Obras

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sexta-feira, 29 de abril de 2016


estranho mundo paralelo da Ufologia 



Nosso espírito é permanentemente assediado por um exército de delírios, paranoias, visões, transtornos de toda espécie que às vezes nem percebemos. Ou não gostamos de admitir. Mas eles fazem parte da nossa personalidade, um traço marcante da psique, segundo Jung. Um mundo paralelo muito desconfortável. O problema é o que acontece quando esses distúrbios se manifestam.

Esse mundo paralelo que convive com o real está abarrotado de teorias conspiratórias, fantasmagorias, alucinações,  doppelgängers (alucinações consigo mesmo), doenças imaginárias, delírios persecutórios e sensação de estar sendo vigiado. Você sabia que 94% das pessoas afirmam se sentirem observadas o tempo todo? Casos mais severos a medicina identifica como esquizofrenia, insanidade, psicose. O psicanalista Bion reforça que, por mais evoluído que seja, o ser humano contém potencialmente mecanismos mentais e respostas derivadas da personalidade psicótica, que se expressam como uma séria hostilidade contra o aparelho mental, a consciência e as suas realidades interna e externa.

As origens dessas perturbações são as mais variadas, endógenas e exógenas. A Psiquiatria, a Psicologia, a Psicanálise, as Neurociências em geral atendem essa psicopataologia. As alucinações e as psicoses são as mais comuns, e denotam um conflito entre o ego e o mundo externo - dissociação, distorção e rejeição da realidade. As fendas surgidas dessa fratura abrem espaço para novas representações, consoantes as exigências internas particulares do indivíduo.  

Por que estou dizendo tudo isso? Por óbvio, porque esse quadro sintomatológico tem sua particularidade na Ufologia, ocupando todos os espaços: abduções (sequestros), vozes, mensagens psicografadas, aparição de entidades, viagens interdimensionais e temporais, sinais cutâneos, implantes, sequelas físicas e experiências oníricas, sexuais ou não, tomadas como verdadeiras, além das citadas acima, isoladas ou em conjunto.

Isso vale não só para contatados, testemunhas e abduzidos como também, numa porção significativa, para os ditos ufólogos, o que é grave e lesivo. Sou amigo dos meus amigos, mas não poupo quem apresente sintomas dessa ordem atribuindo envolvimento extraterrestre. E eles estã por aí. Esse mais que bizarro universo paralelo é tão ou mais real que a própria realidade. O leitor nem queira saber o que contém a caixa preta da Ufologia.

Atenção agora: seria leviano generalizar a casuística ufológica como sendo toda ela de cunho psicótico, mas alerto que uma generosíssima fatia com certeza é. Os casos que não se encaixam nesse perfil estão sob a tenda da ilusão, da fraude, da farsa, da mentira, do logro e da mistificação. Quer dizer que não existem casos autênticos? Não sobra nada? Não. Quando sobra, é porque foi muito mal investigado, levando a resultados inconclusivos ou servindo a interesses convenientes.

Imagino alguns leitores surpresos e outros, desconfiados, mas tem muita gente esperneando ou escarnecendo com tamanha "heresia". Lembro, entretanto, que, enquanto persistir esse cenário fantasioso, circense e delirante, a ciência e a academia jamais abrirão suas portas nem para os bem intencionados. Isso só será possível quando se cumprir a recomendação do crítico literário Antonio Cândido (aqui parafraseada: "Fecundar o ensaio acadêmico com a especificidade da narrativa ufológica e, ao mesmo tempo, enriquecer a visão crítica dos fatos através da formação universitária."*

Esse tem sido muito modestamente meu compromisso permanente, mesmo sem a necessária formação acadêmica, qual seja, o de sedimentar sólidas pontes de conhecimento entre campos tão distintos e diametralmente opostos. É preceito fundamental do saber o estudo transdisciplinar sistemático e continuado da matéria-alvo, a terapêutica mais eficaz para conter a sangria desatada da ignorância. Afinal, sem bússola, nenhuma embarcação se lança ao mar.

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* "Fecundar o ensaísmo acadêmico com a clareza do texto jornalístico e, ao mesmo tempo, enriquecer a visão crítica dos fatos através da formação universitária". Exercícios críticos. Leituras do contemporâneo. João Cezar de Castro Rocha. Argus. 2008. p. 25.

