Obras

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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

EN NOME DO PAI
Final

Chegamos ao fim da série na qual procuramos apresentar um recorte do pensamento de Freud sobre a influência das religiões e outras doutrinas em nossa vida individual e coletiva, não só sob o ponto de vista cultural e histórico, mas psicológico, psicanalítico e emocional. Para sintetizar todo este vasto e complexo conjunto de proposições, este enunciado do autor talvez possa ser útil: "A crença em deus subsiste devido ao desejo de um Pai protetor e de imortalidade, ou como um ópio contra a miséria e o sofrimento da existência humana". Você certamente compreendeu que este Pai tem várias faces, várias roupagens e circunstâncias. O grande desafio é superar o trauma infantil da proteção paterna, ou de qualquer outra proteção externa que dificulte o caminhar por conta própria. O grande desafio, enfim, diz Freud, é crescer.


Os enigmas do mundo apenas lentamente se desvelam à nossa investigação; há muitas perguntas que a ciência ainda não pode responder. O trabalho científico, porém, é para nós o único caminho que pode levar ao conhecimento da realidade fora de nós. Por outro lado, é apenas ilusão esperar alguma coisa da intuição e da meditação; elas nada podem nos dar senão informações – difíceis de interpretar – acerca de nossa própria vida psíquica, jamais acerca das perguntas cujas respostas são tão fáceis para as doutrinas religiosas. Introduzir o próprio arbítrio nas lacunas e, conforme opiniões pessoais, declarar esta ou aquela parte do sistema religioso mais ou menos aceitável seria sacrílego.

Tais perguntas são importantes demais para tanto; poderíamos dizer: sagradas demais.
Neste ponto, pode-se estar preparado para a seguinte objeção: “Bem, se até os céticos encarniçados admitem que as asserções da religião não podem ser refutadas pelo entendimento, por que não devo acreditar nelas, visto que possuem tanto a seu favor – a tradição, a concordância das pessoas e tudo o que há de consolador em seu conteúdo?” Sim, por que não? Da mesma forma que ninguém pode ser forçado a crer, ninguém pode ser forçado a não crer.

Mas que ninguém se compraza no autoengano de que com tais justificativas está seguindo os caminhos do pensamento correto. Se a condenação de “desculpa esfarrapada” cabe em algum lugar, então é aqui. Ignorância é ignorância; dela não deriva nenhum direito de acreditar em algo. Nenhum homem racional se comportará tão levianamente em outros assuntos nem se contentará com fundamentações tão miseráveis para seus juízos, para sua tomada de partido; ele se permite isso apenas em relação às coisas mais elevadas e mais sagradas. Na verdade, são apenas esforços para criar a ilusão, diante de si mesmo e dos outros, de que ainda se acredita na religião quando há muito já se está desligado dela.

Quando se trata de questões de religião, as pessoas se tornam culpadas de todo tipo de insinceridade e maus hábitos intelectuais. Há filósofos que expandem o sentido das palavras até que estas mal conservem algo de seu sentido original; chamam de “Deus” qualquer abstração nebulosa que criaram e então são deístas, crentes em Deus, diante de todo mundo; podem até se vangloriar por terem descoberto um conceito de deus mais puro, mais elevado, embora o seu deus seja apenas uma sombra sem substância e não mais a personalidade poderosa das doutrinas religiosas. Há críticos que insistem em declarar que uma pessoa que reconhece o sentimento da pequenez e da impotência humanas diante do todo do mundo é “profundamente religiosa”, embora não seja esse sentimento o que constitua a essência da religiosidade, mas apenas o passo seguinte, a reação a esse sentimento, a busca de auxílio contra ele. Quem não vai adiante, quem se conforma humildemente com o papel insignificante do homem na vastidão do mundo, é antes irreligioso no mais verdadeiro sentido da palavra.

