Obras

Obras

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019


FOLHAS SECAS

“Suficientemente repetida, a afirmação acaba por criar, primeiramente, uma opinião e, mais tarde, uma crença. A repetição é o complemento necessário da afirmação. Uma opinião qualquer universalmente aceita constituirá sempre, para a multidão, uma verdade”. Mais um argumento de Le Bon, de quem estamos compilando uma série de conceitos expostos em As Opiniões e as Crenças como base para nossas reflexões. Os  sublinhados são meus.


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O problema do estabelecimento e da propagação das opiniões, e sobretudo das crenças, apresenta aspectos tão maravilhosos que os sectários de cada religião invocam a sua origem e a sua difusão como provas de uma procedência divina. Observam também que essas crenças são adotadas a despeito do mais evidente interesse daqueles que as aceitam. Compreende-se, por exemplo, sem dificuldade, que o Cristianismo se haja propagado facilmente entre os escravos e todos os deserdados, ao quais prometia uma felicidade eterna. Mas, que forças secretas podiam determinar um cavalheiro romano, um personagem consular, a despojar-se dos seus bens e afrontar vergonhosos suplícios, para adotar uma religião nova e vedada pelas leis? Seria impossível evocar a fraqueza intelectual dos homens que voluntariamente se submetiam a tal jugo, porquanto, desde a antiguidade até aos nossos dias, se têm observado os mesmos fenômenos nos espíritos mais cultos.

Uma teoria da crença pode unicamente ser viável quando fornece a explicação de todas essas coisas. Deve, sobretudo, fazer compreender como sábios ilustres e reputados pelo seu espírito crítico aceitam lendas cuja infantil ingenuidade desperta o sorriso. Mas como, nos nossos dias, em meios sobre os quais a ciência projeta tanta luz, não se acham essas mesmas crenças inteiramente desagregadas? Por que as vemos nós, quando por acaso se desagregam, originar outras ficções, maravilhosas, como prova a propagação das doutrinas ocultas, espirituais etc., entre sábios eminentes? A todas essas perguntas deveremos, igualmente, responder.

Tudo quanto é aceito por um simples ato de fé deve ser qualificado de crença. Se a exatidão da crença é verificada mais tarde pela observação e a experiência, cessa de ser uma crença e torna-se um conhecimento. Crença e conhecimento constituem dois modos de atividade mental muito distintos e de origem muito diferentes: A primeira é uma intuição inconsciente provada por certas causas independentes da nossa vontade; a segunda representa uma aquisição consciente, edificada por métodos exclusivamente racionais, tais como a experiência e a observação. Foi somente numa época adiantada da sua história que a humanidade, imersa no mundo da crença, descobriu o conhecimento. Quando aí se penetra, reconhece-se que todos os fenômenos atribuídos outrora às vontades de seres superiores se apresentavam sob a influência de leis inflexíveis.

Desde que os assuntos sobre os quais se quer raciocinar caem no campo da crença, a reflexão perde o seu poder crítico. Uma lógica afetiva demasiada leva a ceder sem reflexão a impulsos frequentemente funestos. Uma lógica mística excessiva suscita as exigências religiosas, dominadas pela preocupação egoísta da sua salvação, e sem utilidade social. Uma lógica coletiva exagerada promove a predominância dos elementos inferiores de um povo e o conduz à barbárieA força dos fanáticos reside precisamente na rigorosa obediência ao seu ideal perigoso.Uma lógica racional em demasia provoca a dúvida e a inação.

Sendo lenta e penosa a elaboração de um julgamento, o homem se contenta, em geral, com as primeiras impressões, isto é, com as sugestões da simples intuição. Abandonar-se a elas sem exame, como muitas vezes se procede, é atravessar a vida na persuasão de um erro. Elas só têm, efetivamente, por sustentáculo, simpatias e antipatias instintivas que nenhuma razão ilumina. É, entretanto, sobre bases tão frágeis que, às mais das vezes, se edificam as nossas concepções do justo e do injusto, do bem e do mal, da verdade e do erro.

Tão irredutível quanto a necessidade de crer, a necessidade de explicações acompanha o homem desde o berço até ao túmulo. Ela contribuiu para criar os seus deuses e diariamente determina a gênese de numerosas opiniões. Essa necessidade intensa facilmente se satisfaz. As respostas mais rudimentares são suficientes. Sempre ávido de certezas definitivas, o espírito humano guarda muito tempo as opiniões falsas fundadas na necessidade de explicações e considera como inimigos do seu repouso aqueles que as combatem. O principal inconveniente das opiniões baseadas em explicações errôneas é que, admitindo-as como definitivas, o homem não procura outras. Supor que se conhece a razão das coisas é um meio seguro de não a descobrir.

