman para compor um quadro amplo de investigação. Se a soma destes rótulos nos dá uma pista, então estamos dentro de uma sociedade emocional e intelectualmente desequilibrada, desajustada, doente, castrada dos ideais e utopias que um dia sonhou. Se antes o futuro era um farol iluminador, o presente se mostra um balé de sombras fugidias no fundo de uma nova caverna platônica.

Conhecemos (mesmo?) todos os efeitos colaterais desse estado de tensão em que nos metemos, e entender as causas exige um saber multiplicado e multiplicador. Apesar de vivermos uma notável era de avanço científico-tecnológico, com promessas de um futuro rico, temos uma contradição interna insolúvel: Continuamos visceralmente presos a uma mentalidade primitiva mítico-religiosa e ao pensamento mágico/místico ancestral de veneração ao sobrenatural. Não se trata da mentalidade primitiva dada pela psicologia de W. Bion, nem do pensamento selvagem trazido pela por Lévi-Strauss, mas da natureza humana inscrita nas Confissões de Santo Agostinho, nas sociologias d’O Príncipe de Machiavelli e nas páginas de Hobbes, Hume, Kant e Sartre, entre outros notáveis. Para entendê-los, ou ao menos absorver parte de suas ideias, sua mente precisa estar livre dos ranços e vícios com que a cultura popular nos condiciona permanentemente.


Para fechar esta primeira parte necessariamente introdutória e abrir caminho para as próximas, pense sobre o poema de Kaváfis. Se o outro pode tudo, eu também não posso? Sem ele, sei quem sou? Se nossas diferenças são tão iguais, quem é o bárbaro, aquele que deve ser excluído ou aquele que o quer excluir? E, para constar, bárbaro, do latim brabus, do grego bárbaros: Na Grécia antiga, bárbaro era o não grego, ou não helênico: o estrangeiro, estranho, de fora, que não fala a mesma língua, logo, o incivilizado, inculto, “invasor” não no sentido de conquistador, mas daquele que “invade nossa vida e nossos costumes”. 