Não está nos planos deste estudo tomar posição quanto ao valor de verdade das doutrinas religiosas. Basta que as tenhamos reconhecido em sua natureza psicológica como ilusões. Não precisamos ocultar, porém, que essa descoberta influencia imensamente a nossa atitude quanto à questão que para muitos deve parecer a mais importante. Sabemos aproximadamente em que épocas e por quais homens as doutrinas religiosas foram criadas. Se também soubermos os motivos pelos quais isso aconteceu, nosso ponto de vista em relação ao problema religioso sofrerá um sensível deslocamento. Dizemos a nós próprios que seria realmente muito bonito se houvesse um Deus, criador do mundo e Providência bondosa, se houvesse uma ordem moral universal e uma vida no além, mas é muito estranho que tudo isso seja da maneira como temos de desejar que seja. E seria ainda mais esquisito se nossos antepassados, pobres, ignorantes e sem liberdade, tivessem encontrado a solução de todos esses difíceis enigmas do mundo.


Psicanálise e Religião, Erich Fromm


O problema da religião não se resume ao problema de “Deus”, mas principalmente ao problema do homem nas suas relações consigo mesmo e com o outro. O mais importante é reconhecer se a atitude religiosa é “honesta” e genuína, e se concorre para seu pleno desenvolvimento e felicidade, ou se equivale à idolatria, permanecendo o ser humano em um estado de alienação e aniquilamento da sua própria individualidade.


O estudo do homem permite reconhecer que a necessidade de um sistema comum de orientação e de um objeto de devoção está profundamente enraizada nas condições da existência humana. Neste sentido, o ser humano não pode escolher entre ter ou não ter ideais, pois todos os homens são idealistas, mas o homem é “livre” para escolher entre os vários tipos de ideais. Pode escolher devotar-se ao culto de uma força exterior autoritária, ou pode preferir cultivar a razão e o desenvolvimento interior.
Espero que você tenha apreciado a leitura, e mesmo não concordando com as ideias apresentadas, submeta-as à reflexão. Freud se empenhou em tentar nos explicar, inaugurou uma escola de pensamento que pudesse legitimar e dar inteligibilidade a temas inauditos. É preciso reconhecer e retribuir seu esforço com um mínimo de introspecção e máximo de ação. Falar consigo mesmo ouvindo o próximo, olhar para dentro de si através do olhar de fora - do outro -, mas atenção, Freud não estava falando de likes e selfies. O ponto é outro, e atenção de novo, o custo dessa operação interna é alto. Há uma óbvia tensão aporística em jogo que só pode ser resolvida pela maturidade e autonomia, com todos os efeitos colaterais implicadose é aí que mora o problema! Você sabe do que estou falando, não preciso repetir. 


Para encerrar com uma singela reverência ao "Pai" da Psicanálise, tomo emprestada e faço minha a frase extraída de Eneida, de Vigílio (Livro VII, verso 312), a qual Freud usou como epígrafe em uma de suas obras:


Flectere si nequeo superos, Acheronte movebo
Se não posso mover os céus, moverei o inferno


Acheronte é o rio do inferno, Caronte é o barqueiro, A tradução da frase é: Se não posso mudar o acima, mudarei o abaixo. Se não me tocam todas as virtudes, livrem-se-me as falhas. Se não me é dado ser maior, que não seja menor. Se não posso ascender, que não caia. Na próxima postagem, a nau de Caronte nos levará, com todas as cores e dores, ao mais tenebroso abismo da experiência humana. Aguarde.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

ALÉM DA ALMA
Parte 4

Estamos perto do final da série, e reitero a recomendação: se você não leu os textos anteriores, faça-o, para absorver o conjunto da obra. São textos curtos de de fácil compreensão. Nesta penúltima parte, a questão em pauta trata das forças pulsionais que encorpam as crenças religiosas, ainda que tais pulsões se processem pelo poder dos desejos mais antigos sempre presentes no tempo histórico da humanidade, que atravessa uma penosa jornada de amadurecimento inteiramente dependente do amparo paterno. Um rito de passagem para a maturidade que vai muito além da alma.



Acho que preparamos suficientemente a resposta a ambas as perguntas. Ela se apresenta quando atentamos para a gênese psíquica das ideias religiosas. Estas, que se apresentam como proposições, não são produto da experiência ou resultados finais do pensamento; são ilusões, são realizações dos desejos mais antigos, mais fortes e mais prementes da humanidade, e o segredo de sua força está na força desses desejos. Já sabemos que a apavorante impressão do desamparo infantil despertou a necessidade de proteção – proteção através do amor –, que é satisfeita pelo pai; a percepção da continuidade desse desamparo ao longo de toda a vida foi a causa de o homem se aferrar à existência de um outro pai – só que agora mais poderoso.

