Obras

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sexta-feira, 19 de outubro de 2018

ORAÇÃO À DIGNIDADE DO HOMEM

Com os contornos poéticos de um louvor em Oratio Hominis Dignitate (Florença, 1486), Giovanni Pico della Mirandola desenvolve um diálogo entre Deus e Adão, peça que se tornou uma obra-prima do humanismo renascentista e pérola do moderno. É a introdução de "Conclusões Filosóficas, Cabalísticas e Teológicas" em 900 teses a serem debatidas em público com intelectuais de toda a Europa diante da Cúria Romana. 

Desconheço outro texto que, com tanto lirismo, tão bem pudesse oferecer o mais claro entendimento sobre liberdade e responsabilidade, duas das vias arteriais por onde flui a seiva deste blog e pautas das últimas edições - ou de quase todas. Uma belíssima e profunda reflexão, um denso tratado sobre a autonomia intrínseca do Ser. Todo o texto fala direto ao coração, mas chamo a atenção para os parágrafos finais, sem desmerecimento os demais. Leia, portanto, com vagar e em silêncio, como se estivesse mesmo a orar. 

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Eu li, ó veneráveis Pais, nas fontes árabes, que Abdala, o sarraceno, interrogado sobre o que, nesta espécie de teatro que é o mundo, despertava a máxima admiração, respondeu que não via nada mais maravilhoso do que o homem. E com as suas palavras concordam as de Hermes Trismegisto: “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem!”

De minha parte, quando indagava o sentido de tais ideias, não me satisfaziam as diversas coisas que muitos afirmam sobre a excelência da natureza humana: que o homem é o vínculo de comunicação entre todas as criaturas, familiar às superiores e soberano sobre as inferiores; que pela perspicácia dos seus sentidos, pela investigação da sua razão e pela lucidez de sua inteligência, ele é o intérprete da natureza; que é o intermediário entre a realidade eterna e o fluxo do tempo, e, como dizem os persas, a união, ou antes, o hino matrimonial do mundo, pouco inferior, segundo o testemunho de Davi, aos anjos.

Grandes coisas estas, mas não as mais importantes, não a ponto de se arrogarem a bom direito o privilégio da nossa máxima admiração. De fato, por que não admirar ainda mais os anjos e os beatíssimos coros do céu? Mas, finalmente, creio ter compreendido porque o homem é de todos os seres vivos o mais abençoado e portanto o mais digno de admiração, e também qual é a condição que por sorte lhe toca na ordem universal, invejável não somente para os animais, mas também para os astros e os espíritos ultramundanos.

Coisa incrível e maravilhosa! E como seria diferente, se é precisamente por causa dela que o homem é estimado e proclamado um grande milagre e um ser extraordinário! Mas que coisa é esta? Escutai, ó Pais, com ouvidos benignos, e, por vossa humanidade, sede indulgentes para com esta minha exposição. O Pai supremo, Deus arquiteto, já havia plasmado esta morada do mundo tal como a vemos, templo augustíssimo da divindade, segundo as leis de sua arcana sabedoria. Decorara as regiões supra-celestes com as inteligências espirituais; povoara as esferas etéreas com as almas eternas; preenchera as partes torpes e abjetas do mundo com uma multidão de animais de toda espécie.

Mas, consumado o trabalho, o artífice quis que houvesse alguém capaz de apreciar o significado de tamanha obra, que soubesse amar sua beleza e admirar sua imensidão. Por isto, terminadas todas as coisas, como atestam Moisés e Timeu, ele pensou finalmente em criar o homem. Entre os arquétipos, contudo, não havia mais nenhum com que pudesse modelar a nova progenitura, não havia em seus tesouros nada que pudesse adicionar à herança do novo filho, nem havia dentre as moradas do mundo nenhuma na qual pudesse habitar aquele que haveria de contemplar o universo.

Tudo estava completo; todas as coisas distribuídas entre as ordens superiores, as intermediárias, e as ínfimas. Mas seria indigno da potência paterna fracassar em sua derradeira criação, como se fosse incapaz de gerar; indigno de sua sabedoria vacilar por falta de conselho em algo tão necessário; indigno do seu amor benevolente que aquele ser destinado a louvar a divina generosidade em todas as coisas fosse, ao olhar para si mesmo, obrigado a condená-la.

