Obras

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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016



Balde de água fria no entusiasmo dos renitentes


É praticamente impossível levar adiante uma conversa sobre discos voadores sem que alguém levante a eterna questão dos "milhares de relatos, fotos e filmes que...", ou que os "depoimentos de militares e cientistas não podem ser contestados...", que "as evidências físicas são indiscutíveis", argumentos considerados "provas definitivas" da realidade destes veículos. Vou tentar dar uma esfriada nesse calor todo usando de suas próprias afirmações, quem sabe assim dão um jeito nessa sanha febril (duvido!).

Em primeiro lugar, nenhum testemunho é inteiramente confiável, por mais que diga a verdade. Do Papa ao frentista, do Ministro da Defesa ao balconista, toda palavra tem seu valor, todos devem ser ouvidos com respeito, mas não é confiável por uma série de motivos. Sou obrigado a ser repetitivo ao dizer que todos estão sujeitos a enganos, erros de interpretação por falta de conhecimento da matéria, distorções da memória, mescla de imagens oníricas com manifestações do inconsciente e do imaginário coletivo e outras tantas coisas. Porém, como diz um leitor, ainda há um 'resíduo' que não se enquadra em nenhuma dessas categorias. Ele tem razão, e é dessa sobra que vamos falar agora.

O percentual estimado de casos de explicação 'inquestionável', isto é, que se trata de "discos voadores sem sombra de dúvida" fica perto de 1%. Parece pouco, mas é significativo. É um número simbólico, apenas para representar a desproporção dos casos esclarecidos daqueles que se supõe serem autênticos. Então, vamos explorar essa possibilidade. Imaginemos esse 1% algo em torno de 200 mil casos registrados ao redor do mundo na "era moderna". As fotos e os relatos se referem a aparelhos de diferentes formatos sugerindo procedências diversas. Os alienígenas se mostram com variados figurinosSe todos forem verdadeiros então temos, a priori, igual número de civilizações nos visitando, certo? Por si só esse argumento seria suficiente para detonar com a casuística. 

Bem, como parece exagero até para o mais otimista, vamos reduzir pela metade - 100 mil casos/civilizações. Você dirá "- não, é muita coisa, cada um deles deve nos visitar pelo menos umas cem vezes". Um despropósito, mas então temos mil civilizações, todas visitando a Terra ao mesmo tempo. Tem cabimento tamanho absurdo? Todos os seres com a mesma conformação humanoide, todos com o mesmo objetivo de 'proteger' a Terra, todos encontrando alguma forma de se comunicar, seja no idioma local (!) ou por telepatia, que pode ser no idioma do receptor. Pelo menos a folclórica frase "Leve-me ao seu líder" nunca foi registrada porque, se fosse, a piada estaria completa, mas que tudo isso faz parte da fantasia, faz.

Se aceitarmos esse "1%" como casos reais de extraterrestres, então nada nos impede de acreditar numa legião de criaturas extraordinárias, lendárias, folclóricas, que fazem parte do tecido imaginário das mitologias - fadas, elfos, anjos, duendes, sílfides, ninfas, sereias, íncubos e súcubos; fantasmas, espíritos, centauros, gárgulas, unicórnios, bruxas, demônios, saci Pererê, boitatá, mula-sem-cabeça.... E assim jamais nos veremos livres do 'pensamento mágico' dos ancestrais que inclui cristais, oráculos, talismãs, amuletos, rituais, rezas, simpatias... 



Se o raciocínio estiver correto, existem cerca de mil planetas cujos habitantes - atenção agora - desenvolveram tecnologia, cultura, linguagem, habilidades, inteligência, consciência, atitudes, biotipo, hábitos e costumes em tudo e por tudo semelhantes ao nosso mundo! É inadmissível, pela lógica mais rudimentar, que existam seres tão iguais a nós! Por que não são aracnoides tricéfalos urrantes? Invertebrados gosmentos cuspidores de gases fétidos? Por que sua aparência tem que ser necessariamente antropomórficas? Porque precisamos que sejam assim, nós os criamos assim, "à nossa imagem e semelhança". Entendeu?

Cheguei a ouvir certa vez que eles têm um deus, e vivem numa sociedade democrática de estado de direito. Jamais vi tamanha aberração numa única frase. Ouvi também que estão 'preocupados' com nossa potencial aniquilação atômica porque isso afetaria o 'equilíbrio' do universo. Que a gente se exploda, tudo bem, mas deixem o planeta intacto. Que equilíbrio? Estamos em meio ao maior caos com galáxias se trombando, estrelas implodindo e explodindo, buracos negros sugando tudo à sua volta, corpos gigantescos erráticos em rotas de colisão uns com os outros! Você crê realmente que existam mil povos por aí que nos visitam há "milhares" de anos, como querem os ufólogos? Quer baixar para 500 nações estelares? 100? 50? 5? Se imaginar uma só já é quase um delírio, mais que isso é devaneio alucinogênico incurável.

Mas alguém irá falar das tais evidências materiais - ecos de radar, perseguições em voo, lesões físicas em testemunhas próximas, panes elétricas, marcas de pouso, os estúpidos agroglifos, mensagens mediúnicas, etc. Nenhuma destas ocorrências sequer deveria ser chamada 'evidência'. pois não passam de anomalias que uma investigação séria não possa explicar. O mesmo vale para fotografias e filmes, que não resistem a uma boa análise técnica. Ainda que não se possa identificar uma imagem como algo conhecido, isso não dá direito a sair por aí trombeteando tratar-se de "disco voador". A investigação deverá prosseguir at;e esgotar todas as alternativas. A intempestividade é o cadafalso do ingênuo. Se não for ingenuidade, é má-fé mesmo.

A atitude mais comum nessas ocasiões é o escapismo tolo e tosco - o defensor da causa Óvni considerá-lo "além da nossa compreensão", ou "a ciência não explica porque não está preparada" ou que o fenômeno situa-se na "esfera do transcendente". Falácias com tons de imbecilismo. É uma saída tão patética quanto desonesta de quem não quer perder tempo 'explicando o inexplicado', porque não tem explicação a dar. As respostas só estão disponíveis àqueles que se propõem a perguntar. Quem faz muitas perguntas pode parecer um idiota, mas quem não faz nenhuma, esse é um idiota. Os ufólogos nunca fizeram. Quem fez já desembarcou. A ufologia é uma nave à deriva em um mar de conhecimento.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Uma voz sólida em um mundo líquido



Já que estamos em época de natal, resolvi fazer uma pausa no debate com o leitor para trazer de presente um texto de capital importância daquele que é um dos mais importantes nomes da atualidade para entendermos este nosso conturbado mundo contemporâneo, 'pós-moderno', ou ainda mundo 'líquido'. Estou falando de Zygmunt Bauman. O que há de tão especial que o justifique? De especial, nada, de relevante, tudo. Fala de utopias, e você, que me acompanha com assiduidade neste blog (assim espero, senão, perdeu muita coisa), há de notar pontos de semelhança com tudo aquilo que venho despejando ao longo deste ano. Óbvio, não é coincidência.

Devo ressaltar, contudo, que o texto em questão foi extraído de uma obra a qual eu não havia lido até a semana passada, portanto, nunca fui influenciado diretamente por ela, embora não negue a presença do autor no percurso dos meus estudos, e nem poderia ser diferente. É uma reflexão atemporal, ou melhor ainda, pantemporânea, contínua. Então, vamos a ela, dispensando comentários.


Agora fique com Bauman.

