Obras

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

SINAPSES DIGITAIS

Sinapses digitais? Sim, não é teoria delirante muito menos ficção, é pesquisa científica de quase uma década que corre o mundo e começa a dar os primeiros resultados. Trata-se de um neologismo que procura explicar o que está acontecendo com nosso cérebro a partir das interações com o universo digital. Sim, sua massa cinzenta está mudando e você nem percebe. E isso é bom ou ruim? Depende de como se olha a questão. De saída, é claro que os benefícios da tecnologia digital são extraordinários, promovendo a difusão do saber a patamares inimagináveis. Porém, no outro prato dessa balança, há aspectos relacionados diretamente ao uso desse instrumento que têm um peso considerável na construção do conhecimento. É o que contém esse prato que nos interessa, baseado nos estudos em curso, na literatura que crescente, nos debates, fóruns e na justa preocupação dos especialistas.

A dinâmica da tecnologia digital está assentada na velocidade da resposta de dados, na capilaridade e volume de informação, que provoca o estrangulamento dela mesma como resultado da produção irrefreável de conteúdo ausente de filtros e critérios. A primeira constatação empírica que se tem é que o sujeito perde a capacidade de apreensão total desse conteúdo, atenção fragmentada e dispersa, desconexão seletiva da realidade, rejeição à leitura de textos mais complexos e, principalmente, incapacidade de reflexão profunda e prolongada.

O que preocupa de fato vem agora. Você leu aqui que está havendo um emburrecimento generalizado, que jovens estão desprezando a literatura de conteúdo e que a capacidade de pensar está esvaziando em todos os estratos, dado que se verifica desde os anos 1980 com crescimento nas últimas duas décadas, coincidindo com a consolidação da internet. Os trabalhos mostram que há uma nova  geração de crianças incapazes de pensar por si próprias, e mais que isso, o ingresso excessivo mo mundo virtual pelos jovens e adultos altera a química cerebral, fazendo com que haja uma regressão cognitiva e uma infantilização comportamental. O cérebro é extremamente sensível ao ambiente, reagindo, modificando e ajustando-se a ele continuamente, diz a neurocientista Susan Greenfield da Oxford University. Sua colega neurocientista, a americana Maryanne Wolf, afirma que As pessoas estão percebendo que algo nelas está mudando, que é o seu poder de leitura”. 

Para Maryanne, uma das razões para essa mudança está no uso das telas - celulares, tablets, e-books - em tempo quase integral, cirando novos hábitos no processamento das informações que lemos. A leitura de múltiplos textos em tela no lugar da página impressa faz com que “passemos os olhos” muito superficialmente, esfacelando nossa capacidade de entender ou fazer uma análise crítica de argumentos mais complexos, ou ainda de estabelecer empatia com pontos de cista contrários. Tudo isso se reflete, segundo a autora, na performance profissional, na vida social, nas escolhas que fazemos o tempo todo. Impacta, também, na comunicação, no patrimônio cognitivo, na percepção da sutilezas linguísticas, na construção de simbolismos, na captura das estrelinhas e na elaboração de pensamentos originais - os insights.

A sua (dela) especialidade são os processos cognitivos e letramento, e ela é taxativa ao afirmar que nosso cérebro não é programado para interpretar letras e números, um aprendizado que se estruturou ao longo do tempo, cerca de 6.000 anos atrás, ao contrário da visão e da linguagem oral. Cada leitura, sem exceção, requer seu tempo específico de absorção e entendimento. Uma frase, um parágrafo, uma página, um capítulo, um livro, todos pedem atenção, reflexão e compreensão integradas. Quanto maior o texto , menor o tempo de compreensão profunda, daí os tweets serem a ferramenta mais usada no mundo da comunicação coletiva. A preocupação  da autora é fundamentalmente com as crianças, os novos leitores, os leitores digitais. Que tipo de leitores estamos formando? Se perdermos gradualmente a capacidade de examinar como pensamos, perdemos também a de examinar serenamente o que pensam aqueles que nos governam”, alerta Maryanne.