SACKS, Oliver. A Mente Assombrada. Cia. das Letras. 2013.
JUNG, Carl G. Psicologia do Inconsciente. Vozes. 1980.
BION, Wilfried. R. Estudos Psicanalíticos Revisados. Imago. 1984.



sábado, 23 de abril de 2016


Em lugar de ter esperança, tenha coragem



No post Você não precisa de muletas... uma das perguntas era se você é do tipo que  “Encara o mundo de frente com coragem e soberania, ou se refugia medrosamente nas sombras de uma delirante e falsa espiritualidade?” Pois um leitor assumiu o refúgio dizendo textualmente: Torço para que uma força desconhecida reverta uma situação desfavorável. Com certeza vou botar a mão num vespeiro, e ainda que você não concorde comigo, pensar não dói.

O leitor recorreu explicitamente à “transferência de responsabilidade”, delegando a poderes sobrenaturais a tarefa de resolver seus problemas, ou “reverter uma situação desfavorável”.  Em outras palavras, ele tem esperança. Ter esperança é ficar inerte, é sentar e esperar acontecer alguma coisa que atenda seus desejos, suas carências ou necessidades. A isso chamamos milagre, fato extraordinário, maravilhoso, 'sinal de uma vontade divina', diz Abbagnano. A raiz etimológica vai além de miracolo, que deriva de mirare - espelho, ou “encantar-se consigo próprio”. A divindade sou eu?. Existe algo mais corrosivo para o espírito humano?

O que o nosso caro leitor quer, transferindo um encargo seu para outrem, caracteriza, para usar uma expressão da moda, “desvio de finalidade”, ou seja, é o mesmo que usar placebo para tratar fígado necrosado. A bem da verdade, esse desvio atinge todos os estratos culturais, da fé no prêmio da loteria ao torcedor que paga para o santo se o goleiro defender o pênalti fatal; do político que cumpre promessa caso eleito ao estudante que sobe de joelhos a escadaria da catedral ao passar no vestibular. Existe algo mais apalermante para o espírito humano?

Que me perdoem o leitor e todos aqueles que pensem como ele, mas não se trata de discutir religião ou ateísmo, mas paixões. Sim, paixões, do latim passio – passividade, sofrimento, suportar a dor. Ter esperança é exatamente isso - suportar a dor e o sofrimento passivamente, esperando que uma força superior venha mitigar o infortúnio. Em sentido filosófico, ainda que rude, ter esperança é indicativo de debilidade, ignorância, tristeza, insegurança, medo. Em sentido prático, esperança é um mecanismo de defesa contra a realidade. Existe algo que enluta o mais espírito humano?

Como psicanalista, filósofo e sociólogo, Erich Fromm era profundo estudioso da alma, e não fazia rodeios na hora de aconselhar. Para ele, o problema da religião não se resume simplesmente a “Deus”, mas, principalmente, ao homem, à relação consigo mesmo e com os outros. Ele condena a idolatria, que conduz ao estado de alienação, à prostração e ao aniquilamento da individualidade. Existe algo mais ignóbil para o espírito humano?

O que é mais digno: lutar com suas próprias forças e coragem em busca do que se quer, ou “sentar e esperar” que um poder invisível faça o serviço? Fromm propõe uma longa reflexão a respeito, apontando as diferenças entre a religião autoritária e a humanista. Naquela, o homem é submisso, fraco, penitente, insignificante, vazio e obediente a um poder transcendente. Nas palavras de Calvino “(...) humildade é a submissão sistemática de quem se sente dominado por uma profunda certeza de sua miséria.” Existe algo mais empobrecedor para o espírito humano?

Na filosofia humanista, ao contrário, quem está no centro e no poder é o homem, para, com a força da razão, entender a si e o seu lugar no universo. O pleno desenvolvimento da razão está umbilicalmente relacionado à liberdade e à independência, estimulando o indivíduo a ouvir a voz madura e sábia de sua consciência. Não é tarefa fácil, é para fortes. É o que Nietzsche nos impõe. Minha recomendação, bem mais modesta, é não deixar a vida em estado de suspensão, desligar o piloto automático. Não esperar, não adormecer, não negociar, não fugir. Trabalhar, amar, lutar. Não existe nutriente melhor para o espírito humano.