Finalmente, o Supremo Artífice estabeleceu que aquele a quem não pudera dar nada de propriamente seu, haveria de ter em comum tudo o que pertencesse a cada um dos outros seres. Assim ele tomou o homem, criatura de imagem indefinida, e, posicionando-o no centro do mundo, disse:

Não te dei, ó Adão, uma morada fixa, nem feições próprias, nem dons particulares, a fim de que seja lá qual for a morada, a feição ou o dom pelos quais vieres a optar, tu, através de teus próprios juízos e decisões, os conquistes e possuas. A natureza dos outros seres, uma vez definida, é constrangida entre os limites prescritos pela nossa lei. Tu porém não és constrangido por nenhum limite, a fim de que através de teu livre arbítrio, nas mãos do qual te pus, tu mesmo o definas. Coloquei-te no centro do mundo, para que possas observar mais facilmente tudo o que existe no universo. Nem celeste nem terreno, nem mortal nem imortal te criamos, a fim de que possas, como um livre e extraordinário escultor de ti mesmo, plasmar a tua própria forma tal como a preferires. Poderás degenerar-te nas formas inferiores, que são animalescas; poderás, segundo a tua decisão, regenerar-te nas formas superiores, que são divinas.

Ó suprema liberalidade de Deus Pai, suprema e admirável felicidade do homem! A ele foi dado ter o que desejar, ser o que bem entender. Os animais, logo que nascem, diz Lucílio, trazem consigo do útero de sua mãe tudo aquilo que possuirão. Os espíritos superiores se tornaram, desde o princípio ou logo depois, aquilo que serão nas eternidades perpétuas. Mas ao nascer o homem, o Pai lhe infundiu todos os tipos de sementes e germes de todas as espécies vivas. E elas hão de crescer naquele que as tiver cultivado e nele darão seus frutos. Se forem vegetais, tornar-se-á uma planta; se sensuais, se animalizará; se racionais, se transformará num animal celeste; se intelectuais, será um anjo e filho de Deus. E se, não contente com o destino de nenhuma criatura, ele se recolher no centro da sua unidade, poderá se tornar um só espírito com Deus, na escuridão solitária do Pai que está além de tudo, transcendendo assim a todas as criaturas.

Quem não se admirará com este nosso camaleão? Ou melhor, quem haverá de se admirar mais com qualquer outra coisa? Não sem razão o Asclépio o ateniense disse nos rituais secretos que o homem é simbolizado por Proteu, por causa de sua natureza mutante e metamórfica. Daí as metamorfoses tão celebradas entre os hebreus e os pitagóricos. De fato, a mais secreta teologia dos hebreus ora transforma o santo Enoc em anjo da divindade, que chamam Metatron ora em outros espíritos numinosos.

E para os pitagóricos os homens celerados são deformados em bestas e, a se crer em Empédocles, também em plantas. Imitando-os, Maomé repetia frequentemente e com razão que quem se afasta da lei divina se torna um animal. E estava certo, pois não é a casca que faz da árvore o que ela é, mas sim a sua natureza entorpecida, incapaz de sentir; não é o couro que faz o jumento, mas sua alma bruta e sensual; não é corpo circular que faz o céu, mas a reta razão; não é a separação do corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual.

Se virdes algum servo do seu próprio ventre, rastejando pela terra, não é um homem que vedes, mas uma planta; se virdes alguém que vive em vãs fantasias da imaginação, como que cegado por Calipso, e que, sucumbindo às seduções deste encanto, é escravizado por seus sentidos, é uma besta que vedes, não um homem. Se virdes um filósofo que discerne todas as coisas com a reta razão, venerai-o, é um animal celeste, não terreno. Se virdes um puro contemplativo, indiferente ao corpo, imerso nas profundidades de sua mente, então não é um animal terreno nem celeste que vedes, mas sim um espírito superior revestido de carne humana.