Numa sociedade de caçadores, a expectativa do fim da caçada não é sedutora, mas aterrorizante. Seria um momento de falha pessoal. As trompas de caça convocariam novas aventuras, os cães uivariam, estimulando deliciosos sonhos de antigas caçadas; por toda parte, outros estariam na busca frenética de suas presas, não haveria fim para a agitação e para os clamores de júbilo. Só eu estaria de lado, excluído e afastado da companhia, indesejado e condenado a ficar longe da alegria; uma pessoa com permissão de assistir à folgança dos outros por detrás da cerca, mas a quem se nega a oportunidade de participar.

Se a vida da caça é a utopia de nossa época, ela também é, em contraste com suas antecessoras, a utopia de uma aventura sem fim. Na verdade, é uma estranha utopia. Suas antecessoras foram seduzidas pela expectativa do fim da estrada e da labuta, enquanto a utopia dos caçadores é um sonho em que estrada e labuta jamais terminam. Não é o fim da jornada que estimula o esforço, mas sua infinitude.

Essa é uma utopia estranha e não ortodoxa, mas, não obstante, uma utopia, como as outras que a antecederam, prometendo o que, afinal, é uma recompensa inatingível, uma solução definitiva e radical para todos os problemas humanos, passados, presentes e futuros, assim como um antídoto também definitivo e radical para todos os males e aflições da condição humana. É uma utopia não ortodoxa porque apresenta uma terra de soluções e curas, dos “lá e então” do futuro distante até os “aqui e agora” do momento presente. Em vez de uma vida que leva à utopia, aos caçadores se oferece uma vida na utopia. Para os “jardineiros” a utopia era o fim da estrada, enquanto para os “caçadores” a própria estrada é a utopia. (Será que não deveríamos, nesse caso, trocar o termo “u-topia” pelo termo “u-ambulatio”?)

Os jardineiros viam no fim do percurso a realização e o triunfo final da utopia. Para os caçadores, chegar ao termo da estrada seria a derrota final e ignominiosa. A humilhação se acrescentaria às mágoas já existentes, transformando esse recesso em derrota pessoal. Como outros caçadores não deixariam de caçar, a exclusão da caçada permanente se tornaria sinônimo de desgraça, de vergonha da rejeição e, em última instância, de opróbrio, por estar exposto às próprias deficiências.

Agora, fique com você. 

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Zygmunt Bauman, A Cultura no Mundo Líquido Moderno. Zahar, 2013.

sábado, 17 de dezembro de 2016


A ilusão está na origem do erro



Continuando a prosa com o leitor jogador de xadrez, foram levantados dois pontos que vale a pena serem postos na lousa. Parece não haver mesmo divergências, sendo mais um reposicionamento em consonância com suas observações sobre o que acontece no Brasil e no mundo em relação à Ufologia. Por exemplo, ambos estamos de acordo que as pesquisas dentro e fora do país se auto-alimentam e retroalimentam, provocando um círculo vicioso onde nenhuma delas ousa pisar fora do círculo em busca de novas perspectivas. Nem pensar. O resultado, pasmaceira, tédio, notícia velha requentada o tempo todo. 

Outro pensamento concordante é com relação ao papel da mídia no trato da questão. Ele fala com conhecimento porque atua no campo da comunicação: "Testemunho o descaso da falta de acompanhamento de casos, de todos os tipos e magnitudes, que são relevantes para a sociedade." Para nós dois, a mídia, ou a grande imprensa, como queira, oferece à sociedade o que acha que ela quer saber e não o que precisa saber. Esse tipo de achismo é nefasto.

Dados os acordos, os lances do jogo vão definindo as posições das peças. Diz ele que "Nas Ciências Sociais, algo se torna 'verdade' quando um considerável número de pessoas acredita que aquilo seja verdadeiro (...) No entanto, existe outro conceito de verdade, tangível e mensurável pelas Ciências N aturais." Para exemplificar, ele lista uma série de perturbações físicas e psicológicas e reações psíquicas sofridas pelas testemunhas como demonstração da verdade 'mensurável'. Me parece uma avaliação incorreta. Uma resposta adequada exigiria uma longa exposição, e seria melhor e mais completa se dada por um profissional da Saúde, de qualquer área. Tentarei ser conciso, sabendo de antemão que você sabe do que estou falando.

Todo o qualquer distúrbio físico e/ou psicológico não tem necessariamente uma causa externa; véspera de exame final gera 'dor de barriga', enxaqueca, manchas na pele, náuseas, dores musculares, etc, e nada disso tem a ver com o exame em si. Uma visita a Notre Dame ou ao cume de um vulcão desperta arrebatamentos indescritíveis; um pôr do sol singular faz brotar lágrimas; uma vista deslumbrante nos Alpes Suíços leva a vertigens. O agente causador não é nada em si mesmo, indiferente às reações de cada pessoa. Emoção, perplexidade, riso, espanto, medo, dor, desmaio, paralisia são produtos da psique. Falei o óbvio, sei disso.

Presenciar acontecimentos traumáticos e impactantes costuma produzir perturbações psíquicas muitas vezes irreversíveis. A conhecida Síndrome de Stendhal é um estupor extático que ocorre em evento de natureza puramente estética, também conhecido por hiperculturemia ou Síndrome de Florença. Conheço uma pessoa que diz ter passado por "estranhas sensações", um "mal estar inexprimível" e desorientação ao adentrar uma marca circular deixada por um suposto disco voador. Uma farsa grosseira, de ambas as partes. 

Não é porque alguém diz ter visto um disco voador, tocado nele, entrado, viajado, conversado com alienígenas e, em decorrência, ter sofrido danos físicos e psíquicos que devemos acreditar tratar-se de um fato real. Pode ser tudo, menos um encontro com "seres de outro planeta", porque eles não existem. Esse "tudo" pode ser, por exemplo, sonho, farsa, mentira, imaginação, alucinação, embuste, brincadeira, fantasia, falsa memória ou transtorno mental, desequilíbrio psíquico, surto psicótico e outras ocorrências da mesma ordem.

Aí vem a pergunta, inevitável: - Mas não pode ser pelo encontro com uma nave alienígena ou um extraterrestre? Aí vem a resposta, taxativa: - Não, nunca, porque ETs e discos voadores não existem. Diante dessa negativa, você ri, sente pena de mim, concorda, reflete, se inquieta, se espanta, se indigna ou fica impassível. Qualquer que seja a reação, nada muda a realidade do fato. O preço é alto para quem ousa sair do trilho, caminhar contrário à multidão ordenada, ou, sendo direto, para quem se recusa pertencer ao rebanho. Basta ter coragem, razão, lógica e conhecimento. A segunda questão foi debatida no post anterior sobre a natureza do "fenômeno Óvni", mas como o leitor informa ainda não ter lido Reflexões, vamos esperar que após a leitura o debate tenha continuidade.

Mas gostaria de abordar um aspecto que é recorrente em todas as conversas, debates, fóruns e discussões, que corrompe o raciocínio, distorcendo a construção dos argumentos e a interpretação dos fatos. Esse aspecto, que martelo aqui o temo todo, é contrário a tudo aquilo que você está acostumado a ver por aí. Ou seja, opõe-se ao senso comum, mas não ao bom senso. Veja, sempre que uma conversa dessa tem início, parte-se da premissa errada de que disco voador, como nave alienígena, existe, e a partir daí argumenta-se em cima desse equívoco ingênuo, ainda que compreensível - disco voador existe. Será que 70 anos  não foram suficientes para a ufologia ter noção da sua própria demência? Sete décadas correndo atrás do próprio rabo e não percebe a ilusão de que é autora e vítima?