Nota: “Espírito humano” não é redundância, é pleonasmo legítimo para conferir intensidade à expressão.
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FROMM, E. Psicanálise e Religião. Ibero Americano. 1966.
DURAND, G. O Imaginário. Difel. 2010.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão. L&PM. 2010.
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes. 1992.


sábado, 16 de abril de 2016


Sonhos com aliens são reais.
Achar que aliens são reais é sonho

O tema de hoje foi inspirado em mais um comentário de leitor. Não sei se ele tem conhecimento da filosofia hindu (eu não tenho), mas um extrato dessa literatura diz mais ou menos a mesma coisa: Os homens não têm os sonhos dos deuses, mas os deuses são os sonhos dos homens. Esse é um dos mais fascinantes mistérios da vida humana, que autor ou obra nenhuma é capaz de desvendar. Falo dos sonhos, não dos deuses. O sonho habita o oceano de profundezas abissais do inconsciente, e a luz, quando chega, só revela sombras indistinguíveis. Sonho nem Freud explica, mas bem que tentou,

"Esforçar-me-ei ainda por elucidar os processos a que se devem a estranheza e a obscuridade dos sonhos, e por deduzir desses processos a natureza das forças psíquicas por cuja ação concomitante ou mutuamente oposta os sonhos são gerados." Trecho do prefácio de A Interpretação dos Sonhos, onde já expressava sua preocupação com a complexidade do assunto.

Jung também se dedicou com muita intensidade e competência à dinâmica do inconsciente, mas quando indagado sobre sonhos, admitia que três décadas e meia de estudos não foram suficientes para lhe trazer uma compreensão plena do problema. Uma confissão significativa. Mesmo assim, não fugiu da raia. As filosofias orientais, o ocultismo, a mística e os discos voadores, entre outros, pontualmente estiveram no foco  de seu interesse psicanalítico.

Em Um Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu, Jung discorre sobre as experiências oníricas com discos voadores, ou Óvnis, como ele cautelosamente se referia: "Nos outros casos [sonhos], uma análise psicológica comparativa, mais ou menos profunda, leva à mesma conclusão. Para o leitor menos familiarizado com a psicologia do inconsciente, gostaria de observar que minhas conclusões não brotam de minha livre fantasia, como muitas vezes se supõe levianamente, mas estão fundamentadas sobre resultados de pesquisa da simbologia histórica." O itálico é ênfase meu. 

Depois, ele ressalta que "Este método [da amplificação] permite a conclusão - ao que me parece bastante segura - de que nos meus exemplos manifesta-se de forma unânime um arquétipo conhecido como central, que eu denominei o si-mesmo." O si-mesmo, a chave dourada que abre as pesadas portas desse castelo. Pensadores de intenso brilho iluminam o caminho: Paul Ricouer diz com todas as letras:  O si-mesmo como um outro. Arthur Rimbaud usa a gramática com sutileza:  Eu é um outro, e Fernando Pessoa abusa do lirismo: O universo é o sonho de si mesmo. Quem entendeu a mensagem sabe do que eles estão falando, e comprova porque 'profundezas abissais' não foi exagero.

De volta a Jung, 'Mito' e 'Coisas' podem parecer desimportantes, mas é inequívoco que, para ele, o 'disco voador' está muito além de sua suposta materialidade, e que os tentáculos da relação sonho/disco se estendem aos campos cultual, social, psicológico, histórico, simbólico e do imaginário. Não é pouca coisa, ao contrário, é muito mais do que parece ser. Foram esses os vetores fundantes da minha correção de rota no entendimento do fenômeno.

Assim, não tem problema algum sonhar com naves e alienígenas, anjos, ogros, vampiros, deuses, grilos falantes ou unicórnios. O problema é acreditar que sejam reais. Tem quem ache, ao sonhar com discos voadores e extraterrestres, que viveu uma experiência verdadeira. Sonhar com fogo não faz ninguém acordar chamuscado. Cuidado, um antigo ditado popular adverte que "Quando os deuses querem punir alguém, começam por lhe tirar o juízo".

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FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos, v. 2. Imago. 1980.
JUNG, C. G. Um Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu. Vozes. 1991.
______. Psicologia do Inconsciente. Vozes. 1983.
______. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes. 2000.


sábado, 9 de abril de 2016


Você não precisa de muletas metafísicas para viver


Como anunciei no post anterior, concluo agora a discussão sobre crença, aumentando um pouco a temperatura. Se você quiser pensar a respeito com serenidade e depois debater, com bons e sólidos argumentos, estarei pronto. A ilustração mostra o tipo de crença que estou falando e, embora  incompleta - o pacote é bem maior - é suficiente para introduzir o assunto. O resto do entendimento fica por sua conta.

Sim, refiro-me às superstições, rezas, lendas, videntes, oráculos, ocultismo, fantasmas, encantamentos, entidades, mestres, seitas, curandeirismo, paranormais, mistérios, anjos, alienígenas... um complexo sinérgico de crenças à disposição do cliente. Um autêntico festival do imaginário transcendente, resquícios do 'pensamento mágico' praticado pelos antigos, um coquetel maliciosamente embriagador de utopias, ilusões e fantasia,s do qual se nutrem e no qual repousam docilmente os espíritos notadamente imaturos.

