Obras

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domingo, 29 de outubro de 2017


ALUCINAÇÃO: CRENÇA NO NÃO REAL (III)



Nos textos anteriores vimos que a alucinação carrega tintas que pintam um quadro de reflexões profundas. A traição dos sentidos e o descompasso da mente conduzem a um preocupante desequilíbrio do físico, do mental e do emocional. É deste que falamos agora. O antropólogo britânico Ioan Lewis (1930-2004) afirma que o rito, a fé e a experiência espiritual são a base das religiões, mas destaca que a experiência deve ser vista sob o quadro social onde é vivenciada, porque ela carrega as marcas da cultura e da história daquela sociedade:
Os fenômenos acessórios ligados a tais experiências, particularmente o 'dom das línguas' (xenoglossia), a profecia, a clarividência, a transmissão de mensagens e outros dotes místicos têm, naturalmente, atraído a atenção não apenas dos devotos mas também de céticos. Para muitos, de fato, esses fenômenos parecem fornecer provas persuasivas da existência de um mundo transcendente ao da experiência cotidiana comum. 
 Não é errado afirmar que as visões de cunho religioso se equiparam às de fantasmas e seres da natureza conhecidos como elementais – fadas, duendes, gnomos, sílfides e outras entidades míticas (ou místicas). Todos provêm do psiquismo humano e são classificados como alucinações, diferentemente de delírio. De acordo com a American Psychiatric Association, a definição técnica para alucinação é “A percepção sensorial falsa na ausência de um estímulo externo real. Pode ser induzida por fatores emocionais e outros como drogas, álcool e estresse, em qualquer dos sentidos - visão, audição, olfato...”

Por sua vez, o filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910) defendia a ideia de que a experiência religiosa pessoal tem raízes nos estados místicos da consciência: 
O estudo das alucinações tem sido, para os psicólogos, a chave da compreensão da sensação normal, assim como o estudo das ilusões tem propiciado a chave da compreensão da percepção. Os impulsos mórbidos e as concepções imperativas, as chamadas “ideias fixas”, projetaram torrentes de luz sobre a psicologia da vontade normal; e as obsessões e delírios executaram o mesmo serviço para o estudo da faculdade normal da crença". James estava convencido que a imaginação ontológica humana é o poder de convicção do que ela cria. "Seres irretratáveis são concebidos, e concebidos com uma intensidade quase igual à de uma alucinação.”
Chamo a sua atenção para o que nos conta o historiador israelense Yuval Harari a respeito da "criatividade" humana para crer no que não vê, no ponto em que trata da revolução cognitiva no capítulo A árvore do conhecimento. O que fica claro é que o exercício da imaginação é ancestral, atravessa milênios, muitos milênios - cerca de 70 mil anos. O texto é instigante:
Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Antes disso, muitas espécies animais e humanas foram capazes de dizer: Cuidado! Um leão!” Graças à Revolução Cognitiva, o Homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: O leão é o espírito guardião da nossa tribo. Essa capacidade de falar sobre ficções é a característica mais singular da linguagem dos sapiens. É relativamente fácil concordar que só o Homo sapiens pode falar sobre coisas que não existem de fato e acreditar em meia dúzia de coisas impossíveis antes do café da manhã. Você nunca convencerá um macaco a lhe dar uma banana prometendo a ele bananas ilimitadas após a morte no céu dos macacos.
Mas isso é tão importante? Afinal, a ficção pode ser perigosamente enganosa ou confusa. As pessoas que vão à floresta à procura de fadas e unicórnios parecem ter uma chance menor de sobrevivência do que as que vão à procura de cogumelos e cervos. E, se você passa horas rezando para espíritos guardiães inexistentes, não está perdendo um tempo precioso, tempo que seria mais bem utilizado procurando comida, guerreando e copulando? Mas a ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso coletivamente. Podemos tecer mitos partilhados, tais como a história bíblica da criação, os mitos do Tempo do Sonho dos aborígenes australianos e os mitos nacionalistas dos Estados modernos. Tais mitos dão aos sapiens a capacidade sem precedentes de cooperar de modo versátil em grande número. 
Do ponto de vista da psicologia analítica, Jung preconiza que, na doença mental, o inconsciente se sobrepõe à consciência, rompendo as barreiras de contenção do próprio inconsciente, e, com isso, as alucinações apresentam à consciência uma parte do conteúdo ali depositado, que passa para o seu domínio. Assim sendo, as alucinações - e os delírios - não nascem de processos  conscientes, e sim, inconscientes, cujos fragmentos brotam na consciência tal qual no sonho, ou seja, dissociados. A metáfora é pertinente: a alucinação pode ser vista como um sonhar desperto, ou, o sonho uma alucinação dos lúcidos. Faz sentido: todo sonho é sim uma "alucinação", já que estamos tão envolvidos no cenário onírico que os elementos, por mais absurdos que sejam, são tomados pelo sonhador como normais, fazendo parte daquela realidade, a sua realidade, sem contestação. É a manifestação do repertório inconsciente sob a forma de alucinação na consciência. A predisposição da consciência para tal é latente. Falaremos mais sobre este aspecto na próxima semana, quando teremos a participação de um  convidado especial com larga bagagem nesse campo.