Um elemento importante detectado pelas pesquisas é a diminuição na capacidade de memória, desde os dados mais simples como telefones, datas e nomes, aos mais complexos. A comunicação digital provocou um empobrecimento da redação, do vocabulário, da leitura e da interpretação de textos, logo, da compreensão da realidade. O virtual, certo ou errado, assumiu o papel central das experiências reais, do entendimento do mundo. A informação multiplicada se sobrepõe à reflexão, a imagem à palavra, o que não é ao que é, o impessoal ao presencial. O bônus” da individualidade tem o ônus do isolamento. A contradição: o surgimento de grupos ou tribos dos igualmente isolados. 

A combinação individualismo-solidão implica combustão espontânea: estou só e preciso ser visto. Como um náufrago, lanço mensagens engarrafadas na esperança de ser lido, ouvido e achado (amado?).  A cacofonia babélica é ensurdecedora. Se o sujeito passa o tempo todo ocupado em exibir-se para seu público-alvo imaginário, é razoável supor que seu cérebro esteja estacionado na mesma proporção. A impaciência para se obter o máximo de informação desmantela a leitura crítica e consequentemente de se chegar ao conhecimento efetivo. Maryanne novamente: Deixamos de estar profundamente engajados no que estamos fazendo, o que torna mais improvável que sejamos transportados para um entendimento real dos sentimentos e pensamentos do outro”.

E o que afinal sinapses têm a ver com aprendizado? Aprender é uma função complexa que implica modificações neurológicas celulares e eletroquímicas. A formação de uma sinapse está intimamente ligada à capacidade de aprendizagem e na interação com o lugar, pois as estruturas do sistema nervoso processam as informações criando, fortalecendo ou enfraquecendo as sinapses. Treino, memorização e constância de uma dada habilidade estimulam sinapses e aumentam a qualidade no processamento da ação. O contrário é igualmente válido, se uma habilidade é pouco explorado, a tendência será as sinapses perderem ritmo, desempenho e função até desaparecerem. Aí as s cavernas nos esperam de volta.




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Maryanne Wolf, O Cérebro no Mundo Digital. Contexto, 2019.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020


À PROCURA DE UM ROSTO

Junte o que dizem Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo, Theodore Dalrymple em Podres de Mimados, Gilles Lipovetsky em A Era do Vazio e Jean Baudrillard em A Ilusão Vital e O Paroxista Indiferente, e, de quebra, o “mundo líquido” de Bauman, só para ficar nos mais contemporâneos, e você terá a exata noção do que é uma geração de gente ressentida, egoísta, infantilizada, desregrada, insensível, desnorteada, desinformada e não pensante, verificável a qualquer tempo e lugar. O que sustenta esse corpo é o tripé formado pelo individualismo, narcisismo e exibicionismo midiático. O que se constata é que a sociedade atual se organiza através da lei da renovação acelerada, centrada na efemeridade e no apetite pela novidade,  tendo como signos a sedução, a indiferença e o consumismo, principalmente. Parece que estou sendo repetitivo em relação a posts anteriores, e estou mesmo.

Lipovetsky concebe o poder pela sedução manipulada pela informação, multiplicação e ampliação do leque de opções hedonistas à disposição do sujeito consumidor. A indiferença é constituinte da personalidade pós-moderna não pela falta, mas justamente pelo excesso de escolhas, determinado pela apatia e desapego do indivíduo. O  interesse de hoje amanhã não será. Desaparecem os vínculos com os valores morais e sociais tradicionais, a preocupação com a res publica – a coisa pública, a sociedade, o próximo. A deserção generalizada com a esfera coletiva abre espaço para o narcisismo despontar onde o ambiente privado passa s ser o centro, sem limites. 

Nessa sociedade metamórfica, o indivíduo está submerso em seu universo particular de subjetividades, representações e experiências, resultando um rearranjo nas relações entre pessoas, entre elas e o mundo e na visão de si mesmas. Para Debord, “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre sujeitos, mediada pela imagem”. Para Baudrillard, a imagem não passa de um simulacro. Outro ponto de consenso é a pós-modernidade trazendo um novo quadro de desigualdades e formas de dependência, fazendo surgir um personagem – o hiper narciso –, engajado muito mais em práticas grupais na busca de prazeres efêmeros como fuga da dor da solidão e da finitude.  