A ignorância da nossa ignorância tem retardado de longos séculos os progressos das ciências e ainda, aliás, os restringe. A sede de explicações é tal que sempre foi achada alguma para os fenômenos menos compreensíveis. Os elementos constitutivos da nossa existência pertencem, como sabemos, a três grupos: vida orgânica, vida afetiva, vida intelectual. A necessidade de crer alia-se à vida afetiva. Tão irredutível quanto a fome ou o amor ela é, frequentemente, tão imperiosa. Constituindo uma invencível necessidade da nossa natureza afetiva, a crença não pode, e nisso é como um sentimento qualquer, ser voluntária e racional. A inteligência não a forma nem a governa.

Confinado num deserto, privado de qualquer símbolo, o crente mais convicto veria rapidamente declinar a sua fé. Se, entretanto, anacoretas e missionários a conservam, é porque incessantemente releem os seus livros religiosos e, sobretudo, se sujeitam a uma multidão de ritos e de preces. A obrigação para o padre de recitar diariamente o seu breviário foi imaginada pelos psicólogos que conheciam bem a virtude sugestiva da repetição. Nenhuma fé é durável se dela se eliminam os elementos fixos que lhe servem de apoio. Um Deus sem tempestades, sem imagens, sem estátuas, perderia logo os seus adoradores.

O nosso máximo esforço de independência consiste em opor, por vezes, um pouco de resistência às sugestões ambientes. A grande massa nenhuma resistência opõe e segue as crenças, as opiniões e os preconceitos do seu grupo. Ela lhe obedece sem ter mais consciência do que a folha seca arrastada pelo vento

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A exemplo da edição passada, retomamos Freud quando diz que a infância humana está plena de ilusões como parte fundamental do processo de amadurecimento. Como seres dependentes da proteção paterna, deparamos com um universo de frustrações inevitáveis. O ingresso no mundo adulto nos põe frente a frente com uma realidade que constrange os desejos mais essenciais. Saímos da esfera infantil de tudo pode” (onipotência dos pensamentos) para uma realidade que nos obriga ceder em nossas próprias vontades; é o que  Freud chama mudança de foco do princípio do prazer para o princípio de realidade, tema extremamente importante na sua metapsicologia e que já foi trazido neste blog.

Amadurecer, emancipar-se, crescer, significa tornar-se um ser sociável perante regras e imposições que se opõem aos desejos individuais. Desse modo, a religião aparece como incentivadora da manutenção de uma realidade que não se aproxima da racional para o sujeito, garantindo” recompensas numa vida futura: A imortalidade, instante modelar de um desejo humano projetado numa realidade exterior que se legitima pelo supremo poder da Providência Divina.
Acolhemos as ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos em troca gozar satisfações. Portanto, não devemos reclamar se, repetidas vezes, essas ilusões entrarem em choque com alguma parcela da realidade e se despedaçarem contra ela.
O modelo proposto por Freud de como se processa a atuação psíquica inconsciente é a chave para entender as manifestações da vida consciente. Os sonhos são a porta de acesso a este modo peculiar de funcionamento. Partindo da interpretação onírica de como os mecanismos inconscientes atuariam, Freud pode abordar a grande produção da cultura humana. Ele praticamente dedicou toda a sua obra na concepção de que o modo como atuariam as estruturas inconscientes seria a senha para compreender as manifestações mitológicas, as motivações filosóficas e a religião.

[continua]

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S. Freud, Considerações atuais sobre a guerra e a morte. Cia das Letras, SP. 2013.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

VENTANIA

“Que importa o saber se a demanda é por crença?” “Crença e opinião sempre se sobrepõem ao conhecimento”. Estas duas frases do pensador francês Gustave Le bon (1841-1931), fundador da Psicologia Social, são a chave para entender algumas de suas obras, referências obrigatórias nessa área na hora de abordar o assunto. Essa breve introdução é o gancho para o que iremos debater a partir de agora  crenças e opiniões , temas recorrentes por aqui porque o blog funciona como um bom boticário, gotejando pacientemente a substância até ser absorvida pelo corpo. Isso se deve dada a ventania causada pelos últimos posts, que parece ter incomodado alguns, o que não é surpresa.