Para encerrar a conversa de hoje, há um aspecto que não pode ser posto de . Na esfera da Filosofia, as alucinações podem ser consideradas como mecanismo de defesa patológico do sujeito social ante uma cultura cada vez mais esquizofrênica; é o surgimento de uma realidade metafísica que se funde na realidade física, tornando-se indistinguível. Sobre a cultura esquizofrênica, não sou apenas eu quem diz, é a radiografia que estudiosos de vários setores fazem sobre o presente, e não precisamos ir muito longe para constatar isso. Toda sociedade tem sua cultura própria, e se ela for esquizofrênica, a sociedade também o será. Esquizofrênica, aqui, cabe perfeitamente ser entendida como alienante, podendo ser idiotizante chegando ao limiar da insanidade.
Entre tantos, este é mais um tema recorrente, e se insisto nele é para que você saiba da extensão e gravidade do problema. Só para constar: do grego skhizen - separar, dividir, cindir, e phrein - razão, mente. Acho que você entendeu.




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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.
Vilayanur Ramachandran, Fantasmas no Cérebro. Record, 2004.
Yuval Harari, Sapiens: Uma breve história da humanidade. L&PM, 2015.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017




ALUCINAÇÃO: DESCOMPASSO DA MENTE (II)

Neste segundo capítulo sobre as alucinações, vamos conhecer algumas de suas muitas causas, descritas resumidamente:
Transtorno psicótico compartilhado - quando  o sujeito portador de um distúrbio  psicológico com manifestações delirantes mantém estreita relação com outras pessoas, passando a ser o "caso primário", reforçando as crenças paranoicas dos demais; 
Lesão cerebral -  traumatismos, concussão, choque, aneurisma, câncer, esclerose, etc;
Deficiência visual - glaucoma, catarata, tumores, Síndrome de Charles Bonnet*;
Histeria em massa - acomete grande número de pessoas, com sintomas de náuseas, hiperventilação, desmaios;
Doença de Creutzfeldt-Jakob - rara doença degenerativa do cérebro que quando afeta o lobo occipital causa perda de movimentos e sensações, provocando as alucinações;
Síndrome de Alice no país das maravilhas - síndrome neurológica que provoca percepções distorcidas de tempo e espaço, inclusive do seu próprio corpo;
Licantropia clínica - distúrbio psiquiátrico extremamente raro no qual a pessoa acometida acredita ter se transformado em lobo ou outro animal, com nítida sensação de possuir pelos, garras, dentes salientes e outras características não humanas;
Síndrome de Erikson - também conhecido por "delírio parasitário", quando a pessoa credita estar infestada de parasitas sob a pele. Tentando se livrar dos patógenos, provocam escoriações, feridas, infecções graves e automutilações;
Síndrome de Cushing - é a alta concentração de hormônio cortisol, ou hormônio de stress, com visíveis sinais cutâneos (estrias em várias partes), inchaço facial, obesidade e perda da libido. Casos psiquiátricos relatam euforia, delírios paranoicos e alucinações visuais e auditivas.
As alucinações podem acontecer quando um elemento interno dispara um padrão de atividade equivalente ao que é normalmente gerado quando um órgão do sentido responde a um evento publicamente observável. Estudos revelam que cerca de 4% das pessoas em uma população possuem uma imaginação muito intensa e mais dificuldade em julgar as diferenças entre eventos reais e imaginários.  Alguns exemplos típicos de personalidades propensas às fantasias são os grandes visionários do passado compelidos por vozes ou visões alucinatórias, como Sócrates, Joana D'Arc, Santa Terezinha e Swedenborg, mas se encaixam nessa definição também os que relatam abduções em naves alienígenas, os que ouvem vozes e os “médiuns visuais” que veem espíritos em profusão, por toda parte e a todo momento. As alucinações aproveitam o material já arquivado na memória arquetípica  do indivíduo, que é interpretado segundo seu sistema de crenças e valores e em seu universo cultural.