Através da ação bondosa da Providência divina, o medo dos perigos da vida é atenuado; a instituição de uma ordem moral universal assegura o cumprimento da exigência de justiça que com tanta frequência deixou de ser cumprida na cultura humana; o prolongamento da existência terrena através de uma vida futura prepara o quadro espacial e temporal em que essas realizações de desejo devem se consumar. As respostas de questões enigmáticas para a curiosidade humana, como as da origem do mundo e da relação entre o físico e o psíquico, são elaboradas sob os pressupostos desse sistema; para a psique individual, significa um imenso alívio que os conflitos da infância que se originam do complexo paterno, nunca inteiramente superados, lhe sejam tomados e levados a uma solução aceita por todos.

Quando digo que tudo isso são ilusões, preciso delimitar o significado da palavra. Uma ilusão não é o mesmo que um erro, e ela também não é necessariamente um erro. A opinião de Aristóteles de que os insetos se desenvolvem a partir de restos, sustentada ainda hoje pelo povo ignorante, era um erro, e, do mesmo modo, a opinião de uma geração anterior de médicos de que a tabes dorsalis (do latim – problema de coordenação motora provocado por uma alteração degenerativa da medula espinhal, geralmente causada pela sífilis) era consequência de excessos sexuais. Seria abusivo chamar esses erros de ilusões.

Em contrapartida, foi uma ilusão de Colombo achar que tinha descoberto um novo caminho marítimo para as Índias. A parcela de seu desejo nesse erro é bem evidente. Pode-se chamar de ilusão a afirmação feita por certos nacionalistas de que os indo-germânicos são a única raça humana capaz de cultura, ou a crença, que apenas a psicanálise destruiu, de que a criança é um ser sem sexualidade. É característico da ilusão o fato de derivar de desejos humanos; nesse aspecto, ela se aproxima da ideia delirante psiquiátrica, mas, abstraindo da complicada construção desta, também dela se diferencia. Destacamos como essencial na ideia delirante a contradição com a realidade; a ilusão não precisa ser necessariamente falsa, quer dizer, ser irrealizável ou estar em contradição com a realidade. Uma mocinha plebeia, por exemplo, pode ter a ilusão de que um príncipe virá buscá-la. É algo possível; já aconteceram alguns casos desse tipo. Que o Messias venha e funde uma Idade de Ouro é muito menos provável; conforme a posição pessoal daquele que a julga, ele classificará essa crença como ilusão ou como análoga a uma ideia delirante.

Exemplos de ilusões que tenham se mostrado verdadeiras não são fáceis de achar. Porém, a ilusão dos alquimistas de poder transformar todos os metais em ouro poderia ser uma dessas. O desejo de possuir muito ouro, tanto ouro quanto possível, se encontra muito arrefecido por nossa compreensão atual das condições da riqueza; contudo, a química não julga mais impossível uma transformação dos metais em ouro. Portanto, chamamos uma crença de ilusão quando se destaca em sua motivação o cumprimento de desejo, ao mesmo tempo em que não levamos em conta seu vínculo com a realidade, exatamente do mesmo modo que a própria ilusão renuncia a suas comprovações.

Se, depois de nos orientarmos, nos voltarmos outra vez às doutrinas religiosas, podemos repetir: todas são ilusões, são indemonstráveis, e ninguém pode ser obrigado a tomá-las por verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão inverossímeis, se encontram de tal modo em contradição com tudo que descobrimos arduamente sobre a realidade do mundo, que podem ser comparadas – considerando devidamente as diferenças psicológicas – às ideias delirantes. É impossível julgar o valor de realidade da maior parte delas. Assim como são indemonstráveis, também são irrefutáveis. Ainda sabemos muito pouco para nos aproximarmos delas criticamente. 



A Civilização e os seus Descontentamos, Europa-América, 2005.

O homem comum entende como sendo a sua religião um sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explica os enigmas deste mundo com uma perfeição invejável, e que, por outro, lhe garante que uma Providência atenta cuidará da sua existência e o compensará, numa futura existência, por qualquer falha nesta vida. o homem comum só consegue imaginar essa Providência sob a figura de um Pai extremamente elevado, pois só alguém assim conseguiria compreender as necessidades dos filhos dos homens ou  enternecer-se com as suas orações e aplacar-se com os sinais dos seus remorsos.