Aguarde, breve trarei um texto daquele que é um dos mais respeitados nomes da sociologia contemporânea. Apesar de não haver uma palavra sequer sobre "ufologia", ele fala o que precisamos saber sobre o assunto. Por enquanto, fique com Edgar Morin, bem a propósito para o tema de hoje.


"Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão. A educação do futuro deve enfrentar o problema de dupla face do erro e da ilusão. O maior erro seria subestimar o problema do erro; a maior ilusão seria subestimar o problema da ilusão. O reconhecimento do erro e da ilusão é ainda mais difícil, porque o erro e a ilusão não se reconhecem, em absoluto, como tais. A projeção de desejos ou de medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos de erro."

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Morin, Edgar. Os Setes Saberes Necessários à Educação do Futuro. Cortez/UNESCO, 2000. 
_______. Ciência com Consciência. Bertrand Brasil, 2005.

sábado, 10 de dezembro de 2016


Jogo intelectual não tem perdedor



Como informei em postagem anterior, um leitor havia proposto debater por e-mail, e isso já começou. Eu disse também que traria os aspectos mais relevantes para você acompanhar e assim, quem sabe, seguir o exemplo e se manifestar em linha direta, com privacidade. A conversa de hoje já estava pronta quando ele fez a tréplica das minhas respostas e acrescentou novos itens, que serão comentados na próxima semana. Está ficando interessante.

Antes de apresentar suas dúvidas, ele parte do princípio de que existem pessoas muito bem intencionadas no meio ufológico, que pecam apenas pela falta de informações mais precisas, estudos mais aprofundados, falta de referências confiáveis, vícios próprios de crenças, etc. Tenho dúvidas. Informação é o que não falta, está na ponta dos dedos; aprofundar os estudos depende só de disciplina, dedicação e vontade. Encontrar a referência confiável é questão de discernimento, experiência, diálogo, critério. Já os 'vícios próprios da crença', ah. os vícios da crença, isso é indiscutível: quanto mais se crê no objeto da fé, mais difícil reconhecer os vícios e mais ainda libertar-se deles. Quem está realmente engajado num estudo sério de largo espectro se retirou de cena, ao menos da cena pública, para conduzir seus trabalhos fora do 'castelo', concentrado em rotas mais produtivas. Eu não sou o único exemplo nem essa postura é nova. Lembra quando falei de autonomia semana passada? Pois então...

Meu interlocutor comenta que a ufologia brasileira é pré-conceituosa, por considerar os discos voadores naves extraterrestres. Depois, diz que uma boa parte dos casos reportados podem ser explicados com graus variados de conhecimento científico (ótica, astronomia, meteorologia, aeronáutica, etc). Por fim, indaga minha posição sobre a totalidade dos casos, descartados os que têm uma boa explicação (erros de avaliação, má fé, alucinações, fenômenos naturais raros, etc.). Para ele, portanto, restaria uma fração de situações que fazem do fenômeno Óvni uma realidade. O que ele levanta é a origem dessa realidade. As respostas dadas estão aqui um pouco mais ampliadas e detalhadas.

Sim, esse foi o erro fundador fatal da ufologia - permitir que amadores entusiastas pré-julgassem um acontecimento com explicações para algo que carecia de uma análise multidisciplinar ampla, saber técnico e científico específico e outros procedimentos. Jogaram no ventilador o que achavam que o fenômeno era e agora temos que ficar recolhendo os destroços. As razões para essa conduta desastrada e desastrosa têm sido exaustivamente dissecadas aqui. 

O segundo ponto é que não é "uma boa parte" de casos relatados que tem explicação, mas algo próximo a 99% que pode ser naturalmente esclarecido. Para o 1% que ficou sem solução faltam dados e informações que consubstanciem uma resposta satisfatória e definitiva. Vale dizer que essa inconclusão se refere no mais das vezes à casuística de décadas atrás, apesar de muito já ter sido desmascarada. Os eventos mais recentes não resistem ao rigor de uma análise crítica severa, por isso já não se noticiam mais tantos "discos voadores" como antigamente. A fonte está secando.

Sobre a terceira e última questão, reitero que o Óvni, como fenômeno, é real, sem dúvida, porém, qual é a sua natureza? Essa reflexão me levou a escrever Reflexões, com o perdão da redundância. Em certo sentido, ele se insere numa dimensão mítica, uma realidade imaginária - mas atenção, cuidado com essa interpretação, porque estou simplificando ao máximo o que é de uma complexidade colossal, porque há um longo caminho pela frente. Aliás, ninguém disse que seria curto. Nem fácil. Meus estudos indicam que a estrutura do fenômeno tem semelhança especular com a dos mitos, uma consanguinidade manifesta, ambas com a mesma estrutura religiosa do pensamento. Então ele é um mito? Eu diria que sim. O elevado grau de confiabilidade e densidade do conteúdo das fontes, a seriedade, a isenção, a intensidade, o comprometimento e as vigorosas conexões no itinerário, nos entreatos e nas entrelinhas da pesquisa parecem me dar razão. Assim, Reflexões se mostra um balão de ensaio bem encaminhado. 

O amigo leitor informa que é só começou e fará novos 'lances', sugerindo um xadrez ufológico. Não sou enxadrista mas sei jogar, e em se tratando de um jogo intelectual desse porte e o alto nível de quem está do outro lado do tabuleiro, aguardo o que virá com grande expectativa. Não importa o resultado, só temos a ganhar porque, pelo que depreendi, ninguém está interessado em dar xeque-mate. Debater nem sempre significa contestar, confrontar, mas antes, esclarecer, aprender. Semana que vem continuamos esse papo.

sábado, 3 de dezembro de 2016

"A crença é o amparo dos ignorantes"

carlosalbertoreis51@gmail.com



A frase que se lê no título por estar entre aspas significa que alguém a proferiu. Não foi sociólogo, pensador, filósofo, mas um amigo que você já se habituou me ver debatendo e que "patrocina" muito do que escrevo aqui. É o estereótipo do indivíduo platônico, que se apoia em várias doutrinas e práticas metafísicas para sustentar suas convicções. Veja bem, nada contra, cada um deve seguir seu caminho na direção em que o nariz aponta. Eu sigo o meu, você o seu, ele o dele. O que peço é coerência, o que parece não ser o caso deste amigo. Vejamos como foi o diálogo.


A conversa seguia trivial até que o assunto deslizou para filosofia, religião, budismo... "Não discuto a Lei do Karma. Enquanto estiver encarnado sigo e cumpro essa Lei Maior. No 'outro lado' as leis são outras". O que fica bastante evidente, mesmo para quem abraça a filosofia budista, é o temor da morte, eufemizado por ele com "A vida é um processo contínuo e a morte apenas a volta para casa". Ele está falando de reencarnação, e a expressão "volta para casa" tem um evidente caráter consolador e de aconchego diante do inevitável.

Foi então que ele veio com as palavras de Buda: "Não sigam o que eu digo, experimentem por si; não acreditem em alguém só por que diz que esse é o caminho certo; vivam a experiência do viver, sem crenças; não acreditem em coisas que não sejam verificáveis". O itálico é meu e dispensa comentar. Meu interlocutor erra quando define "budismo é religião sem Deus", ao que retruquei: "Se Buda estivesse vivo daria um bico nos fundilhos de quem afirma tamanha asneira". Leia o que escrevi sobre budismo no post anterior. Buda à parte, lembrei a ele, usando as palavras do seu mestre, que devemos sim ter referenciais e balizadores de conduta, mas não para serem obedecidos e sim pensados e discutidos. Mas vamos ao que interessa. 