Pierre Janet (1859-1947), filósofo e psicólogo, defendia a existência de uma “segunda consciência” subjacente à corrente normal de pensamentos. Quando a personalidade humana perde sua coesão, se liquefaz, uma parcela da consciência separa-se do conjunto e dá origem a diversos automatismos motores e sensoriais, isto é, fenômenos tão distintos como anestesias, catalepsias, escrita automática, sonambulismo, alucinações e possessões seriam formas de “desagregação psíquica”, manifestações de uma corrente secundária (Janet usa “conservadora”) de pensamentos, vontades e imagens que se sobrepõe ao campo habitual de consciência.

O historiador e antropólogo Michel de Certeau (1925-1986) sugere uma análise da mística a partir de componentes psicanalíticos sublimatórios e de deslocamentos libidinais, expondo sua visão sobre as alucinações e visões coletivas: “As referências englobantes e os discursos dogmáticos que vêm da tradição, aparecem como particularidades. Estão na própria experiência dos crentes, elementos, entre outros, num quadro onde tudo fala de uma unidade desaparecida. O que era totalizante não é mais senão uma parte nesta paisagem em desordem, que requer um outro princípio de coerência. Os critérios de cada comunidade crente se encontram, por isso, relativizados [...].” Seu comentário final pede atenção: “Desta maneira, massas populares sem âncoras e como que errantes através dos enquadramentos sociais e simbólicos, são entregues a alucinações feiticeiras que esta ausência cria. O ceticismo que se estende atesta a mesma ausência, mas nos meios cultivados. Feitiçaria e ceticismo, com efeito, esboçam o vazio que uma razão universal ou uma Lei Natural não preenchem.”

Ele chega a concluir que as alucinações desempenham um importante papel na nossa vida e na história das artes, da religião e da cultura de um modo geral, e que nossa ingênua concepção da realidade, segundo a qual nós percebemos o mundo de forma praticamente direta por meio de nossos sentidos, parece estar totalmente equivocada. O contínuo avanço das pesquisas nas neurociências contribui enormemente para a compreensão da nossa estrutura mental, mas isso só será possível quando e se admitirmos que os deuses não são astronautas ou entidades sutis vindos do puro éter que só se revelam a eleitos. "São apenas projeções de um drama interior encenado desde as origens em cada um de nós, cujos medos e esperanças se recortam à contraluz da película invisível da mente". 

Para concluir, o desenvolvimento nos últimos anos dos processos laboratoriais de análise investigativa da genética sobre aspectos moleculares fez um grande avanço, despertando a atenção da comunidade científica nos estudos etiológicos sobre a importância do ambiente familiar na arquitetura dos processos alucinatórios. Segundo Aranha, "Há suficientes evidências da presença de um componente genético familiar substancial na origem dos processos alucinatórios, notadamente quando ocorrem na esquizofrenia. Essas evidências provêm de um grande número de estudos familiares, em irmãos gêmeos, não gêmeos e adotados, realizados em diversas populações." Estudos mais recentes recrudescem essa validade graças a aparatos diagnósticos cada vez mais precisos. 

As alucinações coletivas podem ser induzidas pelo poder da sugestão? Sim. Ocorrem geralmente em situações de exaltação emotiva, especialmente entre devotos religiosos, mas não necessariamente. A expectativa e esperança de ser testemunha de um milagre (a causa predisponente de Esquirol)  combinadas com longas horas de olhar fixo num objeto ou lugar (a causa exitante), torna certas pessoas suscetíveis a ver coisas tais como uma imagem que chora ou que se move, ou a aparição da Virgem Maria ou até de sóis dançantes. Relatos de guerra dão conta de soldados que, mortos em combate, “ressurgem” no campo de batalha para avisar os companheiros sobre ciladas e ataques inimigos, ou simplesmente para “se despedirem”. Sacks acrescenta que as alucinações podem ser cheias de surpresas e  frequentemente mais detalhadas do que as imagens mentais. Muitos casos envolvendo a morte de entes queridos dão conta de que os familiares, por diversas vezes e por muito tempo (meses ou anos), “conversaram” longamente com seus cônjuges, filhos, pais e parentes falecidos, segundo Sacks, um claro sintoma de alucinação visual e auditiva.

* Descoberta em 1769 em pacientes com perda parcial ou total da visão por acidente, tumores ou lesões internas; as alucinações podem ser simples ou complexas, nítidas, silenciosas, com duração variável.



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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.
Vilayanur Ramachandran, Fantasmas no Cérebro. Record, 2004.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017


ALUCINAÇÃO: A TRAIÇÃO DOS SENTIDOS (I)


Começo hoje uma nova série para debate, desta vez sobre alucinação, incluindo as "visões" coletivas. É assunto controverso, extenso, complexo, delicado, objeto de interpretações diversas e geralmente errôneas, por desinformação, o que pede a intervenção esclarecedora de especialistas nos domínios da Religião, da Psicologia e da Neurociência, áreas em que iremos nos ocupar para tentar trazer um pouco de luz. A Psicologia do comportamento, as Ciências Sociais, a Psiquiatria e agora a Engenharia Genética também se debruçam sobre o tema, mas não serão abordadas aqui por motivos óbvios. Não tenha dúvidas, a literatura é enorme, permanentemente atualizada, portanto não cabe a pretensão de esgotar o assunto, mas proporcionar um panorama razoável. Ademais, vou me ater apenas às alucinações visuais, porque as olfativas e auditivas (vozes, música, ruídos), também importantes, ficam de fora neste momento.

