Obras

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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

VIAGEM QUÂNTICA

Como você sabe, não posso condescender nem calar ante pilantras que abusam da fé alheia com suas atividades espúrias. Todo charlatão tem duas caras, e a que se oculta por trás de uma máscara de falsa polidez e erudição acaba sendo revelada, mais cedo ou mais tarde, seja um Nobel, PhD, celebridade ou qualquer um de reputação duvidosa. São os mercadores de ilusão. Falar asneira qualquer um fala, passar a limpo, poucos. Texto caudaloso hoje.

Um dos recursos que o velhaco utiliza é o falso saber, mas a estratégia mais adotada é saber o que o outro desconhece - o saber “oculto ” -, usando uma oratória fluente, terminologia científica, argumento de autoridade e o clássico “não precisa acreditar em mim, pesquise e conclua por si mesmo”. Costuma funcionar, até porque a facilidade de acesso ao conhecimento faz com que se propague um volume muito grande de dados falsos cheios de termos científicos sem o necessário filtro. Tem, também, o infalível “cientificamente comprovado”, que induz a se aceitar acriticamente conceitos errados. Desse modo, está “cientificamente comprovado” que a Terra é plana, que discos voadores são reais, que a física quântica “comprova” a existência de deus, da vida após a morte, da alma, de espíritos e da expansão da consciência ao nível cósmico. Uau! 

O comércio espiritual busca, através da apropriação dos saberes da ciência, legitimar a eficácia e dar credibilidade ao “produto”: de colchões bioquânticos que garantem curar problemas de coluna a “terapias vibracionais” no combate ao câncer, sem quaisquer evidências cientificamente reconhecidas. As farsas místicas crescem no mundo causando estragos irreparáveis ao subverter a verdadeira ciência. A física quântica não dá nenhum respaldo à mística e à metafísica, contrariando os esotéricos, posto que se restringe unicamente ao estudo de moléculas, átomos e partículas subatômicas. Qualquer coisa que se diga ou faça fora disso é ilação, fantasia ou charlatanice.

O desconhecimento sobre física (ou mecânica) quântica por parte do público leigo colabora para a difusão de falsas ideias. Os conceitos da física quântica se aplicam exclusivamente ao microcosmo atômico e não ao macrocosmo em que vivemos, embora estejam presentes em algumas tecnologias, como ressonância magnética, GPS, radioterapia e, a caminho, computação.

Tudo o que se diz sobre as implicações religiosas das ideias quânticas se ancora no discurso do físico e guru indiano Amit Goswami, que propõe uma conexão falaciosa entre ciência e espiritualidade - um abismo intransponível. Esse é um filão habilmente explorado por cientistas, filósofos, sacerdotes, místicos e picaretas da auto-ajuda, que surfam na onda new age quântica no intuito de dar cunho científico às suas crenças e, no mais das vezes, vitalizar a conta bancária gerindo uma rede privada de membros pagantes (câmara de eco) nos moldes de uma seita pseudo científico-espiritualista onde tudo se confunde: espíritos, alimentação natural, ufologia, espiritualidade, alma, outras dimensões, terapias alternativas, paranormalidade, mestres, mentalização, energias cósmicas e, claro, física quântica.

Em seu livro Quantum Gods, o físico americano Victor Stenger põe abaixo o castelo da mistificação desenfreada conduzida por personalidades incensadas como Fritjof Capra, David Bohm, Deepak Chopra, Maharishi Yogi e o próprio Goswami, entre outros. Suas obras abarrotam as prateleiras do misticismo espiritual, religião e auto-ajuda, mas execradas no círculo científico. Dados compilados na Web Science mostram que, de 1986 a 2016, Amit publicou somente 9 artigos, com 46 citações, a maioria dele mesmo ou de seus colaboradores. Ele e companhia aderiram oportunística e levianamente à corrente de pensamento esotérica dos anos 70 e descambaram para a mistificação científica e a espiritualidade trapaceira. “Viajam” pelo mundo participando de congressos de felicidade e prosperidade”, dividindo espaço com impostores como o conhecido falso guru brasileiro Sri Prem Baba². Goswami e sua turma fizeram escola. O astrofísico Marcelo Gleiser, por exemplo, admite ter se interessado pela física influenciado por Capra. Hoje, militantes misticóides fanáticos usam os canais digitais como coaches quânticos vendendo sua vigarice explícita, onde a impostura intelectual é flagrante.


