Obras

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sexta-feira, 31 de agosto de 2018

FRONTEIRAS DO  IMAGINÁRIO
Parte 4

Neste quarto e penúltimo capítulo, talvez o mais importante, Gleiser toca no ponto nevrálgico da discussão sobre vida extraterrestre ao falar do desejo de companhia cósmica. Aliás, não só ele como muitos dos mais refinados autores adotam linha de pensamento semelhante, não por acaso nem por coincidência. Atenção, é aí que está o ponto fundamental: O imaginário extraterrestre é a raiz desse mito. Ou seja, este sentimento denso e pungente de solidão é o mito fundador da ufotopia a partir do qual se construiu toda a sua narrativa ficcional. Esse tem sido o fio condutor do meu trabalho nos últimos três decênios, o que me obriga à agradável tarefa de montar um feixe de estudos concomitantes, transdisciplinares, porque os temas da solidão cósmica, do imaginário e de um amplo entorno são recorrentes e imbricados entre si em uma extensa malha cultural. E tem gente que ainda não percebeu a complexidade do mundo!

Este imaginário extraterrestre atravessou décadas por conta da ausência de explicação na origem da questão ufológica. Como a não explicação persiste, a ufotopia agoniza, com sintomas de fase terminal. O imaginário, de modo geral, é importante por ser motriz dos nossos sonhos e trampolim para a criatividade, portanto, embora pareça um erro falar em limites, eles existem! Limites são fronteiras, não barreiras, e essas fronteiras existem na medida em que não se pode tomar o imaginário como real sob pena de cair nas teias da psicose, fonte de condutas tortuosas insolucionáveis.


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Essa visão deslumbrante da natureza é profundamente inspiradora e majestosa. Espero que esteja correta. Seria maravilhoso. O desejo por companheiros cósmicos se une ao desejo pela harmonia cósmica. A prova da existência de alguma espécie de "imperativo cósmico" para a vida iria contra a ortodoxia darwiniana, que descarta qualquer tipo de determinismo no que diz respeito a processos relacionados com a origem e a evolução da vida.

De acordo com a teoria da evolução, não existe qualquer plano ou propósito para a vida; o drama da existência ocorre à medida que criaturas lutam para sobreviver em ambientes diversos. Portanto, seria muito difícil resistir à tentação de relacionar algum tipo de imperativo cósmico com um senso de propósito, com a existência de alguma espécie de qualidade universal divina que favorece (e mesmo cria) a vida. Por outro lado, mesmo sendo profundamente transformadora para o senso de identidade da humanidade, não há qualquer razão para equacionar a descoberta de vida extraterrestre com noções religiosas. Poderíamos igualmente argumentar que o cosmo tem um imperativo para criar estrelas, dada a enorme quantidade delas.

Porém, sabemos que estrelas resultam da contração gravitacional de nuvens de hidrogênio, um processo físico bem compreendido que, dadas certas condições, pode ser facilmente repetido por todo o cosmo sem qualquer senso de propósito ou intencionalidade. Em outras palavras, mesmo se a vida for descoberta em algum outro lugar e concluirmos que deve ser bastante comum no cosmo, podemos manter a explicação de sua existência dentro do domínio da ciência.

A situação seria outra se a vida extraterrestre fosse multicelular. Uma coisa é descobrir amebas, outra é encontrar formas de vida complexa, seres com órgãos distintos realizando funções metabólicas e motoras distintas. Dada a incrível resistência dos extremófilos terrestres aparecendo nos ambientes os mais severos, acredito que a vida microbial não deva ser tão rara no cosmo. Entretanto, não vejo como a vida multicelular possa ser comum. Ao contrário, dados os enormes obstáculos que a vida terrestre sobrepujou até chegar ao nível de seres multicelulares, e a desolação dos planetas do nosso sistema solar (a despeito da sua beleza austera), como imaginar que a vida complexa possa ser comum no cosmo? Claro, não sabemos a resposta, e no momento podemos apenas especular. Porém, daquilo que aprendemos até agora, a probabilidade parece ser muito pequena.

Quanto mais complexa a vida, mais frágil ela é. Animais complexos têm menor resistência a mudanças radicais de temperatura e não podem viver em ambientes extremos, como fazem as bactérias. Qualquer planeta que abrigue vida complexa precisa de um excelente termostato, o que implica uma série de limitações geológicas e atmosféricas. Quanto maior a criatura, mais vulnerável ela é a ataques de predadores e de mais energia precisa para sobreviver.