Estou falando daquela transcendência cosmética, artifícios ou "penduricalhos" que o homem carrega no bolso e na alma e a eles recorre sempre que necessitado. E ele está sempre necessitado. É uma conduta consagrada em nome da sua fraqueza, covardia, insegurança e outros débitos, posto que a crença é orgânica, social, psicológica e cultural. Nenhuma dúvida quanto a isso, é dado de realidade. As muletas metafísicas servem a essa alma claudicante, em desequilíbrio, que não se sustenta por si só. Ela precisa destes expedientes porque não dá conta de suas dores, sua fragilidade e sua vulnerabilidade.

O mundo real é duro, implacável, não permite conversa fiada, subterfúgios, tolices, artimanhas, fugas, falsas transcendências. Ele já tem a sua, mais elegante, eloquente e majestosa, e é a ela e somente a ela que podemos nos curvar. A solução fabricada pelo homem é de uma pobreza de causar pena, falaciosa, apequenadora dele próprio, e nem se dá conta disso. Não se dá conta porque não vive sem dela.

Nietzsche lacera mais a ferida quando denuncia que a invenção de um ideal é a mentira maior, a maldição que oprime a realidade. O caldo que se extrai dos seus escritos e de Durand, Bauman, Fromm e tantos outros revela que o medo instalado, absorvido, fortalecido, auto-alimentado e perpetuado no cerne do espírito acaba provocando um efeito colateral de busca de heróis salvadores e protetores. Quer mensagem mais direta? Se quiser, tenho uma dúzia delas. A crença, concorde-se ou não, é obstrutiva, deletéria e contraceptiva para o desenvolvimento do intelecto.

Essa busca pode ser aplicada também a outro ponto muito delicado, objeto de intensa fé e debates vulcânicos: vida após a morte, reencarnação, mundo espiritual, o 'além'. É um outro viés nesse embate entre a finitude humana, a atemporalidade da vida e a solidão cósmica, do qual falaremos brevemente. Isso posto, deixo uma lição de casa para você pensar:

Você é o tipo de pessoa que dispensa aquelas muletas para tocar sua vida, ou bate três vezes na madeira e faz figa para espantar o azar?

Pensa e age de acordo com sua voz interior, ou se deixa levar por signos, amuletos, rezas e demiurgos que exploram a ingênua credulidade humana?

Encara o mundo de frente com coragem e soberania, ou se refugia medrosamente nas sombras de uma delirante e falsa espiritualidade?
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LE BON, G. As Opiniões e as Crenças.  Ícone. 2002.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. Cia. das Letras. 2006.
BAUMAN, Z. Tempos Líquidos. J. Zahar. 2007.
DURAND, G.  A Imaginação Simbólica. Edições 70. 1993.



sábado, 2 de abril de 2016


Que importa o saber se a demanda é por crença?


Dois comentários de O instinto que me move estão unidos por um quase imperceptível fio: numa ponta, o instinto do saber preconizado por Freud e endossado por Melanie Klein; na outra, o leitor que afirmou não ter se convencido dos argumentos apresentados no post anterior - Afinal, porque pesquisa.... Sirvo-me deles para discutir sobre saber e crença sem me estender muito, porque o espaço não permite. Estamos diante de um quadro poliédrico amplo, delicadíssimo, extremamente complexo e profundo, sem solução ou respostas. Tentarei ser sintético tanto quanto possível, confiando na sua capacidade de apreensão. Tenho a meu lado alguns nomes de peso para oferecer um norte para sua reflexão.

Se o mundo caminha sobre a esteira do conhecimento, ou, se quiser, pelo instinto do saber, do conhecer, do pensar, ele se retrai e se subtrai quando giram as espirais enganadoras da crença. Qual crença? A crença mística, metafísica, mágica, aquela da mentalidade ancestral que ainda persevera no mundo contemporâneo com grande força. E o mundo de hoje, volátil, vulnerável, atordoado, apresenta um cenário muito mais propício à fé que à razão, e olhe que não estou falando apenas da fé religiosa, mas também da fé política, da científica, da social, da ideológica. Dos ídolos com pés de barro, enfim. Ao irromper a descrença nesse mundo, um paradoxo - se impõe uma perversa e desesperada necessidade de crença, mas de outra crença.