Nenhuma seita se reconhece como tal, pois isso seria agir contra o próprio patrimônio, obcecada que é pelo poder de manipular e controlar seu cardume ao estabelecer as suas verdades. Seita, do latim secta - partido, causa, grupo, fileira, tem relação com os verbos sequi - seguir, ir atrás, e secare - cortar, recortar, separar. É o que uma seita faz, recortar uma doutrina e arrebanhar adeptos com perfil identitário homogêneo e afinidade ideológica. Toda seita é um monumento à estupidez onde o arauto dos novos paradigmas, o“novo sacerdote” midiático se caracteriza pelo comportamento narcísico deprimente de auto-promoção e culto à imagem, desequilíbrio psíquico, despreparo  cultural, incapacidade crítica, delinquência espiritual, crise de sentido, anacronismo, fuga da realidade, falta de ética, respeito, responsabilidade e vergonha na cara. Para o sociólogo Leon Festinger, toda seita revela falha de raciocínio lógico, inversão de valores, resistência à contestação e busca de afirmação, que ele chamou de dissonância cognitiva. Umberto Eco vê a new age, berço das seitas como
Uma religiosidade do inconsciente, de turbilhão da ausência do centro, da diferença, da alteridade absoluta ou do abismo, que tem atravessado o pensamento moderno como contrafiguras subterrâneas das inseguranças produzidas pelas ideologias obscurantistas do progresso e do jogo cíclico das crises econômicas (citado por Cueto, p. 11).
O físico Thomas Kuhn define paradigmas como “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (p. 19). Essa definição tornou-se uma espécie de guia para rotular quaisquer novas proposições da ciência como novos paradigmas. Por exemplo, opõe-se à teoria evolucionista de Darwin um “novo paradigma”, a teoria do design inteligente, versão mais elaborada do criacionismo. Os tais novos paradigmas caducaram há muito tempo. Pior  é quando um paradigma se torna um paradogma claustrofóbico asfixiante. 

Quando um novo paradigma sequer é considerado pela comunidade científica, seu autor se coloca como vítima do sistema e alvo de complô, repudia o descrédito das instituições e acusa os colegas de inveja. Muitos dos nomes citados se consideram “ativistas quânticos”, conciliadores, construtores de pontes entre ciência e religião. A espiritualidade, a transcendência por si não se justificam e forçam a barra para que conceitos científicos “oficializem” seus argumentos. O espiritismo, por exemplo, alega possuir “provas científicas” da presença de entes “do além” no mundo físico, mas não as tem e nem poderia. Outras linhas defendem a comprovação irrefutável de telepatia, premonição, vidência, ou da ação dos astros e cartas na vida do sujeito. Mais uma falácia travestida de ciência. É prudente duvidar da honestidade e do caráter daqueles que prometem soluções mágicas para problemas complexos, ainda mais quando ostentam títulos honrosos. Para isso existe a Patafísica, a ciência das soluções imaginárias. O colegiado científico abomina práticas e doutrinas consideradas exóticas e contrárias aos princípios éticos. Quem não abomina?

Qualquer livro, artigo ou meio que trate de misticismo, paranormalidade, expansão da consciência e terapias espirituais, que tenham como base argumentativa científica a física quântica, deve ser visto com desconfiança e ceticismo. Um exemplo é a obra do indiano Deepak Chopra, Corpo sem Idade, Mente sem Fronteiras: A alternativa quântica para o envelhecimento, onde afirma que doença e envelhecimento são uma ilusão, porque a mecânica quântica mostrou que “o o mundo físico é uma criação do observador”. Nessa senda, Goswami, em O Universo Autoconsciente: Como a consciência cria o mundo material, defende que os fenômenos paranormais, como a percepção extra-sensorial, são apoiados pela mecânica quântica¹:
.. os fenômenos psíquicos, como a visão distante e as experiências extracorpóreas, são exemplos da operação não-local da consciência (...) A mecânica quântica sustenta essa teoria, fornecendo suporte crucial para o caso da não-localidade da consciência (p. 335).
Cabe esclarecer que o fundamento das afirmações sobre o modelo quântico é atribuído à chamada dualidade de onda-partícula da física quântica, a saber: no nível quântico, os objetos físicos parecem possuir propriedades semelhantes a partículas e a ondas, que dependem de uma dada propriedade de uma ou de outra. Ao medirmos o comprimento da onda, ela age como partícula. Ao medirmos a velocidade ou a posição da partícula, ela age como onda. Após um século de estudos, a aplicação metafísica do modelo quântico ainda é extremamente controversa. A Interpretação de Copenhague (1930) promulgada por Niels Bohr é consensualmente aceita como convenção, e não há qualquer nota sobre consciência. Entretanto, segundo Stenger, a redação inadequada dos termos desse protocolo permitiu inferências logicamente falaciosas de que o elétron não existe como partícula real e localizada até a realização de um ato consciente de medição.   