Quem então não se admirará com o homem? Ele que, não sem motivo, é nomeado nas sagradas escrituras mosaicas e cristãs ora com o nome de todos os seres de carne, ora com o de todas as criaturas, uma vez que ele mesmo plasma, modela e transforma seu próprio aspecto naquele de todos os seres de carne, e sua própria mente naquela de toda criatura. Por este motivo o persa Evante, ao explicar a teologia caldeia, escreve que o homem não possui nenhuma imagem inata, mas muitas exteriores e adventícias. Daí o dito dos caldeus de que o homem é um animal de natureza variada, multiforme e inconstante.

Mas a que serve tudo isso? Serve para que compreendamos que, uma vez nascidos com a potencialidade de sermos o que quisermos, devemos tomar o máximo cuidado, a fim de que depois não digam que, tendo recebido a honra, não nos apercebemos e nos reduzimos a nós mesmos a bestas e estúpidos jumentos. Antes, lembremo-nos daquele dito do profeta Asaf: “Sois deuses e filhos do Altíssimo”, e não abusemos da indulgentíssima liberalidade do Pai, tornando deletéria a salutar liberdade de escolha que ele nos deu.

Que uma santa ambição invada a nossa alma, de modo que, não contentes com as realidades medíocres, desejemos somente as superiores, e nos empenhemos com toda força para conquistá-las - pois podemos, se quisermos. Desdenhemos as coisas da terra, ignoremos as do céu e, recusando tudo o que é deste mundo, voemos rumo à corte ultramundana junto à divindade eminentíssima. Lá, como nos revelam os mistérios sagrados, os Serafins, os Querubins e os Tronos ocupam os primeiros lugares; e, relutantes em nos inclinarmos e incapazes de suportar o segundo lugar, emulemos a sua dignidade e glória. Não seremos inferiores a eles, se assim o quisermos.

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Giovanni Pico della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem. Fi, 2015.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A LUZ ESTÁ SE APAGANDO

É melhor reinar no inferno
do que servir no paraíso.
Paradise LostJohn Milton
Inglaterra, 1667

Estudos recentes realizados por pesquisadores americanos e europeus detectaram um quadro alarmante: A humanidade está emburrecendo. Sendo mais claro, os habitantes do planeta estão ficando cada vez mais burros! Um fato irreversível e irremediável ao considerarmos as causas desse flagelo são muitas - geográficas, culturais, históricas, que se acumulam há décadas e juntam-se às novas, não havendo nada que possamos fazer. Nada? Nada! Realidade cruel, algo como uma aluvião vindo em nossa direção e não ter por onde se proteger.

O desastre é inevitável. Vejo uma situação gravíssima a médio prazo e não confio que a humanidade encontrará uma saída porque ela é autora e executora da própria ruína, de um jeito ou de outro. A inteligência é pontual e singular, ao passo que a burrice é sistêmica, incendiária e pestilenta. Burrice é algo próprio de gente despreparada para o diálogo, incapaz de entender o mundo e imatura para a  vida. Um reinado quimérico se avizinha, a besta nem tão adormecida já despertou Perdoe por mais um texto longo, mas é impossível ser breve ante a seriedade do tema.

Um leitor, comentando o post da semana passada, sugeriu a leitura de uma crônica**do filósofo Luiz Felipe Pondé em cima da obra "Irmãos Karamazov", de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido"? Tão apropriada que reproduzo um trecho:
A razão de Ivan Karamazov (muito próxima da que o ceticismo e a sofística conhecem) percebe a vacuidade de qualquer imperativo ético universal: O mundo é estilhaçado pela liberdade que a morte nos garante. Sem Deus, perde-se a forma absoluta do juízo moral: Estamos sós no universo como animais ferozes que babam enquanto vagam pelo deserto e contemplam a solidão dos elementos. A morte, que devolverá a humanidade ao pó, é o fundamento último do nosso direito cósmico ao gozo do mal.
Ao mesmo tempo em que o conhecimento explode no mundo, o homem o despreza porque está ficando burro, assim, sem meias palavras. As pesquisas revelam que os níveis de QI decrescem à taxa média de 3.5% a cada década em todo o mundo e em todos os setores da vida: educação, economia, esportes, direito, religião, política, cultura, ciência, tecnologia, comunicação... Um câncer que se alastra sem controle, embora, para alguns especialistas - e me inclino a concordar - é um processo induzido, isto é, há muito tempo as bases da educação, da formação e da informação têm sido solapadas para abrir espaço ao avanço corrosivo da estupidez. Comentando o post da Quimera, um leitor enviou uma frase de Nelson Rodrigues bem a propósito: "Os idiotas vão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade; eles são muitos", ao que eu completaria "e estão proliferando".