O recado dado em Ficar ou Fazer aborreceu o leitor, que me excluiu da sua rede de contato desde então e aparentemente não tem acessado o blog. Não é a primeira vez que sou excluído por dizer a verdade, não será a última. Foi dito, na ocasião, que haveria uma tentativa de debate, que se confirmou, apesar do jovem demonstrar clareza de raciocínio, desenvoltura na argumentação, lucidez e ponderação. Seu gesto comprova o que foi colocado no último post, que inteligência não combina com crença. O exemplo se aplica a outros, mas não a todos. Há quem conviva com as divergências, ouve, dialoga, procura formas de entendimento, como a leitora espírita que, mesmo discordando do texto, não arrefeceu a crença nem estremeceu no afeto. Alguns trechos pinçados da obra de Le Bon, As Opiniões e as Crenças (1895) ajudam a caminhar pelos meandros do comportamento humano e conhecer a psicologia das massas. Uma obra atualíssima, indispensável e esclarecedora. A partir daqui, a palavra é dele. Os sublinhados são meus. Preparei uma trilogia para expor razoavelmente a questão, longe de esgotá-la.

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O problema da crença, por vezes confundido com o do conhecimento é, entretanto, muito distinto dele. Saber e crer são coisas diferentes, que não têm a mesma gênese. A sua solução dá-nos a chave de muitas questões importantes. Como, por exemplo, se estabelecem as opiniões e as crenças religiosas ou políticas? Por que se observam, simultaneamente, em certos espíritos, ao lado de elevadíssima inteligência, superstições muito ingênuas? Por que é tão fraca a razão para modificar as nossas convicções sentimentais? Sem uma teoria da crença, essas questões e muitas outras ficam insolúveis. Somente com o auxílio da razão, não poderiam ser explicadas. O domínio da crença sempre pareceu repleto de mistérios. É por isso que os livros sobre as origens da crença são tão pouco numerosos, ao passo que são inúmeros os que se referem ao conhecimento.

As raras tentativas empreendidas no sentido de elucidar o problema da crença bastam, aliás, para mostrar que ele tem sido pouco compreendido. Aceitando a velha opinião de Descartes, os autores repetem que a crença é racional e voluntária. Um dos objetivos desta obra será precisamente mostrar que ela não é voluntária nem racional. A idade moderna contém tanta fé quanto tiveram os séculos precedentes. Nos novos templos pregam-se dogmas tão despóticos quanto os do passado, e eles contam fieis igualmente numerosos.

Os velhos credos religiosos que outrora escravizavam a multidão são substituídos por credos socialistas ou anarquistas, tão imperiosos e tão pouco racionais como aqueles, mas não dominam menos as almas. A igreja é substituída muitas vezes pela taverna, mas aos sermões dos agitadores místicos que aí são ouvidos, atribui-se a mesma fé. A fé num dogma qualquer é, sem dúvida, de um modo geral, apenas uma ilusão. Cumpre, contudo, não a desdenhar. Graças à sua mágica pujança, o irreal torna-se mais forte do que o real. Uma crença aceita dá a um povo uma comunhão de pensamentos de que se originam a sua unidade e a sua força. Sendo o domínio do conhecimento muito diverso do terreno da crença, opô-los um ao outro é inútil tarefa, embora diariamente tentada. Um dos mais constantes caracteres gerais das crenças é a sua intolerância. Ela é tanto mais intransigente quanto mais forte é a crença. Os homens dominados por uma certeza não podem tolerar aqueles que não a aceitam.

As leis que regem a psicologia da crença não se aplicam somente às grandes convicções fundamentais, que deixam uma marca indelével na trama da história. São também aplicáveis à maior parte das nossas opiniões quotidianas relativamente aos seres e às coisas que nos cercam. A observação mostra que, na sua maioria, essas opiniões não têm por sustentáculos elementos racionais, porém elementos afetivos ou místicos, em geral de origem inconsciente. Se nós as vemos discutidas com tanto ardor, é precisamente porque elas pertencem ao domínio da crença e são formadas do mesmo modo. As opiniões representam, geralmente, pequenas crenças, mais ou menos transitórias.