Uma boa definição de alucinação é dada pelo neurologista inglês Oliver Sacks (1933-25015), autor de prestígio e infatigável divulgador científico:
Quando a palavra ‘alucinação’ foi usada pela primeira vez, no começo do século XVI, denotava apenas ‘uma mente divagante’. Só nos anos 1830, o psiquiatra francês Jean-Étienne Esquirol deu ao termo sua presente acepção. Ele apontava a "loucura" como a soma de duas causas: a predisponente, associada à personalidade, e a excitante, fornecida pelo ambiente. A Psiquiatria atual emprega outros termos para dizer a mesma coisa. Antes disso, o que hoje chamamos de alucinação era chamado simplesmente de ‘aparição’. As definições precisas da palavra variam consideravelmente, sobretudo porque nem sempre é fácil discernir as fronteiras entre alucinação, erro de percepção e ilusão. De modo geral, porém, definimos alucinações como percepções que surgem na ausência de qualquer realidade externa - ver ou ouvir coisas que não existem. 
Os relatos de alucinações atravessam a história humana, mas nos tempos pré-modernos elas eram explicadas através da linguagem simbólica das experiências religiosas de transe, de magia, profecias, ou por intermédio da percepção meta-empírica de ordem mística ou divina. Somente no fim do século 18 e início do seguinte é que foi possível traçar uma etiologia e uma fenomenologia da manifestação alucinatória nas áreas da Neurociência, da Psicologia e da Psiquiatria. Um ponto interessante é a relação que Sacks apresenta entre alucinações e religião. Ele entende que muitas dessas percepções podem adquirir uma interpretação divina, como a visão de anjos, demônios, pessoas que já se foram – ou a visão de si mesmo, como uma experiência extracorpórea enquanto se está entre a vida e a morte, acreditando que o espírito “saiu do corpo”. 

Foi-se o tempo de atrelar a alucinação à loucura, à demência ou a outros distúrbios mentais como a esquizofrenia, por exemplo. A alucinação, principalmente aquela não patológica, a do tipo transitória, é comum em nossa cultura, porém muito mal compreendida. Está na raiz das religiões e do misticismo e pode explicar uma boa quantidade de acontecimentos misteriosos como aparições de criaturas sobrenaturais, santas, entidades etéreas, deuses e fantasmas, visões e encontros com alienígenas, "viagem astral" e experiências de quase-morte.

Enquanto certas aparições envolvem um único observador, vidente ou receptor de uma suposta mensagem, pode-se interpelar fortemente sobre a sua legitimidade, mas quando ocorre para centenas ou milhares de olhos simultaneamente, é lícito duvidar? Poderia afirmar tratar-se de alucinação coletiva? É possível tal fenômeno? No caso de Fátima, por exemplo, teria ocorrido uma visão em massa ou a santa, de fato, apareceu para a multidão? Teria o sol “dançado” como afirmam os presentes?

Sacks conhece bem estes aspectos e derruba alguns preconceitos, desmistifica outros e discorre com clareza sobre a riqueza da percepção e das faculdades imaginativas. Ele está seguro de que, nas alucinações, as imagens evocadas se projetam no espaço externo e possuem as mesmas qualidades (ou quase) das coisas percebidas pelos sentidos. Ele salienta que “Muitas alucinações parecem ter a criatividade da imaginação, dos sonhos ou da fantasia – ou os vívidos detalhes e a externalidade da percepção. Mas uma alucinação não é nenhuma dessas coisas, embora possa ter alguns mecanismos neurofisiológicos em comum com cada uma delas.”

Caso você não saiba as sutis diferenças entre alucinação, delírio e ilusão, sintetizo-as:

Alucinação - É a percepção real de um objeto inexistente, isto é, são percepções sem um estímulo externo. A percepção é real, considerando a convicção que a pessoa manifesta em relação ao objeto alucinado, portanto, "real" para o alucinando. Sendo a percepção da alucinação de origem interna, emancipada de todas as variáveis que possam acompanhar os estímulos ambientais, o objeto alucinado é percebido mais nitidamente que o objeto real.