Já outra leitora (parece que conversa da semana passada deu resultado) citou a lenda grega do guerreiro Belerofonte que, montando Pégaso, destruiu a temível Quimera. Mas a lenda não conta que a besta é imortal; engana-se quem pensa tê-la vencido; paciente, mimética, mutante, não se esconde e quando menos se espera dá o bote, por vezes mortal. Pois aí está ela de novo e agora com enorme vantagem. Enquanto a inteligência está na serena inteireza da alma, a burrice na turbulenta cisão da mente. 

A vantagem, prenúncio de desastre iminente, é que ela se infiltrou e agora está astuta e estrategicamente incrustada em todas as camadas sociais, da professora ao ministro da suprema corte, do comunicador ao doutor, do taxista ao cientista, do bancário ao banqueiro, do atendente ao presidente, do capelão ao capitão. Nada escapa aos "braços pegajosos" do monstro que está solto e com apetite. Não demos ouvidos aos alertas da história e agora não há como detê-lo.

Para Mark Bauerlein, o olhar recai sobre a Era Digital e as implicações preocupantes no universo dos jovens e, em razão disso, no futuro: "O futuro intelectual dos Estados Unidos parece sombrio"*, declara o professor da Emory University. Ele tem razão. A pesquisa mostra que os candidatos à recente eleição americana e ex-presidentes fizeram pronunciamentos em um nível verbal equivalente a crianças de 7 a 11 anos, de modo a serem entendidos pelo grande público! Percebeu quão crítica é a situação? Serem entendidos pelo "grande público"!

A internet é algo ainda muito movo e difícil medir seu impacto sem incorrer em falhas de avaliação; ao lado dos inegáveis benefícios, há uma sombra malévola que não pode ser ignorada. "As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis" preconizou Umberto Eco. Ainda dentro do ambiente digital, a velocidade e a quantidade de informação (geralmente sem filtro) não dão tempo para sua reflexão e interpretação; Bauerlein chama de go-go-go (vamos, vamos, vamos) ou "gratificação instantânea", resultando numa "perda coletiva de contexto e história, uma negligência de ideias e conflitos duradouros". Jung disse a mesma coisa, na primeira metade do século passado: "Ao magnífico desenvolvimento científico e técnico de nossa época, corresponde uma assustadora carência de sabedoria e introspecção". Continua atual.

O estudo de Bauerlein é um recorte bastante identificado com os de outros países como Holanda, Dinamarca, China, Portugal, Espanha e Inglaterra, por exemplo, num total de 14 levantamentos independentes. Uma das conclusões é que os jovens americanos "perderam totalmente o respeito pelos livros e pela literatura". Os estudos indicam também que esse emburrecimento começou a ser demarcado a partir dos últimos 40 anos, acelerando seu crescimento no início deste século, período em que a internet ganhou força. A correlação não é subjetiva. 

Não precisamos nem garimpar, há uma colônia de néscios e cretinos orbitando sôfregos e trôpegos à nossa volta, na política, no esporte, no escritório, nas redes, na reunião do condomínio, no supermercado, na academia.... Ânimos acirrados, nervos crispados, dentes rangentes, "punhos cerrados", opiniões impostas a ferros e berros; onde a inteligência não opera, porque parece ter perdido seu significado, a ignorância prevalece acompanhada de sua irmã, a força bruta. Nem sempre a palavra é necessária, basta o gesto, o olhar ou o esgar. O imbecil coletivo firmado por Olavo de Carvalho está nas praças, mostra a cara e assina embaixo. Minúsculas quimeras semoventes multiplicam-se contaminando o ar que respiramos, a terra que cultivamos, a aldeia que habitamos, sem trégua e sem limites.

Este blog, como qualquer outro, atua no espaço virtual, então você compreende o tamanho da minha responsabilidade e o cuidado que devo ter na hora de expor ideias, oferecendo sempre conteúdo com embasamento sólido bebido na fonte, checando informações, cruzando dados. Estamos falando das duas pontas do problema: as cavalgaduras, bestas ao cubo que aumentam o volume do alarido para serem - e são - ouvidas do outro lado pelos tolos nem tão incautos.