Seria, pois, um erro supor que se sai do terreno da crença, quando se renuncia às convicções ancestrais. Sendo as questões suscitadas pela gênese das opiniões da mesma natureza que as relativas à crença, devem ser estudadas de modo análogo. Muitas vezes distintas nos seus esforços, crenças e opiniões pertencem, no entanto, à mesma família, ao passo que o conhecimento faz parte de um mundo inteiramente diverso. Como se explica esse estranho poder das crenças? De quais elementos psicológicos surgem esses mistérios? 


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A Psicanálise, com Freud, ilustra de modo eloquente que o ser humano é um animal de ilusões, um corpo desejante que tem, como constituintes da sua própria condição, carência e vazio. Em vista disso, ilusões e fantasias estão sempre à mão a preencher esses vácuos na construção dos mais “elevados” edifícios da cultura humana. Para Freud, a experiência religiosa, a fé, é uma forma compensatória e salvacionista ante um mundo real perverso, onde a religião acaba por se tornar uma neurose coletiva:
[...] aquilo que o homem comum entende como sua religião, o sistema de doutrinas e promessas que de um lado lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição, e de outro lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra existência as eventuais frustrações desta (...) Essa Providência o homem comum só pode imaginar como um Pai grandiosamente elevado. Apenas um ser assim é capaz de conhecer as necessidades da criatura humana, de ceder a seus rogos e ser apaziguado por seus arrependimentos. Tudo isso é tão claramente infantil, tão alheio à realidade, que para alguém de atitude humanitária é doloroso pensar que a grande maioria dos mortais nunca se porá acima desta concepção de vida. Ainda mais vergonhoso é constatar que um bom número de contemporâneos, embora percebendo como insustentável essa religião, procuram defendê-la palmo a palmo, numa lamentável retirada.
[continua]

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Sigmund Freud, Por que a Guerra? Cia. das Letras, São Paulo, 2013.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

EM BUSCA
NASCIDO PARA SABER
Fatti non foste
Bronze, 2016 
Matteo Pugliese


Considerate la vostra semenza: fatti non foste a
viver come bruti, ma per seguir virtù e conoscenza.
Reflete sobre vossa origem: não haveis sido feitos
para viver como animais, mas para praticar
a virtude e aprender a conhecer.
Inferno, Canto 26 
Dante

Sempre que um leitor se manifesta sobre meu texto, eu prontamente respondo para que todos acompanhem. Isso mostra que os leitores estão atentos aos assuntos propostos e, apesar de concordarem com a argumentação, não deixam de dar opiniões pertinentes, via de regra complementares sobre tópicos que ampliem o debate. As questões trazidas em cima do último post, embora sejam parecidas, pedem abordagens distintas. A chave para entender o problema está na inteligência.

O primeiro ponto diz respeito aos “mercadores de ilusão”, sujeitos que exploram a boa-fé alheia, a ingenuidade e a falta de conhecimento do público sobre assuntos nos quais se julgam especialistas, quando não passam de amadores, entusiastas, diletantes aventureiros, mas é verdade também que, como diz o leitor, é a demanda que determina a oferta”, no que está certíssimo. Eu nunca disse o contrário e só não entro nesse aspecto por julgar óbvio demais: só há vendedores porque há compradores! Se você quiser um perfume à base de lágrimas de castor da Manchúria, ou um Toscano Sassicaia safra 1996, com certeza encontrará quem os tenha. Digo com frequência uma frase que resume tudo: Haverá sempre oradores medíocres enquanto houver plateia medíocre a lhes aplaudir. Se há compradores, há vendedores.

O outro assunto trazido por uma leitora é mais complexo e mais delicado, uma vez que, adepta do espiritismo, sente-se desconfortável com as críticas. Nesse quesito, trata-se de , terreno que mexe fundo com suscetibilidades. Complexo e delicado porque, mais uma vez, tônica deste blog, estamos falando da fragilidade do ser, da sua covardia intrínseca, seus medos existenciais, sua incompreensão sobre a vida e a morte e a imperiosa necessidade de crer em algo que o transcenda, que esteja acima do seu entendimento para se tornar uma âncora. Em última instância, a crença em espíritos, vida após a morte, reencarnação e temas afins não passa de estratégia psíquica para ocultar o terrível temor da finitude. É claro que os defensores da doutrina negarão firmemente esse fato, recorrendo aos ensinamentos dos espíritos, às “indiscutíveis” mensagens psicografadas e outras “evidências” como provas inegáveis da existência do “outro lado”. Reitero uma velha expressão: servidão voluntária. Reitero outra: quem vive ajoelhado desconhece a própria estatura. A leitora alega, em favor de sua convicção, que na instituição que frequenta não há charlatães, ao contrário, são pessoas de bom nível cultural, e que
A doutrina espírita vem ocupando a grade curricular das universidades e sendo defendida por gente para lá de instruída, ex-reitor de universidade, médicos, juízes, professores muito conceituados.
Eis um aspecto importante a ser discutido. Ingenuamente, recorre-se ao argumentum magister dixit - apelo à autoridade ou argumento de autoridade, uma falácia lógica utilizada recorrentemente para evocar a reputação de alguma autoridade buscando validar um argumento - que não o é de fato -, um expediente equivocado por apoiar-se tão somente na credibilidade do personagem e não nas razões que sustentam sua proposição. Ainda mais no âmbito da investigação de uma realidade que transcende a experiência sensível, portanto, incapaz de oferecer fundamento científico legítimo, o que se tem são meras opiniões, calcadas em subjetividades que não podem se converter em argumentos.