Logo após ter escrito a tal frase do título, eu o questionei sobre a sua crença em disco voador, que defende com ardor. Sua resposta quase me fez cair da cadeira: "Eu acho que disco voador não existe. O que existe é um fenômeno a ser identificado. Não há como negar isso". Por que do meu espanto? Ora, a afirmativa abaixo é assinada por ele desde sempre, e se isso não for incoerência, não sei o que é:
     
Os discos voadores existem; são veículos tripulados por seres inteligentes provenientes de civilizações longevas e avançadas que nos visitam há milhares de anos com os mais diversos objetivos.

Mais direto e convicto impossível. Assumindo a autoria, ele veio de novo  com aquela mofada ladainha de que não se pode ignorar centenas de relatórios militares etc, etc, e coroou a conversa com: "Eu não acredito, eu sei que eles existem". O que chama atenção não é a incoerência apenas das afirmações conflitantes - disco voador não existe... os discos voadores existem..., mas no fato de ele seguir à risca os preceitos budistas mas na prática adotar postura contrária! Releia o destaque das palavras de Buda.

Não sei se você percebeu que eu fui quase socrático, deixando que ele próprio se enroscasse nos argumentos. Fiquei com a impressão de que ele não se deu conta de ter caído em contradição, embora tenha dado uma 'saída estratégica' das mais bisonhas: eu sei que eles existem. Esse recurso de botar um ponto final na conversa antes de ela esquentar os motores é típico de quem sente que 'o bicho vai pegar'. É a pedagogia impositiva do pregador: é assim porque eu sei que é assim! Já vi esse filme inúmeras vezes, conheço os atores, as falas, o roteiro.

Como digo sempre, o pensamento crítico é o único capaz de remover a casca do dogmatismo, de nos tirar da zona de conforto para fazer algo mais do que simplesmente existir por existir. Kant sustentava a ideia de que, para alcançar a "maioridade", precisamos assumir nossas escolhas através de um esforço de autonomia e racionalidade. Autonomia e racionalidade. Minha posição frente às crenças de um modo geral é clara e sem reservas: crença é cabresto, redoma, monólogo; castradora, astuciosamente aliciante, primitiva, dissolutiva, predatória, previsível, lenitiva, paroquial, pasteurizada, prescritiva, egoísta, trazendo conforto e felicidade só para o crente. Ou seja, belisca a pele, não chega às vísceras. Gosto do que escreveu Rubem Alves: "Ostras felizes não fazem pérolas". 



Permita-me encerrar com uma rápida digressão. Ainda não li a obra do Rubem¹, mas a metáfora da ostra se encaixa à perfeição para definir crédulos cegos: um molusco inofensivo sem ossatura interna, de casca grossa, dura e rugosa que o protege de 'ataques externos'. A ironia: para produzir pérolas, a ostra deve permitir a entrada de um grão de areia, um corpo estranho, áspero, que machuca, causa dor e sofrimento. Outra metáfora: O fruto só é depois que a semente quebra a casca.

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¹  Alves, Rubem. Ostra Feliz não faz Pérola. Planeta, 2012.
Eliade, Mircea. História das Crenças e das Ideias Religiosas. Jorge Zahar, 2011.

sábado, 26 de novembro de 2016

Estou de olho em você!

carlosalbertoreis51@gmail.com


Antes de começar a ler, uma recomendação: é importante saber que, para absorver melhor cada texto deste blog, (re)leia os anteriores, porque ele funciona como um corpo de engrenagens interligadas, e a leitura isolada impede o seu entendimento no conjunto. E um aviso: a obra A Desconstrução de um Mito, esgotada na versão impressa, está disponível agora em arquivo eletrônico )PDF) por R$ 25,00. Entre em contato para mais detalhes.


Segundo me contou um amigo pelas redes sociais, que ajuda a divulgar este blog nos seus grupos de amigos e comunidades, as últimas postagens renderam polêmica. Bem, ela não chegou ao meu conhecimento, exceto por uma ou outra manifestação que pude rastrear. Este blog foi concebido com essa finalidade, incomodar, provocar, cutucar, fazer as pessoas pensarem sobre o que estão lendo e não se comportarem como pacientes anestesiados às portas da cirurgia. Se este objetivo vem sendo atingido, ótimo, vou seguir em frente, mas estranho o fato das discussões ficarem à margem dele, quando meu endereço está disponível para quem quiser conversar diretamente, com privacidade. Por que a polêmica é marginal? Medo do debate? Falta de contra-argumentação sólida? Quem pode me explicar? Você sabe o que penso sobre isso.


Uma moça se manifestou dizendo "Fácil criticar os outros quando se tem chão de vidro". Chão de vidro? Não entendi, mas, de qualquer forma, não é fácil criticar não, mocinha. Quem pensa assim (e ela não é a única) não tem a menor noção da complexidade do processo crítico quando feito com ética e responsabilidade: Tem que conhecer o objeto da crítica - conheço bem; tem que sustentar o debate - sustento; tem que justificar e fundamentar a crítica  - e o faço; e tem que apresentar soluções, respostas, caminhos - também faço, sempre. Crítica - vou repetir - do latim criticus significa quebrar, segmentar, que tem relação com o grego analyó - cortar, romper, cindirque deriva em mudar, transformar. Portanto, toda análise crítica visa provocar rupturas e mudanças em um dado sistema de pensamento.

Outra leitora escreveu: "Caras como ele, mesmo com uma mente poderosa, mas sem o embasamento teosófico, podem aniquilar muito pouco da realidade cósmica, pouco mesmo (...)". Vamos lá. Theo Sophia - "termo usado pelos neoplatônicos para indicar o conhecimento das coisas divinas, proveniente da inspiração direta por Deus."¹ Penso que o itálico atesta a absurdidade da doutrina. É muita arrogância do homem querer conhecer as coisas divinas quando sequer sabe qual seu papel no mundo. A Teosofia foi retomada no final do século 19 com a fundação da Sociedade Teosófica, que pregava uma 'nova' doutrina: "Uma mistura de ocultismo e crenças orientais que supostamente estaria fundada na inspiração direta por Deus".¹ Sem comentários. Quanto a 'mente poderosa', não sei a que se refere. A desse cara aqui não é não, com certeza.

Os gregos acreditavam que a "harmonia cósmica" era a manifestação divina, conceito implodido há cinco séculos! Mas há quem ainda acredite nessa ideia e se abrigue em 'escolas filosóficas' que a sustente. Será que a leitora saberia responder o que é exatamente realidade cósmica? Não, asseguro que ela não sabe e nem tem ideia do que está falando. Como eu poderia aniquilar algo que não existe? Desculpe ser repetitivo, mas teosofia é uma daquelas instâncias metafísicas nas quais muitos se agarram porque não aguentam o tranco da realidade do mundo físico, concreto, que bate na tua cara todo dia. Já se disse aqui que, quando encaramos nossa solidão e insignificância no universo, sentimo-nos como a criança longe da casa paterna; o sentido último do nosso desenvolvimento está justamente em superar essa fixação infantil. O pensamento é de Fromm². Fulminante, porém iluminador é este trecho da obra de Ernest Becker:

Não queremos admitir que estamos sozinhos e que sempre nos apoiamos em algo que nos transcende, um sistema de ideias e poderes no qual estamos mergulhados, e que nos sustenta.³ Becker não só ganhou o Pulitzer em 1974 como sua obra é considerada uma das 100 mais importantes do século 20. 