Não tenho dúvida alguma, os fatos mostram claramente que o atual momento da nossa civilização está escancarando o que talvez devamos reconhecer como nossa verdadeira natureza - estúpido, hostil, belicoso, sádico. Para Horkheimer, "a crise atual da razão consiste basicamente no fato de que, até certo ponto, o pensamento que se tornou incapaz de conceber tal objetividade em si, ou começou a negá-la como ilusão. O resultado isso é o desterro da razão". Em 1930, Freud já apontava tais sintomas e isso está se confirmando com força porque a máscara - a persona é a mesma que oculta a (verdadeira) face:

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.

Não tem como não ser repetitivo: A razão nos faz humanos, sua falta leva-nos ao limiar da bestialidade: Semi-humano, comportamento de manada seguindo a maioria ou o líder, mero viver instintivo de sobrevivência e procriação, irracionalidade à flor da pele. A consciência residual é o último bastião para não ultrapassar os limites da barbárie, mas até ela - a consciência -, ao que tudo indica, está se esvaindo.

As novas tecnologias dispensam esforços físicos e mentais; a memória perde feio para os googles da vida; a capacidade de ler, refletir e interpretar tornou-se monocromática e o diálogo, monossilábico; preenchemos nosso vazio com hiperatividade, múltiplas tarefas, poli-emprego, compulsão pelos smarts e agenda lotada; amigos antes presenciais são agora virtuais, as conversas, os abraços, olhares e toques viraram zaps, emoticons, selfies e likes. Semi-humanos em direção ao pós-humano ou ao sub-humano? Não é apenas o isolamento entre sujeitos, mas do sujeito com o mundo, com a realidade, com a consciência, com o ser. É o indivíduo em seu próprio vazio.

Vou deixar algumas questões no ar, ao mesmo tempo em que sutilmente me atrevo respondê-las: Haveria alguma conexão entre a 'digitalização' do mundo, a invasão das tecnologias como extensão acessória do corpo e a crescente infantilização do homem com o emburrecimento da humanidade? Seria a tecnologia o grande projeto narrativo ou a nova "utopia" para o século 21? Não é apenas uma crise da razão, mas de muitas crises - social, econômica, cultural, institucional, científica, formacional. Há uma tempestade em curso e não sei como vamos enfrentá-la.

Quem poderia e deveria tê-la evitado não fez porque não quis. Aplausos! É a mutilação da inteligência, das ideias, da criatividade, do pensamento, da linguagem, do bom senso, da dignidade, da ética e da moral, da civilidade e, acima de tudo, das responsabilidades. As vozes do  conhecimento abafadas pela ascensão  do  zurro  dos  orelhudos. Estão trancando as portas e jogando as chaves fora. É outra espiral do silêncio em formação? De volta a Nelson Rodrigues, arguto e cáustico observador do cotidiano, por isso mesmo indigesto: "Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas". É o mesmo sentimento expresso por Luther King: "O que me preocupa não é a gritaria dos ruins, mas o silêncio dos bons".homo se tornando húmus? Mais que uma inversão de valores, é o colapso das estruturas formadoras do caráter humano. 

Somos todos responsáveis pelas nossas ações mais em relação ao outro, ao próximo, do que a nós mesmos, um imperativo kantiano reescrito por Jonas: "Agir de tal forma que os efeitos das nossas atitudes estejam em acordo com uma vida autenticamente humana". Um homem dentro si, o sujeito humano íntegro capaz de avaliar a real dimensão do seu gesto e a ressonância da sua voz, e de introspecção crítica e reflexiva não submetida a qualquer operador externo. Você sabe para quem é o recado. Para entender o "conjunto da obra", recomendo ler os post listados ao final.