Como formas de vida inteligente - aqui ou em qualquer outro lugar - surgem após seres multicelulares evoluírem por centenas de milhões de anos, a descoberta de vida extraterrestre multicelular ofereceria evidência muito convincente - se bem que ainda indireta - da existência de outros seres inteligentes no cosmo. Lembre-se de que a inteligência humana é produto de uma série de acidentes cósmicos e ambientais: como nos ensinam os dinossauros, que viveram aqui por 150 milhões de anos e de inteligentes tinham muito pouco, a inteligência não é o propósito final da evolução das espécies. Todavia, eu seria o primeiro a admitir que a descoberta de vida alienígena complexa seria profundamente revolucionária.

[continua]

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

NÓS E ELES
Parte 3


Gleiser é cientista e professor de Filosofia Natural, portanto, nada mais natural do que filosofar quando se trata "deles", os aliens. Ele não filosofa exatamente, mas como você já leu aqui muitas vezes, a questão da alteridade está sempre presente como uma espécie de "chave-mestra" que abre as portas deste enigmático castelo que somos nós e eles. Para entendê-los, precisamos primeiro entender a nós, algo que nunca chegamos a fazer completamente, mas podemos ir sempre um pouco mais longe.


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Pedras da Terra também poderiam viajar até Marte, mas a gravidade maior da torna isso menos provável. Vamos continuar a ouvir o que tem a nos dizer, enquanto continuamos a buscar respostas a questões tão antigas quanto a própria humanidade e essenciais ao nosso futuro. Quando escrevi estas linhas, em dezembro de 2009, a maioria (mas não todos) dos cientistas está convencida de que os sinais de vida no meteorito ALH84001 não são reais. Um dos métodos para se identificar atividade biológica em amostras de meteoritos é buscar por minúsculas "marcas de vida” gravadas nas rochas. A dificuldade é que processos geológicos muitas vezes causam efeitos extremamente parecidos com atividade bacteriana. Fora isso, as estruturas encontradas são extremamente pequenas, de dez a cem vezes menores do que as bactérias terrestres.

Mesmo que seja possível argumentar que a vida em Marte é (ou era) radicalmente diferente da vida aqui, a evidência em mãos não é convincente. Embora o caso não esteja completamente encerrado, ALH84001 não é a prova que tanto buscamos. Ao que sabemos, continuamos sendo o único planeta com vida no cosmo. Encontrei-me com Brownlee numa conferência em m aio de 2009 e aproveitei para perguntar se havia mudado de opinião nos últimos anos. Disse-me que não. Se ele e Ward estiverem certos, e acredito que estejam, as consequências são extremamente importantes para nós. Mesmo que formas primitivas de vida não sejam raras, planetas como a Terra são. E, se planetas terrestres são raros, a vida complexa também é. Consequentemente, a vida inteligente, consciente e capaz de refletir sobre sua própria existência é ainda mais rara, talvez até única na nossa galáxia.

Em vez de afirmarmos que p Universo é "certo" para a vida - implicando que a vida é comum no cosmo - deveríamos estar chocados com o fato de que a vida existe, tendo em vista a violência do ambiente cósmico. A questão que devemos então considerar é que estamos sozinhos no cosmo ou se existem outras formas de vida inteligente. Vejamos o que podemos concluir, dado o que aprendemos até aqui.

"Nós e eles" é título de um curso de literatura comparada que leciono ocasionalmente no Dartmouth, onde examino como nosso modo de pensar sore os alienígenas, em particular, sobre a inteligência extraterrestre, vem mudando na cultural ocidental desde o século 17. "Eles" são uma projeção de nossos medos e esperanças, um reflexo do que a humanidade tem de melhor e de pior. Na maioria das histórias e filmes, as máquinas e a aparência dos extraterrestres expressam  o estado da ciência e da tecnologia da época. No final do século 19, os marcianos do clássico romance de H. G. Wells, A Guerra dos Mundos, chegam à Terra em bólidos que aparentam ser balas de canhão ou mísseis detonados da superfície de Marte. Logo após, com a descoberta do voo, os alienígenas começaram também a voar. em seguida, com o desenvolvimento da  genética e da física nuclear, mutações e máquinas movidas a energia nuclear apareceram; a partir de 1950, o mesmo ocorreu com computadores.