Nota-se, enfim, que são comentários ingênuos, quase infantis, dirigidos ao autor e não aos conteúdos, porque não constroem uma tese lógica e robusta em oposição. Para não ser injusto, um leitor propôs, por e-mail. discutir algumas divergências pontuais. Possivelmente trarei para cá as questões mais relevantes. Mais alguém disposto ao diálogo? Só não aceito conversa mole, casuísmo, repertório ultrapassado e retórica estéreil. 

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¹ Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007.
² Fromm, Erich. Psicanálise e Religião. Livro Ibero Americano, 1966.
³ Becker, Ernest. A Negação da Morte. Record, 2008.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016


Cacto insolente

carlosalbertoreis51@gmail.com


Mais uma vez voltei a debater com aquele meu velho amigo de sempre. Não é um personagem fictício como talvez você possa pensar, como pretexto para puxar assunto. Ele existe, e é pelas redes sociais que nossas discussões costumam soltar faíscas. Enquanto ele insiste em me persuadir a aderir às suas convicções, eu, ao contrário, me limito a discorrer sobre a minha visão de mundo. Contudo, quando o assunto é Ufologia, nossos pontos de vista estão sempre em rota de colisão, e eu o imagino inconformado prestes a pular no meu pescoço. É só uma figura de linguagem, não se preocupe, somos bons amigos e jamais chegaremos às vias de fato. 

Desta vez, ele disse que gostaria de me ver debatendo com ufólogos porque eu teria "matéria prima para bater e socar" todos eles sem sofrer um arranhão, e até me apoiaria na contenda. Nesse ponto ele tem toda a razão, porém, ao dizer que se do outro lado houver pilotos, operadores de radar, militares, essa gente toda, eu serei “massacrado”. Ele está redondamente enganado, e no melhor estilo “valentão de rua” eu chamaria todos para a briga, e podem cerrar fileiras astronautas, físicos, engenheiros, o diabo. Ele disse que eu deveria ser menos arrogante e mais humilde, e deixar de lado essa “vaidade intelectual”. Agora errou feio. Não há soberba alguma, o que há é muita segurança na fundamentação dos argumentos.


Penso que é possível desatar o nó dessa discórdia. A certa altura da conversa ele escreveu uma frase absolutamente correta, certeira, ainda que para outro assunto do seu domínio. Ele queria dizer que eu não poderia contradizê-lo porque “Pra entender (...) tem que estudar a complexidade da época”. Bingo! Ele acertou na mosca. Na réplica, sublinhei suas palavras, pedi que atentasse ao que havia escrito e arrematei: “Ora, pois foi exatamente o que fiz com a Ufologia." Acho que ele não gostou de provar do próprio veneno. Como costuma fazer quando se sente acuado, esquivou e não voltou a falar de Ufologia.

Fiquei pensando nesse diálogo. Por conta dessas divergências cascudas, ele não leu nem vai ler meus livros e não acompanha este blog, portanto, está fora do perímetro de contestação, sem capital para entabular qualquer discussão porque não tem a menor noção do que venho falando todos esses anos. Sua declarada recusa dessa leitura é sintomática, característica daqueles que temem ser confrontados diante da fragilidade de suas crenças. Então, apela para a casuística como se eu mão fosse do ramo e não a conhecesse. Seu universo literário está circunscrito às obras ufológicas e outras mais específicas – budismo, astrologia, espiritualidade em geral, ou seja, um universo finito e limitante. Essa é a vantagem do livre pensador, ter arsenal variado e munição de sobral. Acredite, não serei massacrado por ninguém. Sabe por quê? Porque tenho boas razões para isso. Muito resumidamente, vamos a algumas elas:

Primeira, não estou nem um pouco interessado em pelejar com patentes menores da Aeronáutica, dos Fuzileiros Navais ou da Armada russa. Se os conhecimentos técnicos são indiscutíveis nas áreas que atuam, o entendimento sobre o fenômeno Óvni é precário, restrito e episódico, portanto praticamente nulo. O debate nem começaria.

Segunda, quem manda mesmo nesses departamentos - o primeiro escalão, sabe do que estou falando e sabe que tenho razão, mas, é compreensível, por motivos óbvios e conveniência, tem que manter o statu quo¹Isso inclui assumir atitudes ambíguas e dissimuladas, ter centenas, talvez milhares, de relatórios tarjados de "confidencial", "secreto", "ultra-secreto" mas totalmente inúteis, porque não passam de depoimentos comuns, sem absolutamente nada de extraordinário. The show must go on...

Terceira, não sou um tolo inseminado pelas narrativas fantásticas de 'Arquivo X' nem pela gramática verossímil da ficção científica, muito menos pela paranoia das teorias conspiratórias de silêncio e outros desvarios. Repudio as  pseudos sociedades 'secretas', as escolas iniciáticas e a cultura do ocultismo. Não me vergo a credos, doutrinas, filosofias, religiões, escrituras, demiurgos, avatares, seitas e outros grupelhos. Minha consciência é livre para pensar por seus próprios méritos.

Quarta, não é problema meu se crédulos no cio endossam excitados qualquer relato, da autoridade ao roceiro, como testemunhos críveis da verdade. A casuística ufológica é natimorta. É exatamente isso que você leu. A análise fria e honesta mostra que todo evento alegadamente ufológico está morto antes de nascer, ou seja, todos acolhem uma explicação bastante razoável fora da moldura ufológica, sem exceção. Lamento que, encabrestados, só olhem para a cenoura e não ampliem seus horizontes culturais. Estão, em larga maioria, na vala comum da mediocridade. Minha saúde mental me põe a salvo de ficar feito sonso à caça de disco voador ou invocar ETs imaginários, já bastam os siderados de carteirinha.

Quinta, enquanto trago à luz a gênese do problema pelo esforço intelectivo e processo investigativo, outros se divertem com as sombras, a caverna alberga todos. Enquanto se lambuzam com belos frutos de sabor duvidoso, eu depuro as raízes. Em outras palavras, são as causas que precedem e determinam os efeitos, não o contrário. Não é a casa pronta que me interessa, mas de onde vem a areia que a levanta. Essa é a tinta que reescreve a história - para entender o nascedouro do problema, tem que conhecer a complexidade da época, como dizia Jung, o Zeitgeist - o espírito do tempo.

Sexta, não me amparo em fantasmagorias ou idealidades metafísicas alucinantes e alienantes. Não professo um diletantismo ficcional. Não tropeço em divagações teóricas frouxas. Não brinco de fazer ciência. Não me alimento de utopias, mas de saberes, sem medo de engasgar com a verdade. Não estou só. Confiança, razão, fundamentação, legitimidade, coragem, segurança e solidez. E retaguarda, altamente qualificada. Não pretendo convencer ninguém, mas uma coisa é certa, quem se abrigar sob o meu guarda-chuva não irá se molhar. 

Não haverá massacre algum. 

O título foi extraído de um trecho do Soneto III-96 de Bruno Tolentino, bastante apropriado: ...e a vida inteira fui assim, cacto insolente a situar-se onde o deserto empalidece. (A Imitação do Amanhecer, Globo, 2006).

¹ Statu quo - sem o 's' final é a grafia correta da expressão latina.

sábado, 12 de novembro de 2016


Tambores batem, bonecos dançam

carlosalbertoreis51@gmail.com



Não foram poucas as vezes em que, no passado, critiquei com veemência e com razão a falta de metodologia da pesquisa ufológica e de outros quesitos, mas, principalmente, a paralisia esclerosante das matérias de estudo. Na esteira das críticas, que não pouparam ninguém, desembarcaram desafetos, inimizades, discussões vulcânicas e imprecações. Como era certo que não haveria mudança, e já completamente deslocado de um ambiente infectado de histeria mística e surdez crônica, decidi me afastar. Isso foi há 25 anos.