Em 1952, David Bohm propôs uma teoria sub-quântica que previa partículas seguindo caminhos definidos com efeitos quânticos resultantes de forças que se encontram abaixo dos atuais níveis de observação, contudo, nunca foram encontradas evidências dessas forças sub-quânticas. O agente d“viagens” quânticas tem roteiro variado: cura quântica, consciência quântica, exercícios quânticos, mentalização quântica, energia quântica, e na alimentação quântica o item mais consumido é maionese. Isso mostra porque o ser humano continua preferindo o mundo da magia, do 'sagrado', do mistério, da mística e da fantasia, ao invés de mirar os olhos para o mundo da razão que a ciência não cansa de prover. 

¹ Time Higher Education Suplement5/01/2001.
² Congresso Internacional: Felicidade, Prosperidade, Abundância e Física Quântica. Curitiba, nov/2016.
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Victor J. Stenger, Quantum Gos. Prometheus Books. 1997.
Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, Perspectiva, 1962.
Amit Goswami, O Universo Autoconsciente, Aleph, 2015.
Allan Sokal, Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais, Record, 1999
José Magnani, Mystica Urbe, Studio Nobel, 1999.
Juuan Cueto, Mitologias de la Modernidad en el fin de siglo, Salvat, 1982.
Jean-François Mayer, Nocas Seitas, Um Novo Exame. Loyola, 1989.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020


FÁBRICA DE IGNORÂNCIA

A ignorância não tem culpa. Será que não? Essa frase da semana passada me fez pensar muito a respeito. Até que ponto realmente ela não tem culpa e não tem culpa de quê? Em primeiro lugar, quero deixar claro que “ignorância” a que me refiro - e também a frase - equivale a desconhecimento, falta de informação, de saber, inocência, e não no sentido de pejorativo de burrice, estupidez, cretinice. Todos nós temos conhecimento em muitas coisas, mas somos totalmente ignorantes em muito mais. Como diria Karl Popper, O conhecimento sobre nossa ignorância é a principal fonte da nossa ignorância”. Sei que o título do post é intrigante, como assim, “ignorância fabricada”? Vem comigo.


Saiba que há uma espécie de ignorância nefasta, venenosa, covarde e com toda a culpa no cartório. Embora sempre praticada, somente nos últimos anos tem seio estudada com mais interesse e com a devida importância. Trata-se da “ignorância estratégica”, atitude que assumiu protagonismo em tempos de fake news, neo ou pós-verdade, o que, de certa forma, não é nenhuma novidade, só ganharam mais visibilidade. O foco inicial dos estudiosos, em especial da socióloga canadense Linsey McGoey, que cunhou a expressão, foi a Saúde no Reino Undo, mas se estendeu rapidamente para economia, educação, direito, política, ciência, mídia, tecnologia, em nível global. A “ignorância estratégica” é viral e está fora de controle. Nem preciso entrar na discussão sobre a manipulação da informação - ou da ignorância - via redes sociais e mídia, temas abordados no estudo, de tão óbvio, nem da idiotizante cultura de massa e do não menos deletério senso comum, que solapam a razão. Se ignorância agrupa, inteligência isola. Se saber não tem preço, ignorar custa caro.