Ilusão - (raiz latina ludus) - Estímulo percebido de forma deformada, ou seja, apenas um “engano”dos sentidos, sem a presença real do objeto. Pode ser traduzida por farsa, logro, jogo (daí "lúdico"). O fenômeno alucinatório tem conotação muito mais mórbida que a ilusão, sendo normalmente associado a estados psicóticos que ultrapassam uma simples falha dos sentidos. Na alucinação, o envolvimento psíquico é muito mais contundente que nos estados necessários à ilusão.

Delírio - O filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers definia-o como um juízo patologicamente falso da realidade. Para tal, ele deve apresentar três características, ou "regras": a) Deve apresentar-se como uma convicção subjetivamente irremovível e uma crença absolutamente inabalável; b) Deve ser impenetrável e incompreensível para o indivíduo normal, bem como impossível de sujeitar-se às influências de correções quaisquer, seja através da experiência ou da argumentação lógica e; c) Impossibilidade de conteúdo plausível.
Os casos que não se encaixarem nessas regras não devem ser entendidos como delírios verdadeiros ou primários, mas como ideias deliroides ou delírios secundários.

Sacks despeja uma avalanche de interrogações:
As alucinações sempre tiveram um lugar importante em nossa vida mental e em nossa cultura. Devemos até nos perguntar em que medida experiências alucinatórias ensejaram nossa arte, nosso folclore e até mesmo nossa religião. Será que os padrões geométricos vistos na enxaqueca e em outros distúrbios prefiguram os temas da arte aborígine? As alucinações liliputianas (que não são raras) teriam originado os gnomos, diabretes, leprechauns e fadas do folclore? As terríveis alucinações do pesadelo de ser cavalgado e sufocado por uma presença maligna teriam algum papel na geração dos nossos conceitos de demônios, bruxas e alienígenas malévolos? As convulsões extáticas, como as de Dostoiévski, contribuíram de algum modo para gerar o nosso senso do divino? As experiências extracorpóreas legitimam a ideia de que uma pessoa pode sair do corpo? A insubstancialidade das alucinações encoraja a crença em fantasmas e espíritos? Por que toda cultura conhecida procurou e encontrou drogas alucinógenas e as usou, antes de tudo, com propósitos sacramentais? O tempo só fez ampliar e aprofundar nossa compreensão da grande importância cultural do que poderia, a princípio, parecer pouco mais do que uma peculiaridade neurológica.
Por ora é o que nos basta. Aguarde a próxima publicação.
  
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Maurício Aranha, Etiologia das alucinações. Ciência&Cognição, 2004, v. 2, p. 36-41.
Pierre Janet, L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 11:2, jun/2008, p. 310-314. (Tradução Alain François).
William James, As Variedades da Experiência Religiosa. Cultrix, 1991.
Ioan Lewis, Êxtase Religioso. Perspectiva, 1977.
Oliver Sacks, Alucinações. Relógio d'Água, 2013.
__________. A Mente Assombrada, Cia. das Letras, 2013.
Carl G. Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
__________. Símbolos da Transformação. Vozes, 2001.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017


O ESPÍRITO DAS LUZES




Não resisti e me animei a continuar o assunto da semana passada por julgá-lo de fundamental importância, e porque imagino, ou pelo menos espero, que você esteja fazendo a devida conexão com o prato principal deste blog, que já nem é tanto o "disco voador", mas o próprio ser. Então, depois de Ortega y Gasset, a ponte agora se estende a duas obras absolutamente indispensáveis para se compreender o intrincado universo humano: O opúsculo O que é o Iluminismo? de Immanuel Kant (1724-1804) e O Espírito das Luzes, do filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017), da qual tomei o título emprestado. Dois séculos, duas épocas e dois mundo as separam. Ao trazer Kant para a pós modernidade, Todorov pergunta: "De que modo podemos compreender o Iluminismo hoje? É possível estabelecer um diálogo com o contemporâneo, 250 anos depois?" Herdeiros desse pensamento, somos responsáveis pelos nossos atos e falas, tanto em relação a nós como ao outro, e essa atitude faz toda a diferença. 

O que é o iluminismo responde o próprio Kant:
Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de terceiros. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.
Pensar por si mesmo é uma espécie de "mandamento" kantiano, mais sutil do que aparenta, válida principalmente para o homem moderno, que não difere do antigo, ambos marcados pela preguiça e pela covardia. Preguiça e covardia de pensar! Tem coisa mais desprezível e mesquinha que isso? É a única faculdade que o distingue de um camelo e ele não a usa, preferindo igualar-se ao quadrúpede! É o que no fundo Kant está nos dizendo.