Debord condena esse espetáculo desmedido da imagem, a alienação e a massificação banal (encenação), enquanto a imagem hiper-real  – o virtual mais real que o real – de Baudrillard atesta a desrealização do mundo e o fim do “in-divíduo” – o não divisível. É aí que a imagem tem função gregária, gerando laços sociais e criando micro grupos, circunstanciais, transitórios, superficiais e convenientes, de pessoas com a mesma (des)identidade que vivem uma sucessão de instantes eternos assentados no prazer. Sendo a imagem um simulacro, uma ilusão, o que está lá já não está mais lá, é só um instante fugaz do passado enquadrado pelo presente.

Não estou mais falando de fanatismo e barbarismo, mas daquilo que pode ser a sua semente e seu nutriente. Estou falando do narcisismo extremado do sujeito que só quer – na verdade precisa –  aparecer, ser visto, filmado, fotografado, incensado, sair do anonimato e da total irrelevância pra um protagonismo infantil e banal. Quer ser celebridade, expor o que pensa ser seu rosto ou será solenemente ignorado, sucumbindo na solitária, pobre e falsa imagem de si. Estou falando do jovem que ameaça matar inocentes apenas para “fazer história na comunidade”, ciente que a mídia se encarregará de fazer repercutir o espetáculo da insanidade.

Estou falando da garota que expõe glúteos e outras anatomias com a “sensualidade” de um prostíbulo; estou falando do imbecil rancoroso que destila preconceito e hostiliza o outro com calúnias, leviandades, intolerância, crispação, ódio e impropérios gratuitos. Umberto Eco sangra a ferida ao dizer que a internet alçou o idiota da aldeia a porta-voz da verdade. Nelson Rodrigues, muito antes dele já dizia, cáustico, que a tragédia virá quando os imbecis se darem conta de que são maioria. A marcha dos irresponsáveis está em curso. Quando tudo é vaidade, o que sobra é silêncio.

Estou falando dos medíocres que, em nome de sua ideologia, arreganham os caninos, babam e mordem, incentivando ferocidade e baderna; estou falando dos celerados que desafiam gangues rivais para um suicida confronto de forças. Estou falando do sujeito que, nada tendo a dizer ou mostrar, exibe sua absoluta nulidade com opiniões vãs, taras, futilidades, obsessões e estupidez. O bem se manifesta sob uma fina camada de cultura, portanto, externo ao homem; o mal é matéria bruta visível, inerente ao homem. Qual face está lá, a higienizada das redes ou a nua, sem retoques? Dê uma espiadela no panorama do mundo e a resposta salta. 

O problema não está na rede, mas no uso que se faz dela, uma  criatura de um só corpo, múltiplos olhos e infinitas vozes. Uma vez investindo exclusivamente em si e em interesses pessoais, caem por terra as relações humanas, o afeto da presença, a empatia, o debate renovador e o diálogo produtivo. Nessa contrição do ser, a tendência é sentir-se cada vez mais só e vazio por não saber desprender-se de si. Por faltar-lhe um rosto, procura-o em vão nesse mar de falsos espelhos que é a sua tribo, um exército de clones entreolhando-se capturados no tempo. Eis aí o comportamento de manada tantas vezes citado aqui. Quanto mais o gueto cresce, mais o rosto desaparece. Quanto mais o sujeito se quer diferente, mais igual aos diferentes será; sendo sempre ele mesmo, será diferente por não encontrar outro igual. Então terá seu rosto.

domingo, 12 de janeiro de 2020

A INSUSTENTÁVL FRAQUE
A INSUSTENTÁVEL FRAQUEZA DO SER
Há um cansaço da inteligência abstrata,
e é o mais horroroso dos cansaços.
Não pesa como o cansaço do corpo,
nem inquieta como o cansaço do saber.
É um peso da consciência do mundo,
um não poder respirar da alma.
Bernardo Soares
(heterônimo de Fernando Pessoa)


A trilogia sobre opiniões e crenças terminou, é certo, mas não poderia deixar de trazer, uma vez mais, em continuidade, a voz de Freud sobre a questão, de tão fundamental e necessária. Ele dissecou de tal forma as entranhas psíquicas do ser que seu repertório é imenso, e seu estudo sobre religião e sistema de crenças não envelhece nunca. Para ele, a religião não é detentora do monopólio das construções ilusórias do homem, mas contribui majoritariamente para manter as crenças ativas. Segundo Morano, O segredo de sua força [religião], como no sonho, reside exclusivamente na força do desejo da qual derivam.” Lembro sempre que os sublinhados são destaques meus.