Tais opiniões, sistematicamente repetidas, tornam-se doxas - crenças comuns ou opiniões populares - e depois, dogmas, que não permitem discussões e que, por isso mesmo, emolduram a zona de conforto do sectário. Alguém “instruído”, seja médico, professor ou juiz, não implica que esteja imune a crenças pessoais. Uma pessoa pode ser muito culta e acreditar em discos voadores, ter vasto saber filosófico e afirmar que a Terra é plana. Veremos adiante que informação e conhecimento não têm ligação com inteligência. Além disso, espiritismo não integra nenhuma grade curricular universitária, apenas é objeto de interesse de núcleos específicos de estudo e pesquisa. A complexidade do tema vai muito além destas poucas linhas.

Numa era em que a informação preenche de forma  agressiva todos os espaços e ao alcance dos dedos, é paradoxal, condenável e injustificável que o conhecimento esteja sendo posto de lado em prol de um imediatismo consumista irrefreável. Dito de outro modo, o homem não se dedica mais à reflexão prolongada do todo, ao amadurecimento das questões, à análise critica, à dialética refinada, exercendo o “qualquer coisa serve” desde que atenda às suas necessidades. Informação e conhecimento não produzem inteligência, que é inata ao ser: ou o sujeito é inteligente ou jamais será. Há muita gente iletrada, não instruída, que demonstra inteligência no trato da vida, enquanto que muitos ditos intelectuais carecem desse atributo. Há, claro, os que são eruditos e muito inteligentes.

Filosoficamente, inteligência é a capacidade de aprender, ter a real percepção das coisas do mundo e daquilo que é, saber encontrar soluções, ter consciência de si. Para Platão, inteligência é a esfera do conhecimento que compreende a ciência e a dianoia - conhecimento prévio, intuitivo. Dianoia - grego  dia noien, que pode significar, de modo mais profundo, pensamento, escuta, silêncio, poiesis. O prefixo dia - entre, através de, por meio de, junta-se a logos - dia-logo. Dialogar não é escutar em silêncio o outro? Ainda segundo Platão, inteligência opõe-se a crença

De fato, só informação não basta, é preciso aprender a conhecer e isso compete à inteligência, à consciência (latim conscius - saber o que fazer, e sciens - conhecimento obtido pela leitura, estudo e erudição). São poucos os que conseguem concatenar as duas coisas. Já que fomos feitos para o saber, a rota de fuga da desinformação, que leva à incompreensão, a opiniões insustentáveis na origem e à leitura distorcida dos fatos passa pelos caminhos do conhecimento, da consciência, da reflexão e da inteligência. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

EU NÃO FALO JAVANÊS



A menos que você saiba javanês, o título fica intraduzível. Do que estou falando? O título é inspirado no conto de Lima Barreto “O Homem que Sabia Falar Javanês”, a história de um homem que não falava javanês, mas como precisavam de um professor desse idioma, ele se dispôs a ensinar, já que os alunos desconheciam a língua. Barreto faz uma crítica bem-humorada sobre os falsos intelectuais, sujeitos que se arvoram em conhecimentos que não têm mas pensam ter, ou ainda pior, sabem que não sabem e mesmo assim perpetram a farsa. Você sabe para quem é o recado.