Em linhas gerais, a ignorância estratégica consiste na habilidade em explorar a falta de conhecimento público em busca de poder, mas vai muito além disso. Em sua recém-lançada obra, McGoey transpõe as fronteiras da indústria farmacêutica, sua primeira investida, e revela como a ignorância é arquitetada e manipulada por diferentes grupos para os mais diversos fins - políticos, jurídicos, midiáticos e nas mais influentes teorias econômicas. No coração da prática, a mentiraA mentira pertence a qualquer homem, a verdade, essa, a um só. Enquanto a mentira paira ruidosa sobre nossas cabeças ao alcance dos olhos, a verdade repousa em silêncio sob nossos pés à espera de ser encontrada pela nossa consciência. Se não for por ela, o tempo se encarrega de trazê-la à luz. Diz a autora:
Há hierarquias de ignorância e, em geral, a ignorância de pessoas simples é a mais criticada, mas eu argumento que essa hierarquia precisa ser invertida, porque é justamente entre as pessoas com maior poder que a ignorância se torna mais valiosa e com os efeitos políticos mais devastadores. Apesar de a ignorância ser universal, diferentes grupos sociais a usam de  maneiras específicas, e as pessoas com mais poder são as que mais lucram com a exploração deliberada de incertezas.
O Dicionário Oxford, em 2016, definiu a pós-verdade como “Tudo o que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais.” Agora leia com atenção o que diz McGoey: Se você olhar para a história moderna, verá vários exemplos de pessoas tentando gerar fatos alternativos ou dizendo que a realidade de alguém não é verdade para ganhar vantagens políticas. Não há nada novo na tentativa de manipular as fronteiras entre o que é real e o que não é”. Claro, o sublinhado é meu, você sabe bem do que e de quem estou falando.

Os estudos indicam ainda que há três tipos de homo ignorans: o ignorante inocente, pueril, singelo, sem instrução, que não tem ideia do que desconhece; o que sabe de que não sabe tudo, que pode ser entendido, em algum momento, como ignorância tática, ou voluntária, conveniente conforme as circunstâncias: “Não sei de nada”. E o terceiro tipo, que fabrica incertezas e dúvidas ou abusa da falta de conhecimento público intencionalmente. É aqui que mora o perigo, é aqui que o estudo - Agnotologia - ajusta sua mira, na produção de ignorância. Agnotologia é um neologismo criado em 2005 por Robert Proctor, historiador da Stanford University, aplicado a personagens que escondem ou desvirtuam informações em benefício próprio, e que estão em qualquer degrau da escala social e em qualquer função - governantes, juízes, empresários, autoridades, profissionais liberais, qualquer um. Pela gravidade dos danos, tal conduta é vista como criminosa, típica de canalhas e velhacos. Quero lembrar que, em Malebouge, a concepção infernal de Dante é democraticamente impiedosa, onde são despejados os mentirosos, os prevaricadores, os falsários: No décimo e último fosso, o mais profundo, sombrio, pestilento e fétido, para que apodreçam dementes cobertos de flagelos e dores lancinantes. Atenção novamente ao que diz a socióloga:
Muitas vezes as pessoas reclamam da falta de conhecimento sobre certos fatos, mas essa ideia de déficit cognitivo é limitada porque, geralmente, coloca a culpa da ignorância no público em geral, ou em um sistema de educação ou na falta de investimento nela, mas ainda não se estuda com profundidade a ideia de que, mesmo que você tenha acesso a toda informação, ainda assim estará social e institucionalmente numa posição de modo que não seja vantajoso buscar conhecimento.
A doutora lidera uma equipe de acadêmicos que estuda a temática nas ciências sociais, econômicas e criminais no que foi denominado Estudos da Ignorância. Em 2015 foi publicado o primeiro manual internacional sobre a matéria. De acordo com a equipe, a busca pelo conhecimento foi teorizada como a essência do ser humano, mas, apesar de parecer óbvio que as pessoas queiram ignorar fatos, a ignorância nunca foi tão estudada quanto a geração de conhecimento. A ignorância não tem medida e isso explica em parte seu poder. É terra de ninguém, todos falam o que querem e escutam só o que querem. E isso é um desafio enorme para os cientistas sociais porque eles fazem mapeamentos, anotações, estabelecem parâmetros para entender o tamanho do fenômeno, e a ignorância, por sua natureza, é o não saber. 

A ignorância planejada coloca a todos no patamar zero de racionalidade, utilizando-se da força da mídia em todas as plataformas com alcance planetário imediato, agrupando as pessoas por contágio em nichos próprios. A violência da linguagem é tão maléfica quanto a física, se não pior, porque aquela conduz a esta. Toda ignorância, em qualquer nível, coloca a fantasia no lugar da realidade. A ignorância, planejada ou não, cerceia, inibe ou mesmo desestimula a busca pelo conhecimento, gera crenças, preconceitos, superstições, paranoias e distorções e, em certo sentido, embrutece o ser e o aproxima da animalidade - seja como cordeiro ou como leão. Percebeu como este raciocínio dialoga com a réplica feita no post O ser em desconstrução? E também estabelece ligação com o texto anterior - Ferida que não fecha, sangra?