Do ponto de vista freudiano, a crença religiosa, ou as crenças de modo geral, no ponto em que projeta desejos ao mundo exterior, o mundo real, e gera ilusões contrárias a essa realidade, transforma-se numa demência de caráter alucinatório. Orar torna-se um solilóquio, um diálogo de cegos em que o transcendente é o próprio sujeito, encarcerado em seus desejos mais temidos e ocultos. A caracterização da crença (todo ato religioso em essência) como quadro ilusório é exatamente por gerar uma realidade completamente avessa erguida sobre os próprios desejos dos quais não encaramos de forma consciente. Tal irracionalidade ocorre porque o inconsciente não conhece contradições, como nos sonhos. Tudo que lá acontece é perfeitamente natural, coerente, faz sentido.


Freud considerava a magia, o medo, a fantasia, o desejo, a poesia, o devaneio, o sonho como fases formadoras do sistema de crenças, entendendo serem a magia e a feitiçaria elementos que mantinham ativo tal  sistema. O homem cria a magia como forma de se impor sobre o mundo, as forças da natureza, o universo, os animais, as doenças, os homens. Ademais, ele trata da onipotência do pensamento como uma ilusão em relação ao mundo externo, como já se disse, o desejo de que o mundo seja o que se deseja que seja:
A primeira imagem que o ser humano formou do mundo - o animismo - foi psicológica. Não precisou, então, de base científica, uma vez que a ciência só começa depois de ter-se dado conta de que o mundo é desconhecido e que, por conseguinte, tem-se de procurar meios para conseguir conhecê-lo.
Freud vê o homem alimentando a crença onde a fantasia é uma força maior que a da mente que a cria, identificando troca tanto nos seres humanos primitivos quanto nos neuróticos, o que propõe a compreensão de que, nos dois sistemas de crença, a fuga do real tem certo limite ligado ora ao desejo de se situar no mundo, ora ao desejo de fuga desse mundo, característica típica do homem modernoO psicanalista vienense aborda três crenças importantes presentes no animismo: 1) o povoamento do mundo com seres espirituais bons e maus; 2) são a causa dos fenômenos; 3) somos povoados desses espíritos. Isso indica que sua visão sobre o animismo revela que os elementos que criamos para nos situarmos não precisam necessariamente serem verdadeiros nem lógicos, e não é pelo fato de se usar tais elementos que estamos perto ou longe da neurose: “Essas almas que vivem nos seres humanos podem deixar suas habitações e emigrar para outros seres humanos; são o veículo das atividades mentais e são, até certo ponto, independentes de seus corpos”.

Todos sabemos que a compreensão da obra de Freud não é fácil, em absoluto, e que é preciso muitos anos de dedicação exclusiva a tal empreendimento. Logo, entendo que o texto de hoje, apesar de necessário, é torturante em sua complexidade. Não estou livre desse martírio. Talvez o próprio Freud possa nos ajudar:
Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção.
O desejo surge na teoria psicanalítica como propulsor da atividade humana, e, manifestado de diversas formas, é especificamente na maneira como  se manifesta no sonho que poderá nos servir de base para compreender como ele se coloca nas outras esferas da vida. Sonhar, diz Freud, é realizar um desejo alucinatoriamente. Um desejo inconsciente, não podendo manifestar-se de forma desperta, se utiliza do estado de relaxamento da vida onírica para ter voz. A psicanálise mostrou que existem conflitos internos no próprio sujeito em distintas instâncias psíquicas o tempo todo. Dessa forma, desejos que pertencem ao sistema inconsciente estão lá por não poderem ter acesso à consciência. Não podendo se manifestar, deslocam-se e condensam-se numa mudança de foco por meio associativo, transferindo sua representação na vida consciente para uma imagem, por exemplo.

Concluindo, até onde me foi possível depreender, as crenças humanas - ainda que ilusões - se formaram de modo natural no curso de um longo processo histórico de identificação de si e do mundo, que estabeleceu regras e o sentimento de esperança, proteção, segurança e sentido existencial. Esperança da imortalidade, proteção contra as tormentas da vida, segurança contra as ameaças naturais. Cada um de nós possui seus credos - verdades que se inventa, cria sonha, projeta, desejando que sejam verdadeiras. Os pressupostos religiosos não mais dizem a uma realidade óbvia de transcendência, mas antes, a uma expressão deformada de desejos inconscientes. É nesse ponto que ilusão e crença se aproximam e se unem. Freud inaugurou uma escola de pensamento, alçando o homem a um ser pensante de si mesmo, e isso tem um peso incalculável. Para muitos, um peso insustentável.