Meses atrás, fui sondado para participar de um evento de Ufologia que ocorre anualmente na simpática Curitiba, que recusei. Recentemente, dei uma espiada nos temas que foram apresentados. Um déjà-vu! Nada de novo, a lenga-lenda de sempre, a mesma enrolação para o mesmo público de outros carnavais. Intrigado, fui verificar programações de eventos dos últimos 30 anos, aleatoriamente. O que encontrei? As aberrações continuam a pleno vapor.

Num primeiro momento pensei em trazer algumas dessas apresentações, mas a lista é tão grande que desisti antes de começar, porque eram tão inacreditavelmente bizarras que não valeria a pena deter-me na prospecção. Com pequenas variações aqui e ali, os assuntos se repetem: mensagens extraterrestres, profecias, revelações, espiritualidade, curas espirituais, verdades ocultas, contato iminente, círculos ingleses (no Brasil. agroglifos), etc. Optei por apenas comentar sobre os temas do evento recente. Tire as crianças da sala. Temas inadequados para mentes lúcidas.

"Compreendendo o significado dos agroglifos"; "Agroglifos: investigação de campo e interpretação simbólica". "Agroglifos: janelas para uma percepção do Universo"; "A sociologia do fenômeno dos agroglifos brasileiros". Eis aí uma das coisas mais estúpidas já vistas em Ufologia, figuras bonitinhas totalmente idiotas sulcadas na terra. E tem quem ache significado, decifre seu 'simbolismo' e sua 'sociologia'! Entre delinquência e indecência, fico com ambas, uma farsa grotesca de ambos as partes. Você acha mesmo que os ETs - supondo que existam - viajariam centenas de bilhões de quilômetros só para desenhar unas bolachas ridículas para que humanos mais patéticos ainda se ocupassem delas? Não me são assim tão inteligentes. Estou falando dos aliens, porque estes humanos não são de jeito nenhum.




"O xamanismo revela que os aliens se interessam pela criatividade humana". Que ligação pode haver entre xamanismo e alienígenas? Nenhuma! Xamanismo não passa de prática mágico-religiosa primitiva próxima de um surto alucinatório. Na minha terra isso tem nome: picaretagem. "Conexões extraordinárias entre esta e outras humanidades". Outras humanidades? Existem outros humanos além-Terra? Estamos diante de caso psiquiátrico. "Intervenções extraterrestres em tratamentos espirituais". Impressiona a mixórdia de assuntos tão díspares entre si como ciência, espiritualidade, física, espiritismo, pajelança, sem falar do descaramento de quem os expõe em público de forma tão irresponsável. E tem gente que paga para se extasiar com esse charlatanismo próprio de mentalidades culturalmente subdesenvolvidas. 




Mas o absurdo atinge o auge com um viés herético em “O iminente contato ufológico – a chegada do mestre Jesus”. A figura maior do cristianismo tem sido desrespeitada sem o menor constrangimento. Dedicamos um capítulo em Desconstrução para falar de um personagem caricato que trombeteou o "retorno de Jesus", Jan Val Ellam. Segundo "mensagens" que alega ter recebido de seus "mentores", ele anunciou de forma bombástica que centenas de naves se aproximariam da Terra para uma grande, incontestável e inequívoca manifestação, tendo Jesus em destaque como autêntica autoridade celeste em seu apoteótico regresso. Esse reencontro extraordinário deveria ocorrer entre novembro de 2006 e abril de 2007. Tem quem pegou senha e está na fila até hoje. E olhe que nem vou falar de Ashtar Sheran, auto-nomeado "líder supremo e comandante da frota extraplanetária da Confederação Intergaláctica da Grande Fraternidade Branca Universal", encarregado de trazer Jesus para o seu esplendoroso retorno à Terra. Pare de rir e continue lendo.



Mas não resisti, e pincei algumas pérolas de 10 anos atrás*. A sanha esotérica não tem fim: "A Super Onda Galáctica". O que é isso? “Hierarquias interplanetárias do sétimo reino – uma abordagem amasófica sobre a creatura humana numa perspectiva cósmica”.  Sétimo Reino? Estão se excedendo no Santo DaimeEssa é mais uma tramoia doutrinária saída de uma mente doentia, a mesma que um dia delirou com o Projeto Alvorada e, como não vingou, saiu-se com o Projeto Aurora. Amasófica? Uma impostura intelectual sedutoramente cavilosa sobre um tal "conhecimento de natureza psico-mediúnica ou sensitiva, de origem atrelada a uma equipe de inteligências físicas e hiperfísicas". Sintomas de um estado demencial preocupante.

Para encerrar, um pequeno pacote desse caótico carnaval da alma o qual nem vou comentar: “A Canalização e o Processo Mediúnico na Comunicação com os Visitantes das Estrelas”; “Encontros Programados com nossos Irmãos Cósmicos”; “Segredos da Lança Sagrada - discos voadores e nazistas na América do Sul”; “Ufologia trilógica: o que falta para o contato?”; “Reptilianos – uma raça secreta no planeta Terra”. Minha visão desse espetáculo deplorável não tem rodeios: de um lado, alienados feito zumbis à procura da mística perdida e, de outro, bonecos de mamulengo que dançam conforme batem os tambores. 


* Congresso Brasileiro de Ufologia Científica/Diálogos com o Universo (Curitiba, 2006)

sábado, 5 de novembro de 2016


"Subir aos céus" é sonhar desde sempre


Desde que o homem tomou consciência de si e do mundo, ele olha para o céu com sentimento de reverência, medo, perplexidade e incontido desejo de voar como os pássaros para alcançá-lo, tocar as estrelas, ir além das fronteiras terrenas. A palavra 'ascensão' contém vários significados, seja no campo político, cultural, místico, social, histórico, etc., mas é um tema mítico por excelência. O que nos interessa é entendê-la do ponto de vista filosófico e trazer a discussão para o terreno ufológico. Importa saber também que é um sonho vivido intensamente ainda hoje: a exploração espacial não é apenas a busca por novos mundos; é, em última instância, a busca de Deus. Ou deuses.

Vejamos algumas considerações clássicas sobre a ascensão, começando por Eliade: "Aquele que se eleva subindo a escadaria de um santuário ou a escada ritual que conduz ao céu, deixa então de ser homem; de uma maneira ou de outra, e passa a fazer parte da condição divina." Passa a fazer parte da condição divina. Pegou? Ele refere ainda que dentro da experiência extática, está-se falando de imagens da transcendência e de liberdade dentro de uma visão mística e metafísica: "Com efeito, o simbolismo da ascensão significa sempre o rebentamento de uma situação 'petrificada', a ruptura de nível que torna possível a passagem para um outro modo de ser; no final das contas, a liberdade de se 'mover', isto é, de mudar de situação, de abolir um sistema de condicionamento." Pegou essa também?

Gilbert Durand, outro nome corriqueiro aqui, segue o mesmo discurso: "Os símbolos ascensionais aparecem-nos marcados pela preocupação da reconquista de uma potência perdida, de um tônus degradado pela queda. Essa reconquista pode manifestar-se de três maneiras muito próximas, ligadas por numerosos símbolos ambíguos e intermediários: pode ser ascensão rumo a um espaço metafísico, para além do tempo; Poder-se-ia dizer que neste estádio há conquista de uma segurança metafísica e olímpica. Pode manifestar-se, por outro lado, em imagens fulgurantes, sustentadas pelo símbolo da asa e da flecha, e a imaginação tinge-se, então, de um matiz ascético que faz do esquema do vôo rápido o protótipo de uma sublimação da carne e o elemento fundamental de uma meditação da pureza." Segundo ele, a ascensão está ligada aos arquétipos da luz e ao simbolismo simétrico da fuga diante do tempo ou da vitória sobre o destino e a morte. Essa citação é só uma amostra, daí você pode depreender a profundidade da questão. Como habitualmente faço, o itálico é destaque meu.