Paradoxalmente, a ignorância agrupa mas não une - o céu é o mesmo mas os horizontes não. Se é que há um, nessas circunstâncias. Em última análise, e essa é uma verdade perversa, devo dizer, o ignorante doutrinado não é, ele apenas existe, incondicional e melancolicamente, como o cordeiro ou o leão. Não havendo percepção da realidade, não há nada, só espaço e tempo, e nem eles são percebidos como tais. Pouca diferença há entre um ignoto doutrinado e seu papagaio de estimação, ambos apenas repetem o que lhes é ensinado. Enfim, cada um faz da sua vida o que bem entender e do jeito que lhe convém, afinal, ignorância não é apenas uma questão de informação, mas, antes, de formação.

Para terminar, trago de volta perguntas feitas semanas atrás: A quem interessa disseminar ignorância se ela ia é autodestruição de um povo? A quem interessa ocultar a verdade e produzir mentiras? A quem interessa o caos, o colapso, o abismo? O antídoto está na informação, no saber, no discernimento, questionamento, reflexão e percepção do mundo real. Perdoe a imodéstia, mas tudo isso você tem aqui mesmo o tempo todo. Uma última palavra, em tom de sugestão: Que tal começar a investir no conhecimento planejado? As futuras gerações agradecem.

Agnotologia: Estudo das políticas de produção de ignorância.
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Linsey McGoey, The Unknowers: How Strategic Ignorance Rules the world. Zed Books, 2019.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

FERIDA QUE NÃO FECHA, SANGRA

O assunto “aparição de Fátima” já foi discutido em A gênese das MarianofaniasA história nos bastidores é outra e O real, o simbólico e o imaginário e, indiretamente, em dezenas de posts. Seria desnecessário, portanto, retomar o debate não fosse o empenho de pesquisadores ainda encantados pelo fenômeno das “aparições marianas”, que traz outros olhares sobre a questão. Estou falando do livro Fátima: Mais além da fé (https://bookcover.pt/product/3849/), uma antologia multidisciplinar com ensaios de autores representativos no meio, sob a coordenação dos historiadores Fenando Fernandes, Joaquim Fernandes e Raul Berenguel.

Pouco mais de um século após os acontecimentos, vem a público uma nova abordagem acadêmica internacional propondo explorar novas dimensões culturais. históricas e científicas. Nas palavras de Joaquim Fernandes, a obra traduz um esforço inédito e transconfessional de analisar com a possível objetividade e de forma multidisciplinar um largo espectro de fenômenos ocorridos no decurso das 'aparições' marianas de Fátima/Cova da Iria em 1917.” E prossegue: Os devotos da religiosidade popular têm todo o direito de manifestar as suas crenças e expectativas que recuperam, afinal, um patrimônio imaterial e um fundo cultural ancestral da nossa matriz genética enquanto comunidade e mantêm vivas e persistentes as expressões de um pensamento mágico e da sua estrutura mítica profunda.

Pensamento mágico e estrutura mítica profundaOs fenômenos presenciados na ocasião alimentaram um dos mais complexos mitos ancestrais no seio da religiosidade popular católica. A obra, nesse sentido, trata de mostrar que a questão das visões ou aparições extrapolaram meras leituras leigas entre a piedade singela, a fé incondicional e a teologia apologética. Neste particular, Mariz afirma que 
As aparições têm fascinado fieis, a mídia e os pesquisadores pelo caráter apocalíptico de muitas das mensagens anunciadas pela Virgem Maria. Na maior parte dos relatos de aparições, há precisões de castigos e catástrofes que podiam ser identificadas como características de 'um fim de era'. Catástrofe, Besta Fera e Maria desempenham um papel importante nas previsões para o fim dos tempos anunciadas desde o início do Cristianismo.
De acordo com o pesquisador Chiron, a investigação canônica mantém os princípios propostos por Bento XIV na avaliação de uma aparição. Resumidamente, são eles: a) a personalidade do vidente; b) o conteúdo da aparição; c) sua natureza e forma, e d) a finalidade da aparição. Os estudiosos da Igreja consideram também o desenrolar dos eventos sob as óticas histórica, psicológica e teológica. Um desses especialistas, René Lauretin, destaca mais quatro aspectos a serem examinados: 1) A pertinência do fenômeno em relação à doutrina católica; 2) O comportamento do vidente (saúde mental, conduta moral, etc); 3) Similaridade com ocorrências anteriores reconhecidas; 4) O resultado da aparição: conversões, mobilização popular, reavivamento da fé, produção de obras e vocações. Ainda segundo Mariz,
Nossa Senhora aparece para falar dos pecados da Humanidade, cobrar a conversão e volta aos valores tradicionais. Penitência, sacrifício, oração, preocupação com a salvação eterna marcam todas aparições. Desta forma, o discurso das aparições se afasta muito do Evangelho da Prosperidade, onde a busca do sagrado traz sempre melhorias concretas para essa vida. (...) As mensagens nesses relatos como em quase todos os outros dizem mais respeito ao outro mundo, o além morte, a salvação eterna. Fala-se, por exemplo, em penitências, sacrifícios, orações pedidas pela Virgem. No relato do terceiro segredo de Fátima, a figura de um anjo com uma espada em punho gritando “Penitência, Penitência” é muito expressiva.