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Carlos Dominguez Morano, Crer Depois de Freud, Loyola, 2014.
Sigmund Freud, Totem e Tabu. Cia das Letras, 2006.
_______. O Futuro de uma Ilusão. LP&M, 2010,

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

FANTASMAS DA ESPERANÇA

“A razão pode provocar o desejo de crer, porém, nunca terá a força de fazer crer.” Nesta última parte da nossa conversa, mais uma vez a palavra de Le Bon serve de roteiro. No post Nascido para o saberDante canta em um dos versos aquilo que deveria ser essência do ser: ... feitos para praticar a virtude e aprender a conhecer. Não aprendemos a lição. Então, seguimos com o pensador francês no intuito de trazer novas luzes. No post citado, o Espiritismo foi alvo do debate, atiçando os guardiães da doutrina. Deixemos que Le Bon retome a palavra.


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Perante os progressos das ideias científicas, a crença na magia se afigurava destruída. Os feiticeiros, despojados do seu prestígio, só achavam crédito em algumas aldeias obscuras. Mas o amor ao mistério, as necessidades religiosas que uma fé muito antiga alimentava mal, a esperança de sobreviver ao túmulo, são sentimentos tão vivos que não poderiam morrer. A magia antiga devia, ainda uma vez, reaparecer, mudando de nome sem sofrer notável modificação. Chama-se hoje ocultismo de espiritismo, os áugures se denominam médiuns, os deuses inspiradores de oráculos se intitulam espíritos, as evocações dos mortos têm o nome de materialização.

Durante muito tempo a nova crença foi desdenhada pelos sábios; mas, há uns vinte anos* que assistimos a este fenômeno muito imprevisto: eminentes professores tornam-se convencidos adeptos de todas as formas de magia. Assim, reputados antropologistas, como Lombroso, afirmam que evocaram as sombras dos mortos e com elas conversaram; ilustres químicos, como Crookes, dizem ter vivido meses com um espírito que diariamente se materializava e desmaterializava, professores de filosofia célebres, como Richet, declaram ter visto um guerreiro de capacete surgir espontaneamente do corpo de uma menina, físicos distintos, como d’Arsonval, referem que um “médium pode fazer variar, à vontade e de um modo considerável, o peso de um objeto”. Vemos, enfim, ilustres filósofos, como o sr. Boutroux, dissertarem em brilhantes conferências sobre os espíritos, as comunicações sobrenaturais, e afirmarem que “a porta subliminal é a abertura pela qual o divino pode penetrar na alma humana.

É certo que outros sábios, igualmente ilustres, rejeitam essas observações, atribuíveis, no seu conceito, a simples alucinações, e eles se indignam contra o que chamam retorno às formas mais baixas da feitiçaria e da superstição. A fim de mostrar a ilimitada credulidade de certos sábios eminentes, desde que penetram no domínio da crença, vou escolher o fenômeno ocultista mais estudado por eles, o que é denominado das materializações. Veremos reputados fisiologistas admitir, sem hesitação, que um ser vivo se pode constituir instantaneamente com os seus ossos, as suas artérias, os seus nervos, em uma palavra, com todos os seus órgãos. Naturalmente, as explicações dos espíritas sobre tal assunto são bastante confusas e variam com a imaginação de cada autor. Cumpre unicamente reter que do corpo de um ente vivo poderia instantaneamente surgir outro ser, possuindo os mesmos órgãos e não o seu simples aspecto.

Observa-se o papel da sugestão e do contágio mental nos maravilhosos fenômenos que se prendem à magia e na sua influência sobre os espíritos mais eminentes.  As ilusões de que foram vítimas os sábios dedicados ao estudo dos fenômenos espíritas mostram que os métodos de investigação, utilizáveis no domínio do conhecimento, já não o são no terreno da crença. Observa-se também que os crentes nos fenômenos ocultistas afirmam que eles não se podem reproduzir à vontade, não se achando, por conseguinte, submetidos a nenhum determinismo. As potências superiores criadoras de tais fenômenos não obedecem aos nossos caprichos. Júpiter lança o raio quando lhe apraz, Netuno desencadeia as tempestades sem atender ao desejo dos navegantes.