Em muitas narrativas, os alienígenas são capazes de feitos que, para nós, são apenas um sonho. Na obra-prima de Arthur C. Clarke, 200ll Uma Odisseia mo Espaço, os alienígenas são indistinguíveis de deuses, "criaturas de radiação, finalmente livres da tirania da matéria". Imagine o que uma pessoa do tempo de Copérnico pensaria se visse um laptop ou um iPhone. Até meu pai, que nasceu em 1927, via os videocassetes com suspeita nos anos 1980.

A possibilidade de que a vida exista em outros lugares do espaço é extremamente fascinante. Como disse o presidente Bill Clinton em seu depoimento, a descoberta de um simples micróbio seria, talvez, a maior em toda a história da ciência. O mundo jamais seria o mesmo. Se tivéssemos provas conclusivas de que, de fato, a vida surgiu em algum outro lugar, a suposição de que ela deve ser comum no cosmo ganharia tremenda força.

A vida deixaria de ser uma anomalia terrestre. Dado que as mesmas leis da física atuam em todo o Universo, e que outros sistemas estelares têm os mesmos elementos químicos que os encontrados aqui, se detectássemos traços de vida primitiva em algum outro planeta ou lua de nossa vizinhança cósmica, concluiríamos que a vida existe também em outras partes do cosmo: o princípio da mediocridade, ao menos no que diz respeito à existência de vida, faria mais sentido. o cosmo seria receptivo à vida, e a possibilidade de que existe uma conexão profunda entre a vida e o Universo deveria ser considerada seriamente. Como escreveu Paul Davies, "Se a vida vem de um sopa pré-biótica com certeza causal, então as leis da Natureza escondem um subtexto, um imperativo cósmico que comanda: Faça-se a vida!"...


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Permita-me um comentário final relevante. Todo cientista, por mais pragmático, realista e racional que seja, possui um olhar filosófico e um religioso naquilo que faz. Enquanto o biólogo procura na menor célula vislumbrar o 'rosto' de Deus, o astrônomo vasculha o infinito esperando 'ouvi-lo'. A rigor, na verdade, a distância entre eles é pura ilusão, pois desejam a mesma coisa: conhecer a 'mente' de Deus. Agora, una os dois e você terá um astrobiólogo filosofando em busca da 'personificação' do Criador em um cosmo permeado de vida, mas não na pele de um humanoide alienígena porque sabe que ambos - Deus e alien - habitam no imaginário e nas nossas angústias mais profundas e anseios mais candentes. 

As perguntas que cientistas, filósofos e religiosos fazem podem ser as mesmas, mas as respostas, ah, essas são totalmente diferentes. Se as perguntas alimentam o espírito, as respostas sangram o coração. Para muitos quase todos, esse tranco é sufocante e um padrão de medida que distingue frouxos e destemidos, entre quem está e quem não está no mundo real.

[continua]

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

AS PEDRAS DO CAMINHO
Parte 2

No meio do cominho tinha uma pedra; tinha uma pedra no meio do caminho... Assim começa o poema do nosso Drummond. Para a astronomia, porém, são muitas as pedras no caminho, literalmente ou não. As literais são os pedaços de meteoritos rodopiando no espaço que chegaram à Terra num passado remoto, preservados por centenas de milhões de anos sob condições singulares. Com o avanço da ciência. foi possível estabelecer sua idade e composição, revelando aspectos até então desconhecidos. As pedras metafóricas são as enormes dificuldades para se obter respostas para tantas perguntas, entre elas, a origem da vida e se ela está espalhada ou não pelo universo. É o que Gleiser nos conta na continuação do capítulo "Terra rara, vida rara?" do seu livro.

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Em breve, será possível extrair informação da composição química das atmosferas de planetas extrassolares, buscando possíveis sinais de atividade biológica: água, oxigênio, ozônio, metano e possivelmente até clorofila. A expectativa, com que concordo entusiasticamente, é de que sinais de vida serão encontrados. A questão é que tipo de vida será essa. É aqui que a divergência começa. Em seu corajoso livro Rare Earth*, Peter Ward e Donald Brownlee argumentam convincentemente que muito provavelmente a vida extraterrestre só aparecerá nas suas formas mais simples; planetas com características terrestres têm chances de abrigar micro-organismos alienígenas, mas não muito mais do que isso. A vida multicelular complexa depende de fatores muito específicos - mesmo se todas as condições químicas forem satisfeitas - para ser comum.