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

FANATISMO DE PEDRA

Que o fanatismo fossiliza o ser nós já vimos, e também que pode ser diagnosticado como doença, e que em ambos os casos só o conhecimento “cura”. Pergunto: O fanático quer ser “curado”? Trocaria a pobre ração pelo banquete de saberes? Se disporia a remover o cabresto encilhado e explorar outras possibilidades? Pouco provável, o ele já foi contaminado pelo vírus do radicalismo. O fanatismo, sabemos também  – e como –, cega a razão, bloqueia o diálogo, dificulta as relações, desagrupa o sujeito da sociedade para reagrupá-lo em um microcosmo identitário. Há uma ínfima distância entre o fanatismo doente e a loucura, a psicopatia. É uma questão de tempo, não de espaço. Também sabemos em quais terrenos o fanatismo se propaga com força mortal: religião, política e esporte, e “mortal” não é figura de linguagem, a história tem nos mostrado isso com todas as dores, cores e odores. O fanatismo não tem freios para potencializar o irracional, como alerta o neurocientista Oliver Sacks:
Uma atmosfera profundamente supersticiosa e delusória também pode favorecer alucinações geradas por estados emocionais extremos, e essas alucinações podem afetar comunidades inteiras. (...) Temos descrições pormenorizadas de alucinações características desses dois estados — alucinações que, em alguns casos, assumiram proporções epidêmicas e foram atribuídas às artes do demônio ou seus lacaios, mas que hoje podemos interpretar como efeitos de sugestão ou até de tortura em sociedades nas quais a religião descambou para o fanatismo.  
Kant também se debruçou sobre a questão do fanatismo e sua proximidade com a loucura. Há um desvario mo modo de compreender certas ideias que produzem tais discursos - o metafísico, o místico, o fanático. Neles está o “desvairado” que se vale de conceitos sem qualquer significado efetivo que dizem respeito a objetos imaginários como se fossem reais. No primeiro caso está o sujeito inventivo com grande produção de fantasia graças à sua imaginação, mas de boa índole e dotes morais preservados. Já o fanatiker eleva aquele entusiasmo ao paroxismo com alto risco de perigo iminente. O o filósofo alemão procura explicar tal fato como um fenômeno da imaginação, uma perturbação no cérebro ou no sistema nervoso. Ele entende que tal explicação só pode se dar através do entendimento de seu significado nos seus diferentes contextos –religioso, científico, ético, etc., ou em termos médico-psiquiátricos como uma disfunção da própria natureza humana.
O problema da limitação do conhecimento ao campo dos objetos, segundo Kant, tem a função de evitar a loucura do pensamento. A razão, dentro do seu âmbito de conhecimento, muitas vezes se vê atormentada pelas questões que não pode resolver, explicar ou evitar impostas pela sua natureza, porque ultrapassam as suas possibilidades. Desse modo, adota obscuridades, contradições, erros e devaneios sem poder discerni-los, justamente por estarem além da experiência objetiva. O palco dessas incertezas chama-se metafísicapresunção da razão ou opinião ilusóriaKant assevera que só a crítica pode cortar pela raiz o fanatismo e a superstição, que se tornam nocivos e perigosos. O processo crítico tem a função terapêutica de expurgar os dogmatismos como desvarios ou discursos de loucura. Só lembrando que crítica, do grego kitikós , é cortar, separar, analisar, decidir, julgar..
Pelo olhar psicanalítico, todo fanatismo tem estreita relação com a fuga da realidade e precede à loucura se o fanático abdicar da sua inteligência, da sua moral e da sua ética. O problema da crença não é a crença em si, mas a inquestionabilidade do seu método, e o seu método está na “certeza” promulgada pelo discurso monológico repetitivo e doutrinário, como uma forma de reação recalcada no inconsciente.
Mesmo reconhecido como um distúrbio psíquico, o fanatismo tem o seu próprio sistema lógico, e quando esse sistema apresenta “mau funcionamento”, é sintoma que a Psiquiatria diagnosticará como loucura ou psicose. Freud, contudo, diz que aquilo que o psicótico paranoico vivencia na própria pele, o parafrênico o faz na pele do outro. Com isso, somos levados a pensar que o fanatismo está mais para a parafrenia (demência precoce, esquizofrenia) que para a paranoia:
Na produção de uma fantasia de desejos e alucinações, ele apresenta traços parafrênicos, enquanto que, na causa ativadora, no emprego do mecanismo da projeção, no desfecho, exibe um caráter paranoide. A análise das parafrenias, como sabemos, tornou necessária a inserção de um estádio de narcisismo, durante o qual a escolha de um objeto já se realizou, mas esse objeto coincide com o próprio ego do indivíduo.
Pudemos, assim, apresentar o fanatismo em suas três instâncias: como um cárcere mental que recolhe o sujeito à aridez do lugar, dando-lhe apenas uma fenda na parede por onde olhar a única paisagem de um mundo acanhado, circunscrito ao alcance de sua já estreia visão. A seguir, a infecção do estado psíquico com a invasão das quimeras e fantasias do imaginário que o fazem perder o contato com a realidade, ou seja, nem fenda mais existe. Por fim, o estágio final da sua ascensão delirante, irracional e ilusória na “certeza de uma missão divina” tutelada por entidades metafísicas para além da compreensão do homem, exceto a dele e de seus seguidores. É quando entramos no sombrio domínio das perturbações mentais – paranoia, loucura, parafrenia, esquizoidia e outras.
Penso que ficou clara a heteronomia do sujeito, isto é, sua completa subserviência a um poder externo obscuro, a incapacidade de reflexão crítica e desobediência a regras éticas, que resultam irresponsabilidade e conduta amoral. É da natureza humana: a razão inclina-se intrínseca e perigosamente para um estado próximo ao delírio, construindo doutrinas metafísicas e autoritárias de ordem delirante, sem sustentação racional e objetiva. Quanto mais o fanatizado se abastece de uma pretensa divindade, mais esvaziado de si mesmo. Quanto mais se curva ao sacerdote², menos ereto anda. Quanto mais pensa ser o centro do universo, mais à margem vive. Quanto mais crê elevar-se aos céus, mais próximo está do malebouge. Quanto mais poder julga possuir, mais esquálido é. Quanto mais se supõe na transcendência, mais doente se torna.
O tema fanatismo acaba aqui, porém, à medida que se agrava resulta consequências nefastas, projetando um rumo civilizatório de espectro assustador. O fanatismo é uma caldeira de alta pressão, passou do ponto, bum! O que virá nas próximas edições não se trata em absoluto de um argumentum ad metum – argumento do medo, “balada do terror” ou a sinfonia do apocalipse. Trata-se sim de um incisivo e cirúrgico exame crítico da realidade feito pelos mais seminais pensadores. Assunto gravíssimo, para gente adulta e corajosa, não chorona, e, de certa forma, também um alerta para as gerações que estão a caminho. 
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¹ ParafreniaTermo que designa certas psicoses crônicas disruptivas como a paranoia, que implica o empobrecimento intelectual de evolução para a demência. Aproxima-se da esquizofrenia pelas construções delirantes com bases paranoicas. É uma expressão em desuso, restrita à Psiquiatria clássica. Freud acabou substituindo o termo pelas concepções de esquizofrenia.
² É significativo verificar que a função original do sacerdote era “oferecer as vítimas em sacrifício às divindades”! Do latim sacer – sagrado e dos, dotis – dotes, bens, doação, entrega.
Oliver Sacks: A Mente Assombrada Cia. das Letras. 2013.
Vários. Revista Filosófica de Coimbra. v. 19, nº 37, 2010.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