O período do Iluminismo - entre o final do século 17 e o 18 - caracterizou-se pela crítica a toda e qualquer crença, e por considerar o conhecimento como principal vetor para aprimorar a vida humana, em todos os sentidos. Kant empenhou-se em contribuir no sentido de estabelecer a crítica aos limites da razão, apontando-a como fonte e fundamento do conhecimento. Ele coloca a preguiça e a covardia como fatores que mantém a maior parte dos seres humanos na menoridade. É mais fácil agir segundo os ditames do outrens, os preceitos de um livro, as regras impostas por uma cultura, enfim, segundo alguém que nos guie. Sabe a quem ele está se referindo? Claro que sabe - aos gurus, profetas, cartomantes, astrólogos, marqueteiros, pastores, sacerdotes, oráculos, auto-ajuda... todos aqueles que contribuem para construir e consolidar a idiotia customizada. Ainda Kant:
Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que em vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando posso simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles. É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou quase uma natureza. Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. São, pois, muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade e encetar então um andamento seguro.
Pensar é difícil e perigoso! Trapaceiros assumem com prazer a incumbência por você! Não há como não evocar Nietzsche quando ele diz que se você quiser lutar, lute; se quiser descansar, descanse; se quiser fugir, fuja, mas não recue sob nenhum pretexto, porque o mundo se articula para que desista. Em outras palavras, compete somente a você sair ou não da caverna. A semelhança com a alegoria é absoluta. Mais de dois milênios separam estes pensamentos e seguimos exercendo a ignorância a ponto de se tornar parte da condição humana mediocrizada! Além de preguiçosos, covardes! Pode haver algo mais humilhante, mais vergonhoso? 

Não ter coragem de pensar por si mesmo é encabrestar o intelecto, deixando-o ser inoculado por organismos exógenas lesivos, é terceirizar a vida entregando-a ao apetite de predadores vorazes, é sacramentar sua incompetência para governar-se. Estamos no coração do iluminismo pelo olhar de Kant. Desconfio que ele é um sobrevivente do século 18 observando incógnito o 21. Saiba que a razão é a nau capitânia que vai te fazer atravessar mares dos mais bravios entre brumas as mais espessas por caminhos sem fim. Faça como os velhos navegantes, que na escuridão da noite se guiavam pela luz das estrelas, e confiavam nelas. Jamais haverá vento a favor para quem não souber qual direção seguir. Não seja uma couve-flor, um molusco, um balde. Rejeite fórmulas cosméticas e suas artimanhas enganosas, não caia nessa cilada de rapinagem intelectual. Apure o senso crítico, ande com as próprias pernas, sem muletas, sem amparos, sem fios suspensos. Qual legado você quer deixar, afinal? Não faça seu dom supremo apodrecer no labirinto dos cegos. 



A esta altura, creio que você captou a mensagem que venho bombardeando todo esse tempo. Reformar o pensamento é tarefa dolorosa, árdua, desgastante, desconfortável. A faculdade da razão é a chave que nos liberta das correntes alienantes. Kant entende a liberdade como caminho, a liberdade como “fazer uso público de sua razão em todas as questões”. Estabelecendo um elo entre passado e presente, Todorov transita pelas Luzes e pelo nosso tempo, destacando que os acontecimentos capitais do século 20 levaram ao descrédito das ideias de humanismo, emancipação, razão, progresso e livre-arbítrio, propondo a emergência de “reascender as Luzes” dando-lhes um brilho renovado. E como ele fará isso? E como nós faremos isso? Com autonomia.

É assim que Todorov - e em seu tempo, Kant - entende como sendo a fórmula para a libertação da tutela de outrem - uma autoridade divina ou humana, um ditador ou uma ordem imposta de fora. E como se dá essa autonomia? Para ele, a autonomia surge na liberdade de examinar, questionar e duvidar. Dogmas e normas sagradas deixam de ser a régua do sujeito. Preciso sublinhar isto?  É esse o papel as Luzes, é esse o papel do homem ilustrado e do filósofo: submeter tudo à crítica da razão.

Os pensadores iluministas tinham noção de que o indivíduo não é estritamente racional e que a razão opõe-se à fé religiosa. Crítica e razão, no entanto, estão ligadas ao saber, e este pode ser emancipador do homem. Há que se destacar que a autonomia só terá valor e sentido se ética, sem transgredir as regras da autoridade social - a dos homens para os homens. Essa autonomia individual, nos tempos pós modernos. cruza com problemas de grandeza global, adverte Todorov, mas essa é uma longa história posto que sua análise estende os tentáculos a aspectos de mesma magnitude. Como quer que seja, se queremos recuperar, ou melhor, viver o espírito das Luzes, temos que nos guiar por elas.