Um deles, que ainda não mencionei, é a existência de uma lua grande. Com exceção de Mercúrio, todos os planetas do sistema solar giram em torno de si mesmos como piões inclinados a um certo ângulo. Se a Terra não tivesse a Lua, sua inclinação de 23,4 graus com relação à vertical variaria caoticamente, com consequências desastrosas para a vida complexa. O ângulo de inclinação orbital de um planeta determina as estações e a sua duração. Na década de 1980, o geofísico James Kasting, da Universidade Estadual da Pensilvânia, argumentou que um ângulo de inclinação variável tornaria a Terra um planeta praticamente inabitável. Dentre outros problemas, as estações do ano não seriam mais regulares e a água líquida não seria uma presença constante na superfície terrestre por longos períodos.

Outro fator extremamente importante é a existência de um campo magnético capaz de proteger a superfície planetária da radiação letal que vem do espaço. Sem ele, as criaturas seriam expostas a doses letais de radiação vinda principalmente da sua estrela central, no nosso caso, o Sol. Talvez seja isso que tenha ocorrido com Marte, por exemplo. Se Marte teve vida no passado, é pouco provável que tenha agora. Se tiver, está muito bem escondida (ou não sabemos como identificá-la). Sem dúvida, devemos continuar a buscar por vida lá, especialmente abaixo da superfície, onde está mais protegida. Ou, conforme acredita Christopher McKay, o especialista em Marte da NASA, micróbios podem viver nas regiões polares, onde existe gelo [Gleiser estava certo, veja a recente descoberta do lago subterrâneo em Marte,

Isso ocorre na Antártica, onde micro organismos foram encontrados no fundo de lagos congelados numa região conhecida como Vales Secos de McMurdo. Certamente, mesmo que esse tipo de vida esteja longe de ter a complexidade dos homenzinhos verdes da ficção científica, seria um exemplo de vida alienígena e, portanto, de extrema relevância. A enorme repercussão que teria a descoberta de vida em Marte mais do que justifica o enorme esforço que vem sendo dedicado a encontrá-la.

O leitor talvez se lembre de que, em 1996, cientistas da NASA declararam que um meteorito vindo de Marte parecia trazer consigo sinais de vida. A pedra extraterrestre, batizada de ALH84001, caiu na Terra por volta de 11.000 a.C. e foi descoberta na Antártica em 1984. Na ocasião, o administrador da NASA, Daniel Goldin, declarou: "Cientistas da NASA fizeram uma incrível descoberta que levanta a possibilidade de que uma forma de vida primitiva existia em Marte há mais de três bilhões de anos."  Hoje, a pedra 84001 nos fala de um passado de bilhões de anos e de uma distância de milhões de quilômetros. Nos fala da possibilidade de vida. Se essa descoberta for confirmada, será uma das maiores na história da ciência. Suas implicações serão profundas, e inspirarão ainda mais reverência pelo universo em que vivemos.

Ao prometer respostas para algumas das questões mais antigas da humanidade, levanta outras ainda mais fundamentais. O leitor deve estar se perguntando como que uma pedra marciana foi encontrada na Terra. A colisão violenta de um cometa ou asteroide com a superfície de um planeta levanta uma enorme quantidade de detritos. Uma fração deles é ejetada da superfície com tal velocidade que pode escapar da atração gravitacional do planeta. Viajando pelo espaço, algumas pedras podem ser capturadas pela gravidade de um planeta vizinho, numa espécie de pula-pula planetário.

* Publicado no Brasil como Sós no Universo? Campus, Rio de Janeiro, 2000.

[continua]

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

TERRA RARA, VIDA RARA
Parte 1

Decidi voltar ao assunto "vida extraterrestre inteligente" trazendo, desta vez, a palavra  de um especialista, Marcelo Gleiser*. Melhor, trago a íntegra do capítulo do seu livro Criação Imperfeita que dá título ao post, com uma diferença: Gleiser coloca uma pergunta e eu, uma afirmação. Prepotência? De forma alguma, vida rara não quer dizer "única" (embora possa sê-la), apenas pouco comum, não sendo abundante quanto se possa pensar, como veremos. Começamos, assim, uma nova série para tentar jogar um pouco mais de luz à questão. Peço que você tenha muita atenção na leitura dos textos porque é aqui que nasce o "pecado original" da ufologia. Pecado, do latim pecatum - tropeço, engano, passo em falso.