FANATISMO DOENTE

Mais uma vez, o post anterior também repercutiu, e não poderia ser diferente porque o problema é mais sério do que aparenta, e os leitores perceberam isso. O psiquiatra Fernando Neves, Professor do Departamento de Saúde Mental da Universidade Federal de Minas Gerais afirma que, de maneira geral, quando alguém defende fervorosamente um único argumento para sua crença, ele não admite outros pontos de vista, o que pode se tornar um hábito de vida a partir dos fundamentos que ela mesma cria, que nem fundamentos são. Para a psicóloga Ana Maria Franqueira, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, o sentimento exacerbado de fanatismo – que pode inclusive desconsiderar a própria família e amigos – é um distúrbio psicológico diagnosticado quando o sujeito age de acordo apenas com a emoção, em detrimento da razão.

O fanático não percebe que passou dos limites devido o composto irracional que prevalece: o radicalismo, como sinônimo de extremismo. Ainda de acordo com a especialista, esse é o traço psicológico que se desenvolve ao longo do tempo, possivelmente ligado a baixa autoestima, a ausência de identidade, imaturidade, insegurança, desequilíbrio emocional e solidão, o que o faz procurar e unir-se a grupos de mesma ideologia onde se fortalecem mutuamente.

Os estudos de  psicopatologia sobre o fanatismo crescem em escala planetária. A falta de uma crença raciocinada e da razão – maturidade psicológica – contribui para a instabilidade emocional e os estados psicopatológicos do fanatismo, que multiplicam-se fora de controle. O fanatismo traz em si um aspecto narcísico camuflado no ego, dificultando a convivência, a comunicação e as relações sociais. É importante ressaltar outro fator fundamental – a sedução – que, assim como toda crença, tem  sua matéria-prima na irracionalidade. A sedução tem um componente “mágico” que engana através de um jogo de aparências; do latim seductio, seducere  separar, por à parte, desviar – que preenche um vazio imediato e constrói, pelo imaginário, a sensação íntima de pertencimento no mundo. Separar o quê? Freud explica mais adiante.

A narrativa do fanatismo é unidirecional, dogmática, intolerante, agressiva, obsessiva, doutrinária e rígida, sobressaindo pelo sectarismo irredutível. O subterrâneo desse comportamento não esconde o substrato religioso impregnado no imaginário – a “doença religiosa”, viciante, disruptiva e destrutiva pelo excesso. Nesse sentido, voltando ao ponto que originou esta série, não exagerei ao dizer que aquele indivíduo pode, em algum momento, julgar-se  “eleito” pelos deuses astronautas com a missão de esclarecer a humanidade. Não seria o primeiro, não faltam elementos para isso e, conhecendo o histórico, bem provável acontecer. E a pergunta segue em aberto: É caso para tratamento psiquiátrico ou ação penal?

Para alguns especialistas, a função das experiências místicas  – e o contato/abdução é uma delas – é ajudar no exercício de uma construção identitária e de um estímulo existencial. Quaisquer que sejam os dogmas que orbitam na vida do indivíduo, são como um motor que o impulsiona a persistir em sua caminhada, e a gerenciar questões psicológicas através de liturgias cerimoniaisÉ o que parece ser no caso em análise construção identitária – ufólogo; liturgias – palestras, artigos, fóruns; protagonismo – contatos, sequestros, mensagens, missão”.

Atenção agora. De acordo com Freud, a psicose (o fanatismo é um desequilíbrio psíquico) encontra um modo de ser trabalhada através de instrumentos culturais como religião e arte. Esse movimento tem o objetivo de escapar de uma realidade insatisfatória em busca de um mundo mais agradável através da fantasia, podendo, assim, evitar entrar em contato com os processos psíquicos que causam sofrimento, e agir sobre práticas culturais aceitáveis. As questões sobre superstição e crença e suas funções psíquicas são recorrentes nos estudos freudianos e junguianos, entre outros. A expressão inaugurada por Freud  – sublimação – remete à ideia de que uma atividade socialmente admissível [ufologia] possibilita ao sujeito [ufólogo] externar o seu âmago, caracterizando-o em ações culturais como música, pintura, arte, literatura, poesia, ou pela devoção a figuras sobrenaturais (sublinhados e colchetes meus). 