Responsabilidade só é possível àqueles minimamente livres, com autonomia como regra de conduta consciente. Já falei aqui e reforço com veemência redobrada: A história tem seu preço e cobra caro, com juros! Convém levar a sério também a advertência de Dante: "Os lugares mais quentes do inferno são reservados aos que, em temos de crise, mantêm-se neutros". Leia a epígrafe de Milton com a ácida ironia do autor. Não tenho capacidade para  medir a escuridão dessa longa noite, a extensão do túnel e se haverá uma luz no fim e o inchaço dessa bolha não epistêmica. Também não sei se são as bestas do apocalipse. Em um futuro assombrado pela invasão dos novos "bárbaros urbanos", pelo esforço no combate às sandices recorrentes me permito reescrever o dito popular: O penúltimo a sair, por favor, acenda a luz novamente. Ou teremos que esperar alguém recomeçar tudo dizendo "Faça-se a luz!".



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Carl G. Jung. Psicologia e ReligiãoVozes, 1978.
Max Horkheimer, O Eclipse da Razão. Centauro, 2002. 
Sigmund Freud. O Mal-estar da Civilização. Obras completas v. 21. 
Mark Bauerlein. The Dumbest Generation. Tarcher/Penguim, 2017.
Hans Jonas. O Princípio da Responsabilidade. Contraponto, 2015.
* http://www.latimes.com/entertainment/la-et-book5-2008jul05-story.html
Edward Flynn,  The Negative Flynn Effect: A systematic literature review. Intelligence,  v. 59, nov/dec 2016, pp 163-169. http://www.gwern.net/docs/iq/2016-dutton.pdf  acessado em 01/10/2018. 
** http://forum.cifraclub.com.br/forum/11/152008/   acessado em 5/10/2018

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

A DOR DA LIBERDADE
Imagem: La Barriera, bronze, 2000,
Cortesia Matteo Pugliese


A conversa de hoje tem como ponto de partida você, e vem para tratar de um assunto recorrente difícil, mas tão importante quanto necessário. Eu sempre digo que a sua participação é importante porque serve de balizador para aquilo a que me proponho fazer. O silêncio costuma ser revelador; como dizia Nelson Rodrigues, "A plateia só é respeitosa quando não está entendendo nada". Se ele estiver certo, é preocupante, ou porque não estou sabendo transmitir com clareza minhas ideias, ou porque está havendo uma onda generalizada de incompreensão (já preparei um texto a respeito). Não sei se é o caso, não me agrada saber que este blog produza um efeito placebo, ou que o tema seja desinteressante ou, pior, que seja lido por um número bem inferior de pessoas quanto eu gostaria. Contudo, nas últimas semanas recebi algumas mensagens postadas no próprio blog, outras pelas redes e por e-mail. São diferentes na forma mas iguais na estética. 

Decidi, então, fazer um apanhado e trazê-las para a nossa conversa. Espero que isso possa aclarar sobre muito do que escrevo, porque faço-o acreditando que o leitor "pegou" meu raciocínio de primeira, mas não é assim. Por mais inteligente que esse leitor seja, por mais afinidades que possa ter, o que eu estudo não é o que vele estuda, o que leio não é o que vele lê, e isso certamente é um complicador para entender minha visão de mundo. Não havia como fazer um texto breve nem fácil, portanto, peço concentração total. Dito isso, vamos ao que interessa.

Eu quero dizer que nem sempre eu comento, pois muitas vezes são assuntos complexos que exigem muita explanação (...) nem sempre concordo 100%, mas mesmo assim reconheço seu empenho.

A consideração acerca dos discos voadores como propalado pela ufologia há tempos não merecem a minha atenção - parte em função do meu amadurecimento, parte como resultado de seus livros e textos. Aliás, concordo com muitos dos seus pontos de vista, e também com muitas das 'razões' que você usa para defender sua visão sobre o tema. Mas não com tudo...

Estou ciente de que a complexidade é mesmo um entrave para o pleno entendimento de certas questões, então procuro atenuar o problema voltando ao assunto por outras abordagens e outros ângulos, mas ainda não é suficiente, por isso alerto que a leitura não pode e não deve ser esporádica; os posts compõem um todo muito coerente. Apesar do esforço, sei do embaraço, mas é preciso condensar a matéria. A discordância é natural e desejável, é o que move nosso aprendizado. Não discordar te torna discípulo, um chato e um estorvo.