Por sua vez, Zimdars-Swartz afirma que “As aparições públicas nas quais um número de pessoas se reúne para observar um vidente em êxtase, parece ser, ao menos no contexto da história do cristianismo, um fenômeno peculiar dos dois últimos séculos”. Enquanto Fátima ficar circunscrita a uma única instância discursiva - a religiosa -, sua idolatria seguirá perene, intocada e imaculada, no estrito sentido da palavra. Porém, no momento em que a Ciência atinge o coração do problema em busca de respostas, o fenômeno se desestabiliza. Acrescento, para refletir, que fenômeno, fantasma, fantástico e fantasia se originam do grego phainomenon, phainein, phaintastikósphainesthain, do radical phos - resplandecer, aparecer, brilhar, iluminar, ser visto, mostrar-se, e também irreal, imaginado, ilusório.

No conjunto, Neurociências, Psicanálise, Cultura, História, ciências sociais, Mitologia, Filosofia e Semiótica, entre outras, contribuem para a compreensão do mecanismo gerador das aparições, deslocando o caráter “sagrado”, “sobrenatural” e “maravilhoso” ao plano do entressonho. Isso muda a maneira de olhar essa hierofania? Para o grande público, para a gigantesca massa de fieis, para a cultura popular e, principalmente para a Igreja, não, nada muda. Fátima transformou-se em um patrimônio religioso global, símbolo de uma fé transnacional.




Fico grato aos autores pela dedicação em oferecer novas perspectivas, mas a Virgem de Fátima está muito bem protegida numa redoma inviolável aos agudos espinhos da Scientia, que sangram as feridas abertas nos espíritos mais suscetíveis. A ignorância pode não ter culpa, mas, com todo respeito, pergunto: Se a Senhora aparecer novamente numa savana africana, num vale indiano ou num arrozal chinês, e o Sol bailar nos céus, vamos atravessar mais um século tentando explicar o fenômeno? Até quando continuaremos acreditando que Santas surgem do nada e fazer relações com anjos e alienígenas? Não estaríamos dando demasiada atenção ao supra-humano e relegando o humano a um papel menor? O conhecimento atual ainda não é suficiente para por termo à discussão e a especulações descabidas?

Sabemos que o aspecto da religiosidade é imbatível neste caso, os muitos interesses em jogo e d poder carismático do evento, mas ainda assim, definitivamente, entendo que já passou muito da hora ouvir com maturidade, objetividade e isentos de paixões o que as vozes do saber e da razão têm a nos dizer. Surdez e cegueira não podem negar a realidade, e a ignorância pode não ter culpa, mas, a meu juízo, pode ter sim e muita. Vamos conversar sobre isso na próxima semana.


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Fernando Fernandes et al. Fátima: Mais Além da Fé. Book Cover, Porto, 2019.
Cecília L. Mariz. Aparições da Virgem Maria e o Fim do Milênio.  Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, ano 4 nº 4, pp. 35-53, 2002, Porto Alegre.
Yves Chiron, Enquête sur les apparitions de la Vierge. Perrin/Mame. Paris, 1995.
René Lauretin, Multiplication des apparitions de la Vierge aujourd'hui. Est-ce ele? Que veut-elle dire? Favard, Paris, 1988.
Sandra Zimdars-Swartz. Encountering Mary; from La Salette to Medjugorje. New York: Avon Books. 1992.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

A DESCONSTRUÇÃO DO SER

Como sempre, recebo com muito carinho as manifestações dos leitores, sejam críticas, divergências ou contestações. O post Sinapses digitais trouxe umas dessas mensagens, no caso, apenas uma opinião que vale a pena comentar. O texto foi desmembrado para melhor responder.