É evidente que, não contentes com o que somos, desejamos ir além da nossa natureza porque, de alguma forma, lá bem no fundo d'alma, não queremos admitir nossa insuficiência, nossa pequenez, nossa precariedade e nossa debilidade, então buscamos, desesperadamente, em tom mesmo de súplica, a condição de 'super-homem', essa criatura encravada no imaginário - tradução ficcional dos nossos delírios - que deflagra um aluvião de idealidades. Esse super-homem carrega o signo da totalidade, da completude, da imortalidade do ser. Do ser que gostaríamos de ser.

Agora me acompanhe, bem de perto.

O repertório ufológico enfileira depoimentos de gente que alega ter estado a bordo dos discos, viajado espaço afora, conversado com alienígenas, passado por exames físicos e até a aberração de ter copulado com criaturas do sexo oposto! Se as abduções também são muitas, as alucinações não ficam atrás. Em parte substancial dos casos, os contatados/abduzidos dizem ter sido (e)levados ao interior das naves por um facho de luz ou levitado até entrar na nave. Seria o 'voo mágico' de que fala Eliade, mencionado em post anterior?² Em certo sentido, sim. Comentando as experiência de ascensão, "Podemos concluir que estamos perante expressões não históricas de um mesmo simbolismo arquetípico que se manifesta de maneira coerente e sistemática tanto no plano do inconsciente (sonho, alucinação, sonho acordado) como nos do transconsciente¹ e do consciente (visão estética, rituais, mitologia)."

Além do aspecto mitológico, é indispensável destacar o plano religioso no qual ascensão voo mágico estão inscritos. É Eliade novamente: "É claro que todas estas 'formas' [de manifestação] não são espontâneas nem dependem diretamente do arquétipo ideal; muitas são 'históricas', no sentido de serem o resultado da evolução ou da imitação de uma forma já existente." Eu poderia elencar muitos outros autores,  interpretações e definições sobre o tema, mas você já percebeu aonde quero chegar.

O fato é, como tenho procurado mostrar através dos meus textos, que o "disco voador" e todo o seu aparato é mais um bote salva-vidas para o homem tentar sobreviver a esse maremoto de sentimentos, conflitos, tensões, delírios, temores, contradições, lamúrias, demônios, frustrações, esperanças, recalques, fracassos, dores e incertezas que é a sua vida. Tem mais, quer? Ele sabe que não sobreviverá, mas sublima ou finge não saber porque não está preparado para enfrentar o mundo real das coisas, preferindo navegar por águas plácidas da ilha da fantasia aninhada e acalentada no imaginário. Ascender aos céus, tocar as estrelas, encontrar os deuses, ser um 'escolhido' são formas particulares de fugir dessa realidade opressora em busca do eldorado, da 'igualdade divina', da re-ligação com os planos superiores.

Sendo você ou não um desses ilusionautas, um extrato do pensamento de Nietzsche pode ser tomado como um roteiro de vida. Esqueça o super-homem da ficção, seja você um na vida real: Viva a vida na vida, sem depender de muletas metafísicas. O real lhe basta, ele é suficiente para mostrar a beleza do mundo tal como o mundo é, sem a presença de artifícios e construções transcendentes imaginárias. Acredite apenas na eternidade do instante vivido, na alegria e na singularidade do instante vivido, porque depois dele virá outro e outro e mais outro, num eterno retorno. Seja você em você mesmo no máximo de suas potencialidades. Tenha em mente que esse mundo do real é para poucos, para aqueles que dançam à beira do abismo e que quando forem cair, caem cantando.

¹ "O mais alto grau da consciência, que permite ao homo religiosus unificar os diferentes níveis de manifestação, quer dizer, 'realizar a plenitude', 'viver o universal'." (in ALLEN, Douglas. Mircea Eliade y el fenomeno religioso. Ediciones Cristandad, Madrid, p. 234, 1985.
² "Não se muda o passado... "- 17/09/2016

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ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Martins Fontes. 1992.
___________. Imagens e Símbolos. Arcádia, 1979.
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Nova Fronteira, 1964.
LÉCI-STRAUSS. Claude. O Olhar Distanciado. Edições 70, 1986.
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Palas Atena, 1990.
ARMSTRONG, Karen. Breve História do Mito. Cia. das Letras, 2005.
CAMPBELL, Joseph. O Vôo do Pássaro Selvagem. Rosa dos Ventos, 1997.


sábado, 29 de outubro de 2016


Praia é abatedouro de filósofos

carlosalbertoreis51@gmail.com



Como anunciei semana passada, vou filosofar mais um pouco, agora levado também por um debate com um amigo, amizade essa a completar quatro décadas de boas histórias vividas no interesse comum, a ufologia. Mas seguimos rumos distintos, e algumas diferenças se acentuaram e se crisparam nos últimos anos. “Amigos, amigos, crenças à parte”. Intactos o respeito e o carinho.

Ele se tornou um astrólogo conhecido na cidade em que se estabeleceu, abraçando o Budismo e o Yoga, além de seguir nos estudos da Antroposofia de Rudolf Steiner e na Teosofia de Madame Blavatsky. Como se depreende, seu universo é o da metafísica, da 'transcendência', do 'oculto', do conhecimento 'superior', dos agentes externos que movem os fios da vida dos mortais. Curioso é ele dizer que “Não existe ‘lá fora’, o caminho é dentro”. Como explicaria suas crenças no lá fora? Vamos analisar um pouco essa questão. Peço desculpas, mas desta vez não deu para poupá-lo de uma leitura mais extensa. Acho que vale a pena.

Em dado momento, a conversa gerou mais calor que luz. Ao contrário dele, eu não me filio a nenhuma doutrina, religião ou sistema filosófico; sou, por assim dizer, livre-pensador. Tenho na Filosofia uma ferramenta de aprendizado através das leituras, aulas, reflexões, cursos, na polifonia discursiva dos melhores, dialogando ora com Platão, ora com Spinoza, ora com Kant, ora com Montaigne, entre muitos. Isso dá liberdade de escolha, de movimento e ausência de dogmas. Admiro todos, mas não rezo a missa de nenhum. Questiono não para contestar, mas para encontrar outras formas de entendimento. É assim que a coisa funciona porque é assim que deve funcionar.

Na sala de aula, quando o aluno levanta a mão e pergunta "- Professor, por que tal coisa é assim?", nenhum mestre em sã consciência dirá “porque sim”; ao contrário, dará ao aluno todos os instrumentos, inclusive fora da matéria central, para que ele encontre a resposta e compreenda a lógica do problema. 

Eis um dos pontos nevrálgicos da discussão: Toda doutrina tem todas as respostas porque todas as perguntas já estão pontas lá dentro. Todo sistema doutrinário se retroalimenta, numa estrutura fechada que não abre para o contraditório. Toda doutrina solapa a individualidade do sujeito. A vida que vale por ela mesma é a vida soberana. O contrário é servidão voluntária.