Entretanto, a bem da verdade, há situações nas quais o discurso é incompreensível de fato porque o orador tem amplo conhecimento da matéria, mas esquece que o público não, isto é, fala apenas para os seus pares. Por exemplo, veja o argumento de um magistrado falando “juridiquês”:
Vossa Excelência, data maxima venia, não atinou com as entranhas meritórias doutrinárias e jurisprudenciais em suas minudências acopladas na inicial, que caracterizam, hialinamente, o dolo sofrido.
Você pode até se esforçar para tentar entender o que diz o filósofo ou o físico, o químico ou o biólogo, o sociólogo ou o cientista da religião, mas, se não tiver alguma familiaridade com o assunto, sua compreensão fracassará. É o que popularmente se diz isso é grego para mim”. Ou javanês. Mas o que nos interessa discutir é o falso conhecimento  ou a falta mesmo  de certos indivíduos, que se propõem a dissertar sobre aquilo do qual não fazem a menor ideia do que seja. A situação piora quando o público tem muito interesse no que está sendo exposto mas é completamente leigo. Aí o desastre é total. Os temas que se encaixam nesse contexto são os esotéricos, os pseudo científicos, os místicos por excelência, que despertam ou estimulam o desejo natural de se saber mais sobre o imponderável, o inacessível, o “transcendente” e o maravilhoso

Veja, por exemplo, se alguns deles fazem parte do seu cotidiano: universos paralelos, hiperespaço, multiversos, portais dimensionais, engenharia reversa, cosmologia, grande colisor de hádrons, Bolha de Alcubierre, física quântica, propulsão iônica, teletransporte, vórtices energéticos, transcomunicação, parapsicologia e, claro, ufologia. Não, não estão na sua agenda de estudos e pesquisas, quando muito, um interesse momentâneo que flerta com o entretenimento ou a mera curiosidade. Já os doutos especialistas transitam com invejável naturalidade em palestras e cursos avançados que seduzem (seductio – afastar da realidade pelo jogo de palavras), iludem (illusio– burla, logro) e encantam (in cantare – usar palavras mágicas, enfeitiçar) os ouvidos predispostos ao feitiço.

Não há como não nomear essa patranha indecente de delinquência intelectual, analfabetismo cognitivo e atrofia mental. Já não se trata mais de uma convicção, mas de alienaçãodesrespeito, mistificação, obscurantismo e burrice, com alto índice de psicopatia. Quando o tema agrada, a audiência se empolga mesmo não entendendo uma vírgula do que está sendo dito, simplesmente porque é o que quer ouvir. Convenhamos, não é nada louvável ser aplaudido por uma plateia de ineptos.

Você me perguntará: Mas estes senhores não podem ter conhecimento legítimo do assunto que ministram? Eu asseguro que desse conteúdo eles não têm a menor noção do que estão falando porque são, todos, apedeutas. Suas biografias denunciam que mal sabem amarrar os próprios sapatos, quanto mais chegar à pagina três de qualquer daquelas questões; no entanto, arrotam prepotência e soberba acantonados em sua ignorância, atrás de aplauso e notoriedade com intenções mais que suspeitas. A exploração da boa-fé alheia e a paranoia cretina desses sujeitos não têm freios nem limites. Essa gente fala javanês.

A estapafúrdia tese da Terra Oca colide com a da não menos extravagante Terra Plana, e juntas geram a emergente e surreal Terra Convexa! Hiperespaço, portais dimensões e universos paralelos são fascinantes incursões ficcionais, o mesmo valendo para teletransporte, transcomunicação e outros devaneios em nome da ciência do futuro. O que se tem é um caldo de enunciados disparatados sem nexo, sem lógica e sem razoabilidade. O que se tem é um corpo cada vez mais doente, desfigurado, acéfalo, despedaçado e agônico. É por essas e outras que este blog existe, a sua função é trazer informação assentada em literatura da melhor qualidade, na experiência de longa data, e regido pelo senso de responsabilidade.

Ainda que meus textos possam ser eventualmente mais complexos que o esperado, eles primam pela honestidade de propósito: esclarecer, informar, depurar e provocar. Sim, com frequência faço críticas duras e com razão; sim, com frequência uso expressões um tanto pesadas porque necessárias, e, sim, com frequência trago questões que não fazem parte da rotina dos leitores, o que certamente dificulta absorver. É compreensível, se fosse fácil o blog não teria razão de existir. Não escrevo com fins doutrinários ou de persuasão, mas no intuito de reflexão, debate e aprendizado mútuo. Não é o que você espera de mim? Para isso, em meio a tanta complexidade, procuro ser o mais claro possível porque, afinal, aku ora nganggo basa java  eu não falo javanês!