Tudo isto é tão manifestamente infantil, tão incongruente com a realidade, que para aquele que manifeste uma atitude amistosa para com a humanidade é penoso pensar que a grande maioria dos mortais nunca será capaz de estar acima desta visão de vida

É ainda mais humilhante descobrir como é grande o número de pessoas, hoje em dia, que não podem deixar de perceber que essa religião é insustentável, e, no entanto, tendam defendê-la sucessivamente, numa série de lamentáveis atos retrógrados. Gostaríamos de pertencer ao número dos crentes, para podermos advertir os filósofos que tentam preservar o Deus da religião substituindo-o por um princípio impessoal, obscuro e abstrato, e dizemos: "Não usarás o nome de  Deus em vão!". Alguns dos grandes homens do passado fizeram o mesmo, mas isso não serve de justificação para nós; sabemos porque é que tiveram que o fazer.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

CREDO QUIA ABSURDUM?
Parte 3

Freud segue analisando o universo religioso sob a ótica psicanalítica, sem descurar dos aspectos culturais, sociais e históricos. Cabe trazer um novo trecho do Prefácio para clarear algumas possíveis zonas de sombra:


Ao escrever sobre religião naquele momento específico da sua obra, Freud luta para estabelecer a psicanálise enquanto campo de saber que formula uma concepção de aparelho psíquico, que por sua vez fornece a base de uma nova terapêutica para o sofrimento mental humano. O sofrimento mental humano não é nem o produto de forças exteriores, como a religião faz acreditar, nem o produto de lesões corporais ou de heranças familiares, como a medicina fazia crer até então. É na história singular de cada homem, em conjunção com as forças pulsionais que habitam seu corpo e inscritas na constituição de seu psiquismo, que encontramos as razões para o sofrimento psíquico que se expressa através de seu corpo e de sua alma.


Agora é preciso mencionar duas tentativas que dão a impressão de um empenho obstinado em fugir ao problema. Uma delas, de natureza forçada, é antiga; a outra, sutil e moderna. A primeira é o credo quia absurdum do padre da Igreja*. Isso significa que as doutrinas religiosas escapam às reivindicações da razão, que estão acima dela. Deve-se perceber a sua verdade interiormente, não é preciso compreendê-las. Só que esse credo é interessante apenas como confissão; como imperativo, não possui qualquer obrigatoriedade. Sou obrigado a acreditar em qualquer absurdo? Em caso negativo, por que justamente nesse? Não há instância alguma acima da razão. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma vivência interior que a ateste, o que fazer com as muitas pessoas que não têm semelhante vivência rara?

Pode-se exigir de todos os homens que empreguem o dom da razão que possuem, mas não se pode erigir uma obrigação que seja válida para todos sobre um motivo que existe apenas para bem poucos. Se alguém obteve a convicção inabalável na verdade real das doutrinas religiosas graças a um estado extático que o impressionou profundamente, que importa isso ao outro? A segunda tentativa é a da filosofia do “como se”. Ela afirma que em nossa atividade intelectual abundam suposições cuja falta de fundamento, cujo absurdo até, reconhecemos inteiramente. São chamadas de ficções, mas, por variados motivos práticos, teríamos de nos comportar “como se” acreditássemos nelas.

Tal seria o caso das doutrinas religiosas em razão de sua incomparável importância para a conservação da sociedade humana. Essa argumentação não está muito longe do credo quia absurdum. Penso, porém, que a reivindicação do “como se”¹ é de um tipo que só filósofos podem fazer. O homem que não seja influenciado em seu pensamento pelas artes da filosofia nunca poderá aceitá-la; para ele, a questão está liquidada com a confissão de absurdo, de irracionalidade. Ele não pode ser obrigado, precisamente ao tratar de seus interesses mais importantes, a renunciar às certezas que costuma exigir em todas as suas atividades habituais.

Recordo-me de um de meus filhos, que se destacou precocemente por uma insistência especial na objetividade. Quando se contava uma história às crianças, que a escutavam atentamente, ele vinha e perguntava: “Essa história é verdadeira?”. Depois que se respondia que não, ele se afastava com uma cara de desdém. É de se esperar que a humanidade logo passe a se comportar da mesma maneira em relação aos contos da carochinha religiosos, a despeito da intercessão do “como se”.