Já a Filosofia propõe contradições, complementares e antagônicas; pergunta e não responde, não traz soluções nem fórmulas prontas, não centraliza, não radicaliza nem escraviza. Não facilita, não se põe intramuros, não te deixa refém de qualquer certeza, não te torna heterônomo, mas autônomo, ao oferecer meios para raciocinar, questionar, duvidar, indagar, deliberar. E, certamente o mais importante, aguça o senso crítico. Em última análise, é diálogo permanente consigo mesmo para plateia de um único ouvinte. Sem direito a aplauso.

Vejamos o budismo, por exemplo. Segundo Abbagnano, uma “Doutrina religiosa e filosófica que se originou dos ensinamentos de Gautama Buda”. Doctrina, do latim – conjunto de regras, princípios ou instruções que servem de base a um dado sistema de ensinamentos. Regras existem para serem obedecidas, instruções existem para serem seguidas, logo, alguém deve se submeter a elas. Ao bater o sino, não pergunte, ajoelhe e reze é a liturgia nuclear de qualquer doutrina. Sobre Buda, Eliade destaca que "Na língua páli e em sânscrito significa 'iluminado', sendo, muito provavelmente, um personagem histórico, e no plano mitológico, o protótipo do homem divino”. 

Um momento emblemático e surpreendente daquele embate se deu quando, ao citar alguns dos principais filósofos das minhas leituras, meu amigo saiu-se com esta pérola: “Todos eles morreram na praia” e “Todos ficaram na esfera do conhecimento, segundo Steiner". Morreram na praia significa que não chegaram aonde queriam chegar. Aonde queriam chegar? Queriam chegar? Os filósofos abatidos são Descartes, Voltaire, Spinoza, Engel, Hume, Platão, Pascal, Rousseau... 

Para este amigo, se entendi bem, seus mestres Buddha, Krishna, Thomas Merton, Krishnamurti, Alan Watts estão fora da esfera do conhecimento? Foram além da praia? Filósofos morrem, mestres e deuses não. Nietzsche deve estar se debatendo no túmulo. Meu amigo ignora a esfera do conhecimento, preferindo a "intraduzível experiência da totalidade dos sábios", que diz alcançar sempre que esvazia a mente quando medita. Pergunto: como sabe que a sua 'totalidade' é a mesma do sábio? Como saber o que é totalidade? Só porque é "intraduzível" ficaremos a ver navios? Muito conveniente eximir-se de explicações. Clássica zona de conforto. 

O que não entendi também foi ele ter postado, após o debate, a seguinte frase: "Procure as respostas para as questões eternas e essenciais sobre a vida e a morte, mas prepare-se para não encontrá-las. Usufrua da busca". Deduzo que ele concorda com esse pensamento, mas, então, só a experiência intraduzível da totalidade é que vale, não morre na praia? A frase de Morris Schwartz é exatamente o que tenho dito aqui o tempo todo - o percurso é mais enriquecedor que o objeto da procura, até porque nunca teremos a certeza de termos encontrado as respostas certas porque nem saberemos se fizemos as perguntas certas.

Confesso ter dificuldades para entender como é possível passar algum ensinamento adiante sem o conhecimento daquilo que se propõe ensinar. Como explicar as bases, a origem, os fundamentos de tais ensinamentos? É assim porque assim é? É um saber meramente contemplativo, um insight dado pela Providência? O mundo não se explica pelo transcendente nem pelo imponderável, aliás, não se explica nem por ele mesmo, se explica pelo que fazemos dele com o que fazemos de nós. Eis a chave!

Aí está, meu caro amigo, minha querida leitora, exatamente aí reside a grande questão da relação entre nós, e entre nós e o mundo. Não há nada fora do mundo que nos diga respeito. As divindades fazem parte das mitologias, contam histórias sobre a criação do mundo para nos dizer quem somos, mas não interferem em nossas vidas. Nós criamos os deuses por medo de viver, por não suportamos a dor, porque somos fracos, infantis e despreparados para o mundo, por isso estamos sempre em busca da 'salvação divina'. Não são os deuses que devem nos dizer o que devemos fazer. Isso é subserviência, covardia, omissão diante de nossas próprias responsabilidades. Não se deve imputar aos deuses, aos "iluminados", aos demiurgos as causas e os efeitos de nossas ações. A vida é uma só, sem ensaio, sem volta, sem segunda chance, portanto, tenha dignidade e coragem de assumir o seu controle. Conciliação com o mundo. Os deuses agradecem, porque estão fartos de aturar tanta imaturidade.

Se a espécie humana é a única presenteada com a faculdade do cogito, a única a ter consciência de si e a única capaz de traçar seu próprio caminho, ora, justamente no momento de usar esse dom especialíssimo, esvazia a mente, como faz meu meditativo amigo? Prometeu pagou com o próprio fígado por roubar o fogo dos deuses - o logos - para que você não morra de fome nem sirva de alimento ao primeiro leão, e você retribui a dádiva com desprezo, desocupando a mente? Sem a razão, não temos como compensar a nossa total fragilidade. Não poupo ninguém: acreditar no além. em anjos, deuses e fadas, tudo bem, mas se for evacuar a mente, por favor, fique por lá, no vazio, vagando no sertão mental, o mundo não dará pela sua falta. O mundo precisa é de mentes intrépidas, férteis, volitivas, dinâmicas, e não de mentes frouxas, improdutivas e acanhadas, que giram como birutas de aeroporto na direção dos ventos a favor, só dos ventos a favor.

Se o entendimento entre os homens não se der pela esfera do conhecimento, não o será pela via da contemplação e menos ainda pela fé mística. É chique falar que o real é ilusão da mente ou que “a mente assassina o real”. Pode ser, mas apenas como exercício filosófico, não para aplicação prática, não para a busca do saber, não para a compreensão do mundo. Usando a metáfora praiana, o litoral do conhecimento é vasto, mas o oceano da ignorância é muito maior. Já o disse aqui: sejamos gratos aos provocadores, aos desbravadores, aos inquietos, enfim, àqueles que vivem atormentados pela dúvida, porque são eles que nos colocam em ação. Segundo meu caro amigo astrólogo, questiono porque é da minha "dupla natureza geminiana". Fico aqui pensando se piscianos, cancerianos, taurinos também não questionam.  Rezam em silêncio quando bate o sino?

Com toda franqueza (de novo), a crença discipular de que o verdadeiro saber vem de inspiração divina é de extrema fragilidade; é se colocar vulnerável aos influxos de ministérios ungidos por forças cósmicas, supranaturais, transcendentais. Sendo mais direto, é negar a realidade, é acovardar-se ante os desafios, as agruras, as adversidades e os fracassos do cotidiano. É escamotear medos e fraquezas, é esquivar-se do enfrentamento do mundo. Quanto maior a inadaptação ao mundo real dos fatos e das coisas, tanto maior as idealidades escapistas e as rotas de fuga. Alienação. Viver o mundo é fardo pesado, contemplar o mundo é "pegar leve". Esvaziar a mente é paz fugaz, pensar o mundo é angústia permanente. Pergunto: se o real é ilusão da mente, esvaziar a mente não seria também uma ilusão? O vazio não faz parte do real? Fico com Aristóteles, outro que sucumbiu na areia: “O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete”.

Tomara que você tenha percebido ironias sutis nas entrelinhas.


Thomas Merton - monge trapista, escritor sobre espiritualidade.
Alan Watts - teólogo, especialista em filosofias orientais.
Jiddu Krishnamurti - Filósofo e educador indiano.
Krishna - uma das divindades mais cultuada do panteão hindu.
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ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de FilosofiaMartins Fontes, 2007.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ática, 2011.
ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das Religiões. Don Quixote, Lisboa, 1993. 
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. UNESP, 2009.
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Bertrand Brasil, 2005.