A premissa fundamental que poderia dar à ufologia uma credibilidade minimamente sustentável - e legitimidade - seria a comprovação científica da existência de vida extraterrestre inteligente, mas não há nada, nenhum sinal, o menor vestígio num raio de 200 anos-luz de qualquer tipo de vida da mais básica que seja. Trabalhar com dados lógicos, técnicos e científicos é o único caminho possível para se chegar a resultados concretos. A partir daqui Gleiser é o dono da palavra. Vamos viajar com ele.
Esta introdução foi necessariamente longa para dar ideia da complexidade de se chegar à vida inteligente, e é apenas o começo. Os demais capítulos serão mais enxutos sem perder a clareza. Não deixe de ler, com atenção.Inseri comentários destacados do texto.
...

Quando estudamos a origem e a evolução da vida, fica claro que uma série de fatores devem atuar para que a vida surja e cresça em complexidade. Aqui estão alguns dos passos mais importantes: 

Química inorgânica 
A vida necessita de elementos químicos básicos como carbono, oxigênio, hidrogênio, nitrogênio, etc. Mesmo se algum tipo de vida bem exótico existir em um planeta remoto, provavelmente usará elementos químicos semelhantes. Graças às supernovas, isso não é um obstáculo: esses elementos são encontrados por todo o cosmo.

Química orgânica 
Os elementos químicos precisam interagir e formar moléculas inorgânicas simples, como a água, a amônia e o gás carbônico, e moléculas orgânicas simples como o metano e outras. Aqui também não devem existir grandes obstáculos, já que mesmo no
espaço interestelar astrônomos identificaram uma extensa lista de moléculas inorgânicas e orgânicas, muitas delas necessárias para a vida aqui na Terra.

Bioquímica 
Essas moléculas orgânicas precisam encontrar um meio onde possam reagir, criando moléculas cada vez mais complexas, chegando então nas moléculas que caracterizam  a  bioquímica,  como  as  proteínas  e  os ácidos nucleicos. Aqui as coisas
começam a  ficar  complicadas. Como  discutimos, a  água parece  ser  um  ingrediente
crucial para a vida. Certamente, podemos sempre especular que alguns tipos exóticos de bioquímica sejam possíveis na ausência de água.
Como não temos qualquer evidência disso, no momento, as discussões sobre a origem e a existência da vida concentram-se em ambientes com água. Essa condição restringe radicalmente os tipos de corpos celestes que podem abrigar seres vivos. Os planetas precisam estar na chamada zona de habitação da sua estrela, se bem que, como o clima infernal de Vênus e a aridez de  Marte mostram, essa condição não é suficiente para garantir  a existência de vida. (Ou a definição de zona habitável precisa ser refinada).
Luas, por outro lado, mesmo que fora das regiões de habitação, podem ter água líquida devido a um efeito conhecido como aquecimento de maré. Como vimos, Europa, a lua de Júpiter que contém um oceano sob uma crosta de gelo, é um excelente exemplo. Experimentos do tipo Miller-Urey sugerem que os primeiros passos em direção à química da vida, a formação de aminoácidos, são relativamente fáceis de serem dados, contanto que a atmosfera e a superfície do planeta ofereçam as condições apropriadas. Porém, água líquida e os elementos químicos apropriados não garantem sucesso. Para que as reações ocorram, são necessárias concentrações relativamente altas de reagentes.
Fora isso, o planeta tem que estar relativamente calmo, por exemplo, não sendo ativamente bombardeado por asteroides. Sua superfície também deve ser relativamente estável, sem deformações de maré muito intensas e sem erupções vulcânicas de impacto global.

Início da vida 
Dado tudo isso, o próximo passo é o mais misterioso: de alguma forma, reações químicas inanimadas transformaram-se no primeiro ser vivo, um conjunto  de  reações
autossustentáveis capazes de absorver energia do meio ambiente e de se reproduzir.  Como   parte  do  processo,   os  blocos  essenciais  das  moléculas da  vida
escolheram uma orientação espacial específica, a sua quiralidade (propriedade que distingue um objeto de sua imagem especular - nota do blog).