O deslocamento dessa instância psíquica, normalmente inconsciente, é exposto através desse mecanismo que ajuda no processo de administração desses conteúdos. Embora Freud não cite, não parece fora de contexto incluir as liturgias referidas como parte da a atividade demiúrgica de certos atores.

A superstição, a crença, a fantasia, o delírio e o fanatismo podem ter ligação com o conceito de doença, quando analisadas pela ótica de uma determinada categoria. Como o sujeito organiza sua agenda a partir de atos relacionados aos dogmas que segue, denota certa estranheza quando convive em uma sociedade mais heterogênea. Sugiro acessar a série postada neste blog que traz os capítulos 5 e 6 da obra “O Futuro de uma Ilusão”, de Freud: Corpo de ilusõesO Espírito, a psiqueCredo quia absurdumAlém da alma;  Em nome do Pai.

Jung ressalta que, “Devido ao seu parentesco com as coisas físicas, os arquétipos quase sempre se apresentam em forma de projeções, e quando estas são inconscientes, manifestam-se nas pessoas com quem se convive, subestimando ou sobre-estimando-as, provocando desentendimentos, discórdias, fanatismos e loucuras de todo tipo”. Autores representativos como MacKay e Le Bon, no século 19, categorizaram o “comportamento de manada” das massas como focos de frustração e loucura em larga escala. O fanatismo é a força ilusória dos fracos, e o único contra-ataque possível está no conhecimento. na formação e informação, no estudo, ponderação e senso crítico. Edgar Morin demonstra grande preocupação, que é nossa também: “A primeira forma de barbárie que nos ameaça é a da doutrinação, da conquista, do fanatismo e da intolerância”. Não é apenas uma opinião, é uma advertência. Estamos mais próximos disso do que se pensa. Falaremos disso em breve.

Como adendo, cabe mencionar que o fanático, nesse estágio de idolatria doentia pelo seu objeto de fascinação, fica vulnerável à ação de outros agentes externos de dependência como fármacos, drogas e álcool, por exemplo. Esses agentes produzem um efeito narcotizante que afeta o sistema nervoso central, inibe processos cognitivos lógicos, reforça o individualismo. Demais sintomas são alucinações, confusão espaço-temporal, estados delirantes e outros transtornos (psicose exotóxica); adicionalmente, encurtam a distância entre o sujeito e sua crença  o “ente sagrado”, amplificando os níveis de confiança, plenitude e prazer por essa pseudo proximidade, aliviando tensões e ansiedades, fazendo-o esquecer problemas, medos, frustrações e responsabilidades da vida prática, ainda que temporariamente por serem meros paliativos.

Na próxima e última parte da série, visitaremos o fanatismo fora dos padrões sociais aceitáveis em condutas que agridem não só a ética como põem em risco a integridade física dos cidadãos e a do próprio fanático. Neste ponto, a análise deixa de ser dos âmbitos da medicina, da antropologia e da sociologia para ser jurídica e criminal. O fanático passa a ser um perigo potencial para si e para a sociedade.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

FANATSMO PRISIONEIRO
Imagem: Zenith, bronze, 2010
               Matteo Pugliese

A postagem anterior –  A ópera dos corvos –  escrita com necessária acidez, trouxe comentários de consenso porque, de fato, o comportamento exacerbado de alguns espelha um fanatismo que ultrapassa os limites do razoável. É disso  que vamos falar – fanatismo, como quer que se manifeste – na política, na religião, no esporte. Trata-se de um tema complexo que vai além do campo das Ciências Sociais, exigindo leitura atenta e reflexão permanente. Ademais, é assunto muito atual nestes tempos estranhos de polarização acirrada, autoverdade, enfrentamento e esfacelamento da ética. O alvo de nossa crítica tem sido as crenças pertencentes ao universo do pensamento mágico e ficcional, 
quando no limiar da irracionalidade, o fanatismo: fantasmas, espíritos, anjos, deuses, crendices, superstições e extraterrestres.

Contudo, você sabe que neste blog não dá para aprofundar a discussão como seria desejável, operando mais como um candeeiro a alumiar caminhos, como sempre digo, ou plantar sementes aqui e acolá esperando que germinem em terras férteis. Então, dividi o tema em três partes de modo a proporcionar ao menos um ponto de partida para sua análise, longe de esgotar o assunto. Não ousaria ir além do que a minha experiência permite, recorrendo à literatura e aos conhecedores onde o meu saber esbarrou na ignorância. Espero que os amigos psicanalistas e psicólogos e de outras áreas que estejam lendo este artigo possam dar suas contribuições –  e correções –  se assim julgarem cabíveis.