Quando você lança mão das chamadas Ciências Naturais (Física, Química e Matemática) para justificar improbabilidades e impossibilidades, eu seria capaz de encontrar cientistas que usariam partes dos mesmos argumentos para falar em probabilidades e possibilidades.

Eis um debate inteligente: os mesmos argumentos colocados em lados opostos. Espero que o interlocutor faça isso. É aqui que entra a transdisciplinaridade: Uma única área do conhecimento - qualquer uma - não basta para provar ou explicar isto ou aquilo, pois será sempre um saber fragmentado, incompleto, por isso é essencial o concurso de outras tantas quantas forem necessárias. Quando costuradas entre si, fica difícil propor um contraditório substancialmente equivalente. Pensando nisso, estou sempre atento em não deixar brechas. O leitor fala que "Ainda acho que  a Realidade é muito maior  e mais complexa do que imaginamos", o mesmo disse a leitora citando Shakespeare, no original: The are more things in heaven and earth, Horatio, than are dreamt in of your philosophy. Comento logo a seguir.

Talvez eu precise acreditar, por perceber o quão pequenos e insignificantes somos nós seres humanos, limitados intelectos em frágeis invólucros. Quero crer que o homem, tal qual é, não seja a única espécie inteligente. Seria um desastre. 

Chegamos ao coração da matéria, ao leitmotiv - o discurso dominante que aqui vem se expressando por múltiplas chaves, o agente legislador e operador de uma ação elementar inalienável - pensar. A Filosofia é a matriz do conhecimento, faz muitas perguntas, talvez todas, mas não responde a nenhuma, cabendo a nós pensarmos sobre elas, e é aqui que o bicho pega. O que venho dizendo o tempo todo não é uma opinião puxada no vácuo, é fruto de uma entrega total e profunda em reflexões, leituras, aulas, diálogos e debates. Você não precisa concordar, apenas pensar sobre a questão. Não se ofenda com termos mais rudes, não é nada pessoal nem quero parecer indelicado, faz parte da sacudida habitual. Quero atingir o ser, não você. Preste atenção porque vamos entrar no campo da metafísica.

O fato de termos a faculdade do pensamento, portanto, de fazer perguntas, portanto, de obter respostas, não significa que saibamos responder tudo, e quando isso acontece - e acontece sempre - nós empurramos as respostas cada vez mais para trás até chegar onde só é possível haver uma última saída: Deus. Essa entidade, pura criação do espírito, passa a ser responsável por tudo, absolutamente tudo aquilo que não sabemos ou não temos competência para responder. Chame a esse deus como quer - energia primordial, força cósmica, poder divino, invisível, realidade maior... fica a gosto do freguês. Agora, tirando deus da parada., o que resta? Nada, vazio, vazio completo, e você perdido nesse vazio, no meio do nada, sem respostas, só e mudo.

Por que deve haver uma "realidade maior"? Quem disse que há uma? Por que deve haver uma "força invisível"? Quem disse que há uma? As religiões? Ora, mas se nós fundamos as religiões justamente para que nos dessem respostas, e se fomos nós que criamos também as perguntas, isso não vale, é um truque vil, é trapaça intelectual, é o mesmo que eu criar um jogo e as regras que determinem um vendedor: eu! Sempre incorremos num grande equívoco, ou logro - no que aproveito para me corrigir também: a etimologia de religião não é religare -  religar, uma distorção habilmente manobrada pela Igreja para fortalecer a sua doutrina. Religar quem com quem, você com a sua própria criação? A verdadeira tradução para religiosum (religioso) é "aquele que cumpre seu dever", conforme Cícero (séc. I), quando afirma que religião vem de relegere - reler, rever, reexaminar, e isso faz toda a diferença:

Aqueles que, diligentemente reliam todas as coisas que se referem ao culto dos deuses, foram chamados de religiosos, a partir de reler; tanto quanto elegantes são elegantes de eleger como diligentes de diligenciar, inteligentes de inteligir; pois em todas as palavras há a mesma força de ler que há em religioso.