Células procariotas 
Os passos que vão da relativa simplicidade dessa vida primitiva até a complexidade das  proteínas  e  dos  ácidos  nucleicos  pertencentes às  primeiras  células procariotas 
também são obscuros. A uma certa altura, uma membrana protetora feita de gorduras circundou os reagentes, protegendo-os do ambiente externo. Com eficiência crescente, a membrana permitiu que energia e nutrientes entrassem e dejetos saíssem. Nesse meio tempo, o material genético dentro das células levou a reproduções e sofreu mutações, gerando uma diversificação maior. Esse era o mundo dos protozoários.

Células eucariotas
O próximo passo em direção a uma maior complexidade da vida foi a transição das células procariotas às células eucariotas, que levou em torno de dois bilhões de anos. A
hipótese mais aceita atualmente, sugerida pela bióloga Lynn Margulis (a primeira esposa de Carl Sagan), é que os eucariotas surgiram de alianças simbióticas entre diferentes tipos de seres procariotas. Por exemplo, a mitocôndria, a fonte processadora de energia das células modernas, parece ter sido um organismo independente no passado distante que foi ou comido ou absorvido por outro organismo, formando,
de modo ainda desconhecido, um novo organismo.

Vida multicelular
Após o advento das células eucariotas, o próximo grande momento na história da vida foi a transição, aproximadamente três bilhões de anos após o surgimento dos primeiros seres vivos, de criaturas multicelulares. Tal como na transição de procariotas a eucariotas,  a  origem  de seres  multicelulares também é explicada  a partir de alianças 
simbióticas entre seres unicelulares: por um processo de tentativa e erro, seres unicelulares se juntaram ou foram sendo absorvidos para criar novos seres com funções diversificadas.
Entretanto, ainda não se sabe como os tipos diferentes de DNA desses seres foi unificado num só genoma. Uma explicação alternativa, a Teoria Colonial, propõe que seres unicelulares se agruparam em colônias que aos poucos foram evoluindo até tornarem-se seres multicelulares. Embora o debate continue, a Teoria Colonial vem ganhando mais adeptos nos últimos anos.

Vida multicelular complexa 
Muitos cientistas propõem que a diversificação acelerada dos seres vivos que ocorreu por volta de 550 milhões de anos atrás, a chamada "explosão cambriana”, deu-se devido a mudanças no meio ambiente terrestre. As mais importantes foram a oxigena-ção da atmosfera, graças à ação das algas verde-azuis, e o aumento da atividade geológica devido ao movimento das placas tectônicas. Essas placas, que podemos imaginar como sendo pedaços da superfície da Terra ligados como num quebra-cabeça, vão se deslocando aos poucos, ativando a química dos oceanos e da superfície. O movimento tectônico funciona como uma espécie de termostato global, reciclando compostos químicos que ajudam a regular os níveis de gás carbônico, mantendo a temperatura relativamente estável. Sem ele, a água não teria permanecido líquida por bilhões de anos, o que teria dificultado imensamente o desenvolvimento da vida, especialmente o da vida complexa.

Vida inteligente
Após 500 milhões de anos de evolução de seres multicelulares, incluindo várias extinções em massa e mudanças climáticas severas, os primeiros membros do gênero Homo surgiram na África em torno de 4 milhões de anos atrás. A inteligência, como a conhecemos hoje, surgiu há menos de um milhão de anos, estando presente por nem mesmo 0,02% da história da Terra. 

Ponderando cada um dos passos delineados acima, e ao constatar a desolação dos outros planetas do nosso sistema solar, fica difícil entender como é possível afirmar com confiança que a vida deve ser comum no Universo, ou que o Universo é "certo" para a vida. Não há dúvida de que devemos continuar a buscar planetas semelhantes à Terra, como a missão Kepler da NASA está fazendo no momento, e a missão Darwin da Agência Espacial Européia planeja fazer no futuro.


Marcelo Gleiser é astrônomo, doutor em Física e professor de Filosofia Natural do Dartmouth College, EUA. Tem vários livros publicados, dois deles ganhadores do Prêmio Jabuti.