Para Todorov, o conhecimento vem pela experiência e pela razão, esta valorada como instrumento [do conhecimento], opondo-se à fé e às paixões. A compreensão que se tem hoje do conhecimento é de algo objetivo, universal e impessoal, apropriação e domínio do mundo a partir da acumulação de verdades objetivas que devem permanecer externas ao homem. O espírito das luzes segue três linhas de força fundamentais: autonomia do conhecimento (pensar por si mesmo), finalidade desse saber (propagar a verdade) e a terceira força, a universalidade - ser cosmopolita, sem fronteiras e sem restrições. Essas definições foram aqui simplificadas, claro, tudo é bem mais amplo.

Ainda que me alongue, e só faço quando necessário, não posso deixar de acrescentar um pensamento seminal de Kant, com o qual encerro a conversa de hoje.
A crença ou a validade subjetiva do juízo, relativamente à convicção (que tem uma validade objetiva), apresenta os três graus seguintes: opinião, e ciência. A opinião é uma crença, que tem consciência de ser insuficiente subjetiva e objetivamente. Se a crença apenas é subjetivamente suficiente e, ao mesmo tempo, é considerada objetivamente insuficiente, chama-se . Por último, a crença, tanto objetiva como subjetivamente suficiente, recebe o nome de ciência
Mas a verdade repousa na concordância com o objeto e, por conseguinte, em relação a esse objeto, os juízos de todos os entendimentos devem encontrar-se de acordo (consentientia uni tertio, consentiunt inter se). A pedra de toque para decidir se a crença é convicção ou simples persuasão, será, portanto, externamente, a possibilidade de a comunicar e de a encontrar válida para a razão de todo o homem, porque então é pelo menos de presumir que a concordância de todos os juízos, e apesar da diversidade dos sujeitos, repousará sobre um princípio comum, a saber, o objeto, com o qual, por conseguinte, todos os sujeitos concordarão e desse modo será demonstrada a verdade do juízo.
Ao apagar das luzes (ops!) deste post, alguém pede a palavra. É Pascal, matemático e filósofo francês do século 17, para dizer que Toda a nossa dignidade consiste no pensamento. É daí que temos de nos elevar, e não do espaço e da duração que não conseguimos preencher. Trabalhemos, pois, para pensar bem: eis o princípio da moral.



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Immanuel Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Edições 70, 1995.
________. A Crítica da Razão Pura. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
Tzvetan Todorov, O Espírito das Luzes. Barcarolla, 2008.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017


O SER EM ESTILHAÇADO


Como faço de vez em quando, o texto de hoje não é meu, mas do escritor, ensaísta e filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Entre tantas obras, selecionei alguns excertos de A Rebelião das Massas, publicada em 1930, por três razões: Trata-se de um autor que pensou a vida, o mundo, o homem e a dinâmica da sociedade por uma perspectiva além de sua época; é uma obra mais atual que nunca, pois o indivíduo que ele disseca não é apenas o do seu tempo, mas do nosso, fala de mim, de você, de todos nós com precisão cirúrgica, e a terceira razão porque nos obriga refletir sobre o que somos e o que queremos ser. Mas há mais uma razão camuflada nas entrelinhas - O conteúdo da obra está estreitamente ligado à essência deste blog. 

O autor é abrasivo, sua análise é daquelas que ardem na alma como chá fervente na pele. Estamos diante de um espelho recoberto por finas películas que vão sendo retiradas, a última revelará nosso verdadeiro rosto, partindo-o em estilhaços. Ortega catapultou o homem e a sociedade do início do século 20 para o de hoje, o da "nova alienação" ou do "aperfeiçoamento da alienação cultural", ou ainda, se você preferir, da idiotização progressiva. Pergunte a Ortega que homem é esse, e ele lhe dirá: "É o homem previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado (…) Só tem apetites, pensa que só tem direitos e não obrigações: É um homem sem obrigações de nobreza". Ele o chama "homem-massa". Para ele, é a memória que nos distingue do animal: "Romper a continuidade com o passado é querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango".

Sua preocupação central assenta na massificação do indivíduo, em sua fusão com a multidão e a fratura consigo mesmo, que o leva, como efeito colateral, à procura de um lugar - seu lugar - nesse ajuntamento disforme. Sentindo-se parte do todo, ou pior, parte de uma parte de um todo inexistente, não percebe sua desvalorização, dessignificação, desfiguração, desintegração e desidentidade: "A característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte". Pensar como aos outros é navegar às cegas por um rio que desconhece, adernando caoticamente ao balanço das águas, agarrando-se uns aos outros e todos nas cordas imaginárias de um espectro idem quando sobrevém o naufrágio. Pensar por si exige autonomia e esforço. E coragem. 