E quando não houver deus, deuses, força cósmica, ser superior ou coisa do tipo, chame a cavalaria: oráculos, anjos, gurus, seitas, líderes, mestres, espíritos, alienígenas ou o que sua mão alcançar - cristais, pirâmides, seu gato, rio Ganges, gafanhoto, elefante, louva-deus, astros... a loja de conveniência da fé está sempre aberta e lotada. Dada a nossa insignificância, dada a nossa fragilidade, dada a nossa incompetência e dada a nossa ignorância, nós idealizamos uma 'dimensão transcendente' para justificar, valorizar e elevar a nossa reles existência, como a dizer para nós mesmos que temos uma razão para existir, algo que nos distingue dos quadrúpedes aos moluscos.

Somos a única espécie que nutre e preserva um estranho, secreto, irrefreável, indefinível e profundo desejo de submissão a uma entidade criada por ela mesma. Você percebe a incoerência, a fraqueza, a fratura, a rupturaProduzimos uma divindade para nos submetermos docilmente a ela! Servidão voluntária perpétua. Ao contrário da suposta "religação", ruptura! É o mesmo que você contratar um sujeito para ser seu chefe, fazer tudo o que ele mandar. Faz sentido? Isso é de uma estupidez colossal. Submissão é melhor que liberdade? Tem certeza

Isso de botar tudo nas mãos do transcendente, do imponderável ou de uma "realidade maior" é muito cômodo, muito prático, uma fuga conveniente, para não dizer um ato de covardia: Sem culpas, sem prestação de contas e sem responsabilidade. Isso nos deixa no mesmo patamar existencial da lacraia, que faz o que tem de fazer sem perguntar, sem noção do que faz nem da sua própria existência e sem escolher se pode fazer outra coisa. Faz porque é da sua natureza fazer. Se você existe e não pensa, não questiona, não escolhe seu próprio caminho, você é uma lacraia,faz o que faz a mando de um "algo" qualquer criado por você mesmo. Lamento informar, você é só uma coisa que existe, um nada, um "frágil invólucro", um cadáver adiado como dizia Fernando Pessoa. Doeu?

Agora vem a melhor parte da festa: De novo, tire deus, ture os gurus, os alienígenas, as pirâmides, os gafanhoto. O que resta? Resta você, você com você mesmo, você e a sua consciência. Mas há um paradoxo aqui! Como prescindir de um deus se sou frágil, covarde, insignificante, chorão, mimado? Bem, você é tudo isso porque quer! Doeu de novo? Problema seu. É possível existir sem esse "algo" superior dando as cartas sem desmoronar? Sim, mas não é tarefa fácil, não para frouxos porque dói mesmo, e como ninguém gosta de dor e trabalho, nada flui. Uma coisa é o que você idealiza para si, outra é o que a realidade joga na tua cara, e isso dói para valer.

Mas a pior parte da festa é essa: se nada disso estiver por aí e o sujeito não tiver bons e sólidos alicerces, ele despenca para o fundo de um poço lamacento e se submete ao colapso do corpo e da mente - depressão, melancolia, ansiedade, angústia, solidão, desamparo, neurose, desânimo, infantilidade, ausência de sentido da vida, vazio... então os artifícios químicos assumem função substitutiva. De qualquer modo será, sempre, inevitavelmente, uma dependência externa.

Você tem a liberdade de pensar e escolher mas se ilude achando que a exerce. A partir do momento em que transfere a outrem as rédeas da sua vida, deixa de ser o condutor de si, o narrador de sua própria história, o autor de sua obra; fará o que este outro ordenar que faça: se mandar rezar, reza, se mandar ajoelhar, ajoelha, se mandar enxugar gelo três vezes ao dia, enxugará. Você quer continuar sendo uma centopeia obediente e conformada, sem autonomia, ou se tornar um ser ciente capaz de orquestrar seu próprio espetáculo? Será uma escolha assim tão difícil?

De qualquer forma, como você está condenado a ser livre e sofrer por isso, saiba que a angústia de viver o acompanhará, seja pela escolha feita, seja pela não feita. Essa é a única realidade possível, goste-se ou não, queira ou não. Na próxima vez que você se encontrar com a sua consciência, deixe que ela faça a escolha, mesmo sabendo que vai doer de qualquer jeito.

Leia de novo:
O ser estilhaçado
Vazio que não se preenche
Em busca do útero perdido
Praia é abatedouro de filósofos

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Cícero, Da Natureza dos Deuses (De Natura Deorum). Ideia, 2018.