O que é crença e em que ela se distingue do conhecimento? Uma crença é um ato de fé de origem inconsciente, que nos força a admitir em bloco uma ideia, uma opinião, uma explicação ou uma doutrina, onde jaz o reino dos sonhos e das esperanças, no qual  razão nenhuma tem influência. A crença faz as pessoas acreditarem em fantasmas, em espíritos, duendes, oráculos ou qualquer outra coisa em que queiram ou precisem acreditar. As crenças quiméricas permanecerão sempre geradoras das longas esperanças, elas originaram os deuses através das eras e, nos nossos dias, o ocultismo, último ramo da fé religiosa, que nunca morre.

Como vimos, Melanie nivela a infância no mesmo patamar em que se inscreve o homem primitivo. Comecemos por aí, retomando Freud: “Compreendemos como o homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal.” (...) “Um homem de dias posteriores, de nossos próprios dias, comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção; inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem o apoio de seu deus.”  O sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm (1900-80), ainda que fizesse  algumas críticas ao trabalho de Freud, era concordante ao reconhecer "a necessidade de um sistema comum de orientação e  e de um objeto de devoção serem inerentes à condição humana." Vale a pena reler o parágrafo.

Ao se reduzir tudo a uma questão de fé, reduz-se perigosamente o pensamento a uma realidade de fachada, ficcional, tão ou mais dissolvível quanto o próprio mundo nela contido. Para Freud, seria fácil aceitar as coisas desse modo, porque o argumento "repousa numa premissa otimista e idealista". Contudo, para ele, nosso intelecto se perde com facilidade, pois é muito mais fácil acreditar naquilo "que vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo". O homem não gosta quando o tiram de seu repouso. As respostas mais primárias são suficientes. Correr atrás de explicações exige ação, esforço, e isso "cansa". Pascal também tem uma palavra sobre a arte de persuadir, observando que os homens "são quase sempre levados a crer, não pela prova, mas pelo agrado." Só uma consciência autônoma, madura e responsável tem capacidade de refletir sobre suas escolhas e se mover pela razão, pelo pensar, pelo saber, que se alimenta e se multiplica pela dúvida, não pela certeza. Mas o espírito humano, demasiadamente humano, tem  notória aversão à duvida e à incerteza.

O homem é livre para deliberar sobre qual caminho seguir: submeter-se ao culto de uma força exterior autoritária, ou cultivar a razão e o desenvolvimento interior. Recorro então a Ernst Cassirer (1874-1945). filósofo alemão, que diz: "O que perturba o indivíduo não são as coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as coisas." Fromm completa afirmando que se o homem prescinde da ilusão de um deus protetor, se encara sua própria solidão e insignificância no universo, ele se sentirá como a criança longe de sua casa paterna. O antropólogo Gilbert Durand (1921-2012) joga a pá de cal, entendendo que a criança, para atingir o nível da realidade, deve deixar o modo imaginário da visão de si e utilizar o modo simbólico. Para Jung, está muito claro que "O desejo inconsciente é infantil, ou melhor, é um desejo proveniente do passado infantil que não se adequa mais ao presente, razão pela qual é reprimido, por motivos morais. Pode-se dizer que quase tudo o que vem do inconsciente tem primeiramente um caráter infantil.". Atenção, há um recado explícito aqui que não deve ser ignorado!

É indiscutível que se o saber é um movente contínuo, a crença, sendo psicológica, unidirecional, coletiva por contágio, é paralisante, pois está além da crítica, da razão e da reflexão. Ela se fecha em si mesma. Quem gostar, embrulha e leva. A crença pertence ao mundo da fantasia e da ilusão, próprio da criança, preenche lacunas e acalma espírito; já o saber habita o mundo dos inquietos, dos reformadores e dos contestadores. Jung é taxativo e contundente: "A maior vitória da sanidade foi a conquista da racionalidade." São dezenas de autores e obras que versam sobre a questão com grande profundidade e competência, mas por ora basta, já me alonguei demais. Continuarei no próximo post.

Assim, diante do do mundo que está aí, refaço a pergunta: de que vale buscar a verdade quando a procura é pela crença? As crianças acreditam enquanto não sabem, mas e os adultos? Imagino que você tenha percebido que "crença" é um largo guarda-chuva que abriga também, claro, o objeto alvo de debate deste blog.


FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. Esboço de Psicanálise e outros         trabalhos. Obras completas v. XXIII. Rio de Janeiro. Imago. 2006.

CASSIRER, E. Ensaio sobre o Homem. Uma introdução a uma filosofia  da cultura. São Paulo. Martins Fontes. 1984,

FROMM, E. Psicanálise e Religião. Rio de Janeiro. Livro Ibero Americano. 1966.

JUNG. C. G.  Psicologia do Inconsciente. Petrópolis. Vozes. 1980.

DURAND, G.  As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo. Martins Fontes. 2002.