Na esteira desse estado, Ortega vê com tristeza e temor o florescimento indiscriminado do hedonismo e do encantamento desmedido do homem consigo mesmo. Seu pobre patrimônio cultural e intelectual lhe basta: "Não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito. Surge um novo tipo de homem, o que não quer dar razão nem quer ter razão, mas que mostra-se decidido a impor suas opiniões; é o direito a não ter razão. Possui idéias, mas é incapaz de formá-las. O modo de atuar é a "ação direta", invertendo a ordem promovendo a violência como prima ratio. Não deseja a convivência com o que não é como ele. Odeia mortalmente o que não é ele". Isso o torna fraco e precário, como diz Dalrymple, "podre de mimado", por obra de um "sentimentalismo tóxico que é progenitor, avô e parteira da brutalidade".

Mais é menos tanto quanto

Quanto menos substância tem o homem, mais vazio ele é; quanto mais fora do eixo, menos equilíbrio; quanto mais circunstância, menos história, menos memória; quanto mais crente, menos crítico. Quanto mais dogma, menos reflexão; quanto menos autêntico, mais subjugo; quanto mais paralisia, menos potência; quanto mais falência, menos ética. Quanto menos estrutura, mais fragmento; quanto menos andante, mais claustrofóbico. Não expandir é encolher, não aprender é errar, não renovar é morrer. Dizia Rubem Alves que ostra feliz não produz pérola. Oscar Wilde, por sua vez, diria que muitas pessoas apenas existem, poucas vivem. Hoje é infinitamente mais importante registrar do que viver o momento. A criança é mais graciosa no vídeo que no berço. A torta é mais suculenta na foto que no prato. A garota é linda no Face, já pessoalmente... O sujeito que se faz pela imagem, triste imagem de si mesmo. A ficção é mais realista que a própria realidade.

Cabe dizer que Ortega escreveu há 90 anos (os artigos originais datam de 1923 a 1927, reunidos e organizados para publicação em 1930), num cenário historicamente conturbado no teatro europeu entre o pós-guerra e a emergência do fascismo, do socialismo, provocando permanente análise e reflexão. Não lhe parece similar ao modelo vigente? Encerro com mais trechos de sua obra para sua análise e reflexão.

O bisturi de Ortega y Gasset

Observai os que vos rodeiam e vereis como avançam perdidos em sua vida; vão como sonâmbulos, dentro de sua boa ou má sorte, sem ter a mais leve suspeita do que lhes acontece. Ouvi-los-eis falar em fórmulas taxativas sobre si mesmos e sobre seu contorno, o que indicaria que possuem ideias sobre tudo isso. Porém, se analisais superficialmente essas ideias, notareis que não refletem muito nem pouco a
realidade a que parecem referir-se, e se aprofundais na análise achareis que nem sequer pretendem ajustar-se a tal realidade. Pelo contrário: o indivíduo trata com elas de interceptar sua própria visão do real, de sua vida mesma. Porque a vida é inteiramente um caos onde a criatura está perdida.

O homem o suspeita; mas aterra-o encontrar-se cara a cara com essa terrível realidade, e procura ocultá-la com um véu fantasmagórico onde tudo está muito claro. Não lhe interessa que suas "ideias" não sejam verdadeiras; emprega-as como trincheiras para defender-se de sua vida, como espantalhos para afugentar a realidade.

O homem de mente lúcida é aquele que se liberta dessas "ideias" fantasmagóricas e olha de frente a vida, e se convence de que tudo nela é problemático, e se sente perdido. Como isso é a pura verdade - a saber, que viver é sentir-se perdido -, quem o aceita já começou a encontrar-se, já começou a descobrir sua autêntica realidade, já está no firme. Instintivamente, como o náufrago, buscará algo para se agarrar, e esse olhar trágico, peremptório, absolutamente veraz porque se trata de salvar-se, lhe facultará pôr ordem no caos de sua vida. Estas são as únicas ideias verdadeiras; as ideias dos náufragos. O resto é retórica, postura, íntima farsa. Quem não se sente de verdade perdido perde-se inexoravelmente; é dizer, não se encontra jamais, não topa nunca com a própria realidade. 



Diferentemente dos animais, você tem o poder de escolha: Juntar-se à grande maioria de iguais solitários desprovidos de autonomia, tendo como lema "Um lugar de La Mancha é onde não me quero acordar"(D. Quijote)ou seguir a minoria de excelência na intrépida aventura do conhecimento. A primeira opção define quem você é, a segunda, quem você pretende ser. A primeira é solipsismo compartilhado, a segunda é saber multiplicado. A primeira é dissonante, a segunda é consonante. Quer um falso paradoxo? A maioria leva à menoridade, a minoria à maioridade. Kant repreende com enfado: "É cômodo ser menor!" O que você espera de você?

Imagem: Cortesia GD Fotografias.
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José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ruriark, 2013.
Theodore Dalrymple, Podres de Mimados. É Realizações, 2015.
Immanuel Kant, Textos Seletos v. 2. Vozes, 1985.