(continua)

sexta-feira, 3 de agosto de 2018


PATETAS ACREDITAM EM PAPAI NOEL
Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de confusão e mistificação requer vigilância, dedicação e coragem. Mas, se não praticarmos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que nos defrontamos, e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas, um mundo de patetas, prontos a sermos passados para trás pelo primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho.
O que você acabou de ler é um 'alerta' em O Mundo Assombrado pelos Demônios, de Carl Sagan, escrito há pouco mais de 20 anos. O texto curto merece reflexão extensa, e é dele que me servo, pedaço por pedaço. Por quê? Nos últimos dias assisti a entrevista de um amigo na TV (depois constatei que as outras participações seguem o mesmo tom), e debati com outro pela rede, e estas duas situações serviram de gancho para a conversa de hoje. O que eles têm em comum? São simpáticos misticóides crédulos, irredutíveis em suas crenças. "Misticóide" não tem caráter ofensivo porque, na acepção, trata das pessoas que são exageradamente místicas, acreditam em espíritos, anjos, magia, pêndulos, astros, oráculos, alienígenas, porém sem a mínima noção do exercício lúdico e maduro dos verdadeiros místicos. Quanto as patetas de que fala Sagan, são os ingênuos, inocentes, inexperientes, excluídas as crianças.

Uma observação importante: Sagan era conhecido pelo ceticismo em relação a discos voadores e seres alienígenas, mas não sobre vida extraterrestre, que é muito diferente. Ele a considerava possível mas de difícil comprovação. Seu arrazoado lógico e científico, seu amplo saber em várias áreas e sua retórica refinada dificultavam a réplica sobre Ets. Quem se dispusesse a debater com ele precisava ter argumentos contrários sólidos no mesmo nível de conhecimento. No mínimo, ele provocava muita reflexão. No passado, eu mesmo torcia o nariz quando ouvia seu nome, até reconhecer que ele estava coberto de razão. Não doeu nem um pouco rever meus conceitos.
Descobrir a gota ocasional de verdade no meio de um grande oceano de confusão e mistificação 
Com muita consciência, lucidez e sem qualquer traço de vaidade, é o que venho fazendo nas últimas três décadas através dos livros, dos artigos publicados por instituições acadêmicas fora do país, e neste blog desde 2015 em mais de 100 postagens. É bastante, mas não suficiente. Dadas as devidas proporções, não pretendo impor nenhuma verdade, mas, como Sagan e outros nomes incansavelmente presentes aqui, trazer claridade e conteúdo mais profundo e substancial. O amigo entrevistado, camarada experiente, inteligente, rodado como eu, infelizmente se perdeu em erros históricos primários, inexplicáveis para alguém do seu naipe, conduzindo-se a seguir no padrão anos 70 ao falar de abduções, física quântica, círculos ingleses, deuses astronautas, pirâmides, bíblia, ufologia como paraciência.... Uma decepção, pois esperava uma fala madura, e o que vi foi a postura de um aprendiz infeliz no que diz.
requer vigilância, dedicação e coragem.
Entendo como vigilância, a busca seletiva por novos saberes, atualização e revisão contínuas de conceitos; por dedicação a escolha criteriosa permanente nessa busca, ampliando o leque de novas investigações, mente aberta a possibilidades não pensadas e sensibilidade para prospectar campos não explorados. Ademais, manter-se firme nos objetivos, evitando deixar-se seduzir pelas tentações aliciadoras do lugar-comum.

Coragem é um capítulo à parte. Coragem é absorver críticas e promover autocrítica, ter clareza de estar em rota de colisão ao senso comum com todos os dissabores implícitos. Coragem é abrir-se e acolher o novo quando fundamentado na lógica, na experiência e na ciência lato sensu; é saber aprender, saber estudar, saber discernir e saber assumir o tamanho da própria ignorância, em outras palavras, ter a capacidade de enfrentar o medo do desconhecido. Coragem, enfim,  é não esperar a tormenta passar, mas aprender a dançar na chuva.

Um depoimento pessoal: Quando surgiu o momento oportuno (do latim ob portus - vento que conduz ao porto) de navegar por outros mares, não hesitei em sair daquela 'ilha' (latim insula - isola) e seguir meu instinto  para rumos que me levariam à 'saída' (grego exodus - exit, êxito). Curioso é que quem primeiro levantou minhas âncoras e mostrou outros horizontes foi justamente este amigo do debate! 