O que me levou a abordar este tema teve sua origem no post referido, quando certo ufólogo, para sustentar e justificar suas crenças pessoais, decidiu envolver seus dois filhos, um deles adolescente, na tramoia mentirosa e abominável de se colocarem como vítimas de uma abdução alienígena. Sem dúvida, uma atitude que expõe seu caráter – ou a falta dele – desprezível, desregrado e comezinho. As semelhanças com os 
mercadores de ilusão não são coincidências. Como não sou da área médica nem jurídica, pergunto: Uma conduta dessa natureza não caracterizaria um grave transtorno mental ou um ato criminoso? Deixo a palavra com os especialistas.

Fanatismo vem do latim aefanum – templo, santuário, empregado a partir do século 18 para “indicar o estado de exaltação de quem se crê possuído por Deus e, portanto, imune ao erro e ao mal
 (Abbagnano:427). Logo, fanático expressa a convicção de quem fala em nome de um princípio absoluto, seja divindade, líder, poder, seita ou igreja, pretendendo que suas palavras também sejam absolutas. Fanático é traduzido como vigilante, guardião, serviçal, servo, lacaio, escravo do templo e, por extensão, das suas crenças. Estamos falando de um estado psíquico de devoção cega e inflexível que, em grande parte, flerta com o delírio, impossibilitando o diálogo. O fanático tem seu mundo próprio apartado da realidade.

No caso da Ufotopia, centro dessa conversa, seu arcabouço contém os princípios de uma religião embora não seja uma salvo casos muito específicos. Dito de outra forma, o fanático está absolutamente seguro de que suas ideias estão certas, são únicas, verdadeiras e indiscutíveis. Seu trabalho é convencer a qualquer custo aquele que não crê em sua verdade, em certa medida visto não como opositor, mas inimigo a ser (a)batido. O fanático acredita em qualquer mentira que reforce sua crença, e qualquer fala contrária, por mais racional e científica, será sempre hostilizada, devendo os descrentes ser combatidos ou eliminados como “solução final”. A mentira anda de mãos dadas com a crença falsa. 
O que o fanático não percebe é o quanto ele está fossilizado no tempo e no espaço, ajoelhado de costas para o mundo. Quem se posta de joelhos desconhece a própria estatura. 

Paradoxalmente, para mentir, o mentiroso conhece a verdade justamente para poder desmenti-la, invertê-la e distorcê-la. Diz Cassorla:

Defrontamo-nos com aspectos perversos, diferentes dos ingênuos e psicóticos, em que erros de percepção redundam em falsidades. O ingênuo acredita que o Sol gira em torno da Terra. O psicótico afirma que está sendo perseguido. Ambos não estão mentindo.

Quem induz deliberadamente seus filhos a cooptarem numa farsa, comete uma delinquência moral e ética condenável, revelando-se covarde, indecente, de espírito torpe e mente deformada. Veja o que diz Le Bon:

Os resíduos ancestrais formam a camada mais profunda e mais estável do caráter dos indivíduos e dos povos. É pelo seu “eu” ancestral que um inglês, um francês, um chinês, diferem tão profundamente. Mas, a esses remotos atavismos sobrepõem-se elementos suscitados pelo meio social (casta, classe, profissão, etc.), pela educação e ainda por muitas outras influências. Eles imprimem à nossa personalidade uma orientação assaz constante.

O fanático “são”, do bem, demonstra entusiasmo pelo seu objeto de adoração, paixão pelo time de futebol, admiração pelo líder político, devoção pelo santo, amor pelo ídolo com moderação e equilíbrio, sem danos a terceiros. Tenho amigos fanáticos pelo seus clubes, outro que ainda coleciona tudo sobre Ayrton Senna e assim por diante, mas sabem ser críticos e dosar seus apegos. Porém, transposta essa fronteira, o caso se torna patológico e com consequências, como veremos em  nosso próximo encontro.

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Nicola Abbagnano: Dicionário de Filosofia.
Ronaldo Brum: Fanatismo - Um Estudo Psicológico. Letra & Vida, 2007.
Jaime Pinsky e Carla Bazzanesi Pinsky: Faces do Fanatismo. Contexto, 2015.
Roosevelt Cassorla: "Notas sobre fanatismo e mentira". Soc. Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Sigmund Freud: Totem e tabu e outros trabalhos. Obras Completas, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago.
_______. O Ego, o Id e outros trabalhos. Obras Completas, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago.
Carl J. Jung. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
_______. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis, 1980.