Tudo é questão de opinião. Emburreceram a humanidade o rádio, a televisão e os gibis? Cada novidade traz sua carga de dúvidas e temores e a bola da vez é a Internet. É que certo que tudo tem seu lado negativo; prefiro me concentrar no lado construtivo das coisas.

Não se trata de opinião, meu caro leitor. O texto tem base científica, estudos, literatura, levantamentos e observações extraídas da prospecção de dados e troca de informações. Não é o rádio, a televisão, os gibis ou a bola da vez, a internet, os culpados pelo emburrecimento, mas o que se faz com eles (ou não se faz). A internet é só um meio. Um objeto não é nada em si mesmo, seu uso  é que o torna construtivo ou destrutivo. Não é uma questão só de inteligência usar a ferramenta certa para o propósito certo, mas também de  formação e informação. Eu também gosto de olhar o lado positivo das coisas, porém sem ignorar os aspectos negativos, e infelizmente são esses que estão prevalecendo no cotidiano das pessoas. Um livro aberto ensina, fechado emburrece. Não se pode só adoçar a vida quando ela tem sabor amargo. É passar os olhos pelo mundo real para entender o que estou dizendo. O mundo real é bem maior e mais duro que o mundo que queremos ver.

O sonho do intelectual é que todos fôssemos brilhantes, talentosos e geniais. 

Creio que o leitor se equivocou novamente. Se todos fossem brilhantes, talentosos e geniais, ninguém seria brilhante, talentoso e genial, seriam todos iguais, porque não haveria termo de comparação. Uma questão de lógica. Se todos falassem mentiras, não haveria mentiras. Se o intelectual sonha como diz o leitor, o intelectual deixaria de sê-lo pois todos seriam como ele.

Resta ver se o mundo se sustentaria com uma população de PhDs enormemente ilustrados e com as mesmas ideias e ideais; para complicar, não mencionarei a possível existência de vocações misteriosas, destino, programação e algo do "outro lado", pois seria pressupor a existência de um criador, e reencarnação, evolução, etc.

Não, o mundo não se sustentaria se fosse governados por Ph.F.s ilustrados, posto que não foram talhados para essa função, mas apenas para pensá-la. A governança deve ser feita por administradores, técnicos, gestores de ofício, e mesmo estes, hoje, mostram-se despreparados, incompetentes, desprovidos de capital intelectual e desalinhados com a realidade, talvez por nunca terem aberto um livro. A arte de governar, para Machavelli, exige que o 'príncipe' tenha virtudes para liderar, planejar, organizar, negociar e decidir para o bem da coletividade, do Estado. É grande a distância entre agir e como agir, e aquele que ignora a dinâmica do mundo é o que está mais próximo da ruína. Quanto a 'vocações misteriosas', elas existem e são alvo constante dos meus embates, portanto, nem preciso comentar.

Fazemos parte de um sistema muito além da nossa compreensão e controle; nele, cada macaco parece ocupar um galho determinado.

“Sistema muito além da nossa compreensão e controleGalho determinadoO leitor está falando de destino e determinismo, portanto, de crença pessoal, uma opinião sem qualquer fundamento empírico. Com perdão pela franqueza, é antes de tudo uma postura infantil, imatura. Insisto nesse ponto, cada um de nós  está no comando, cada um faz suas escolhas, não há nada nem ninguém além de nós controlando a vida. Quem assim pensa obviamente o faz como fuga da realidade; é confortável e conveniente - e covarde - transferir a “alguém” ou “algo” a responsabilidade pelos atos humanos.

Freud advertia que a maioria das pessoas não quer de fato a liberdade por medo e insegurança, porque ela, a liberdade, exige responsabilidade. Gasta-se menos energia esquivando-se dela do que assumindo-a. O fardo é pesado demais para os fracos. O custo  é alto demais para os miseráveis. Só está apto a pensar e agir responsavelmente quem não é medíocre. Sobra pouca gente. Conhecer e aprender é escolha sua. Emburrecer também. Se esse é o espírito desses tempos estranhos, e tudo indica que sim, então realmente estamos testemunhando a desconstrução do ser. E  fim do humanismo. Volto ao assunto em breve.