Em história, o método de estudo é o testemunho. Em matéria científica, a experiência e a observação servem de guia. Ora, para os fenômenos ocultistas, o primeiro método consiste em rejeitar inteiramente o testemunho e lembrar que a observação, assim como a experiência, são unicamente utilizáveis em circunstâncias excepcionais. Eliminados o testemunho e a observação como meio de estudo, resta a experiência. Um erro muito generalizado é o que consiste em imaginar que um sábio, distinto na sua especialidade, possui por essa única razão uma aptidão particular na observação dos fatos alheios a essa especialidade, principalmente aqueles em que a ilusão e a fraude desempenham um papel preponderante. Vivendo na sinceridade, habituados a crer no testemunho dos seus sentidos, completados pela precisão dos instrumentos, os sábios são, na realidade, os homens mais facilmente iludíveisOs fenômenos do espiritismo não poderiam, portanto, ser eficazmente observados por sábios. Os únicos observadores competentes são os homens habituados a criar ilusões e, por conseguinte, a desvendá-las, isto é, os prestidigitadores.


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Encerro a série com  a historiadora Mary Del Priore ao dizer que, ainda no século 19, o antropólogo brasileiro Arthur Ramos escrevia: “O Brasil vive impregnado de magia. Nós, brasileiros, ainda vivemos sob o domínio do mundo mágico, impermeável em muito ao influxo de uma verdadeira cultura”. Sua fala não envelheceu. Nesse sentido, Del Priore sublinha:
Sim, pois a mentalidade mágica e a crença no sobrenatural acompanhavam e envolviam as ideias, as ciências e as letras. Não à toa, essa literatura de sensação enchia as noites dos que acreditavam que, no contexto da fé, o sobrenatural era coisa normal. (...) O que se convencionou chamar de sobrenatural, maravilhoso ou fantástico revela, na realidade, atos de fé. (...) Crenças são capazes de exprimir a humanidade na sua mais profunda e intensa medida. Passados séculos, muitos desses objetos de fé e convicção continuam aí, jovens, oxigenados, vivos. Ninguém procura explicá-los. Eles são recebidos como uma mensagem na qual se lê toda a onipotência e as marcas da intervenção de Deus, ou de deuses, em nosso mundo.
Outros autores seguem a mesma trilha e eu poderia trazê-los aqui em contribuição, não apenas sobre o espiritismo como também o misticismo, o sobrenatural e o mágico. Fica para outro momento. Em plena ebulição tecnológica de um mundo digital, ainda não nos livramos das fantasmagorias ancestrais. Talvez a explicação esteja nas palavras da historiadora ao mencionar as mudanças sociais e culturais na virada do século 19 para o 20, a belle époque. Sua argumentação é longa e esclarecedora, abrangendo todo o leque do sobrenatural, sendo a leitura da obra altamente recomendada. A seguir, dois breves trechos:
A modernidade dos bondes, da luz elétrica e do telefone trazia também uma resistência às mudanças. Vivia-se o que um historiador denominou de “a revolta contra a razão”. Em revanche, recorria-se ao fantástico e ao imaginário popular, recheado de fadas, demônios e aparições. A literatura escapista transportava para outro mundo, onde o sobrenatural dava as cartas. Nele, nada causava espanto ou surpresa. Tudo era possível!
No universo sobrenatural, “mortos-vivos”, espíritos ou fantasmas fazem parte do cenário desde a Antiguidade e a Idade Média. Eles atravessaram os séculos invadindo a literatura romântica, fantástica e gótica. Emergiram de castelos assombrados por fantasmas e vampiros, todos eles atores de uma cultura que acreditava em sua existência. Hoje fazem parte do cinema e dos quadrinhos. E também das pesquisas nas áreas de parapsicologia e metapsicologia. Empurrado para a marginalidade ou a clandestinidade, o sobrenatural progrediu. 
Uma última frase de Le Bon sacramenta o vão esforço do conhecimento: “Os convictos permanecerão convictos, e os críticos continuarão críticos. Nos domínios da fé, a razão não intervém”. Por fim, acrescento que na próxima semana trarei de volta Freud, absolutamente imprescindível na sequência da reflexão.

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Mary Del Priore, Do Outro Lado. Planeta, 2014.