Na conversa, apesar da longa, sincera e respeitosa amizade, fica sempre um sentimento mútuo de frustração. Sua sentença é: "Eu vejo  tudo isso como um processo gradual de aproximação de inteligências de fora do planeta. É a minha certeza, minha convicção". Todo crédulo renitente não deixa brechas para qualquer diálogo mais expansivo, o que caracteriza falta de repertório, humildade e inteligência. Inteligência, do latim intus legere - "ler por dentro", por extensão é a capacidade de percepção e apreensão da realidade do mundo com profundidade. Tal compreensão assusta e deprime os fracos, fazendo com que busquem preencher este vazio pelas vias escapistas alienadoras dessa realidade, e tome doses generosas de esoterismo, misticismo, ocultismo, etc. O fosso que separa o real do irreal - ou surreal - é abissal.
Mas, se não praticarmos esses hábitos rigorosos de pensar, não podemos ter a esperança de solucionar os problemas verdadeiramente sérios com que nos defrontamos 
Semanas atrás falei aqui sobre o preço da história, e é sobre isso que Sagan se refere, a premissa básica da vida: pensar. Não pensar é inércia, é ter certezas e não seguir adiante. Nesse sentido, todo misticóide crédulo é, por definição, heterônomo - não pensa por si, obedece e se submete aos desígnios de um ente externo, seja quem ou o que for. Pensar irriga a terra, fornece alimento, floresce ideias, instiga saber, fortalece, renova e transforma. É questão de escolha: ou você se  senta à beira sombreada da estrada e deixa passar as estações, ou se move sob a luz em direção à colheita. 
e nos arriscamos a nos tornar uma nação de patetas, prontos para sermos passados para trás pelo primeiro charlatão que cruzar o nosso caminho.
Uma nação da patetas! Eis aí o alto custo que a história nos impõe em razão da nossa indolência - ser passado para trás por charlatães, vigaristas, trapaceiros e misticóides, que se valem da inocência e ingenuidade, em última análise, da ignorância alheia, apropriando-se de um falso conhecimento para fazer prevalecer suas artimanhas em proveito próprio, jamais coletivo. Uma nação de patetas não tem o que reclamar. O ausente nunca tem razão. Quero lembrar mais uma vez que o preço da história é alto e não necessariamente será você o pagador, mas poderá ser o responsável pela dívida.

Você perguntará o que Papai Noel tem com isso? Bem, eu poderia falar do coelhinho da Páscoa ou de fadas, que contemplam o mesmo simbolismo e o mesmo olhar psicanalítico, mas fica para depois. Papai Noel é de origem longínqua e desconhecida,
figura mítica de natureza religiosa - renovação, renascimentobaseada em crença. Chega às casas (corações) pelos céus montado numa carruagem. Espero que você esteja me acompanhando, preste atenção aos itálicosO 'bom velhinho' é a representação do personagem transcendente, imaginário, supranatural, fabuloso (do latim fabula, falação, oralidade). Sua longa barba branca denota uma existência longeva, referência ao Velho, ao Sábio, ao Pai! Vem do reino da fantasia para atender nossos desejos, os desejos da criança e dos adultos-crianças, sempre com a mão erguida à procura de alguém que os ampare, os conforte, os proteja, que torne realidade as suas mais candentes esperanças. Notou alguma semelhança?

Criança que acredita em Papai Noel, coelhinhos e fadas não é pateta, o adulto sim, ainda mais quando esse Noel é franzino e de outra cor. Daqui em diante entraríamos no universo dos contos infantis, da Filosofia e da Psicanálise. É de Freud as palavras finais:
...Não devemos esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade, isto é, no nosso reconhecimento da realidade e que isso exclui qualquer tipo de impostura ou engano. Você entendeu a mensagem. Quanto aos misticóides crédulos... prisioneiros do tempo. 
Só, insuficiente e em eterna agonia,
o homem clama por qualquer Outro


P.S. up-to-date: Eu alertei na semana passada sobre impostura desmedida: Acontecerá neste domingo dia 5, no Rio de Janeiro mais uma vigarice explícita - "UFOS, 2019: Chico Xavier e a Transição Planetária", e "Marte, a verdade encoberta". Essa sem-vergonhice será ministrada por um conhecido apedeuta patafísico nefelibata ao custo de R$ 50 por cabeça. É só mais uma reunião de patetas.

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William A. Corsaro, Sociologia da Infância. Artmed, 2011.