Atualmente, porém, ela ainda se comporta de modo bem diferente, e, em épocas passadas, apesar de sua indiscutível carência de comprovação, as ideias religiosas exerceram sobre ela a mais forte influência. Esse é um novo problema psicológico. Deve-se perguntar: em que consiste a força interna dessas doutrinas, a que circunstâncias devem a sua eficácia, que é independente de reconhecimento racional?


* Freud alude a Tertuliano (c.160 - c. 220), teólogo romano, um dos primeiros autores cristãos, apologético do cristianismo. A frase não se encontra em nenhuma obra sua, ms é atribuída a ele, e seu significado não é apenas "creio embora seja absurdo", mas "creio porque é absurdo", fazendo frente às heresias gnósticas: "Sem hesitações contrapomos  aos adulteradores da nossa doutrina o argumento preliminar da prescrição, em nome do qual proclamamos como única regra de verdade aquela que nos foi transmitida por Cristo mediante seus apóstolos., das quais é fácil constatar o quão tardios são estes discursos contestadores". (Cf. Giovanni Reale & Dario Antiseri, "História da Filosofia Patrística e Escolástica". Paulus, 2005, p. 78).

¹ Espero não cometer nenhuma injustiça se atribuo ao filósofo do “como se” uma perspectiva que também não é alheia a outros pensadores. (Cf. Hans Vaihinger, A filosofia do “como se”, 8ª ed, 1922, p. 68): “Incluímos no âmbito das ficções não apenas operações teóricas, indiferentes, mas também formações conceituais que foram imaginadas pelos homens mais nobres, às quais o coração da parte mais nobre da humanidade está afeito e que esta não se deixa arrebatar. E de modo algum queremos fazer isso – como ficção prática, deixamos que tudo isso subsista, mas como verdade teórica, perece.”


As Palavras de Freud. Cia. das Letras, 1998.

(...) No que diz respeito à proteção prometida pela religião aos seus adeptos, penso que nenhum de vós consentiria em subir para um automóvel cujo condutor declarasse não querer incomodar-se com as determinações que regulamentam a circulação para obedecer apenas aos ímpetos exaltantes da sua própria fantasia.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019


O ESPÍRITO, A PSIQUE
Parte 2

Nesta segunda parte do capítulo V de "O Futuro de uma Ilusão", Freud discorre sobre as relações da religião com o espiritismo e como este tenta se sustentar nas proposições daquela. Freud escreveu esta obra em 1927 e é um clássico absolutamente atemporal. Um mergulho nas profundezas abissais da psique à procura de si mesmo. Há semelhanças originais entre espírito e psique: De forma resumida, mas objetiva: Espírito, do verbo latino spirare, do grego pneuma - sopro, alento, aquilo que vivifica, intelecto - em geral o significado predominante na filosofia moderna e contemporânea, bem como na linguagem comum (Cf. Abbagnano). Psique, do grego psychē - sopro, inspiração (in spirare), mente, "alma da vida", alento!



Quando perguntamos sobre o fundamento da pretensão de que se acredite nelas [as ideias religiosas], recebemos três respostas que se harmonizam notavelmente mal entre si. Em primeiro lugar, merecem crédito porque nossos ancestrais já acreditavam nelas; em segundo lugar, possuímos provas que nos foram transmitidas precisamente dessa época antiga, e, em terceiro lugar, é absolutamente proibido questionar essa comprovação. No passado, esse atrevimento era punido com os mais severos castigos, e ainda hoje a sociedade vê com desagrado que alguém o renove. Esse terceiro ponto precisa despertar as nossas mais fortes reservas.

A única motivação de semelhante proibição só pode ser o fato de que a sociedade conhece muito bem o caráter duvidoso da pretensão que reclama para suas doutrinas religiosas. Caso contrário, ela certamente colocaria o material necessário, com a maior boa vontade, à disposição de todo aquele que busca formar a sua própria convicção. Por isso, passamos ao exame dos dois outros argumentos com uma desconfiança difícil de apaziguar.

Devemos acreditar porque nossos ancestrais acreditaram. Esses nossos antepassados, porém, eram muito mais ignorantes do que nós; eles acreditavam em coisas que hoje nos são impossíveis de aceitar. Manifesta-se a possibilidade de que as doutrinas religiosas também possam ser desse tipo. As provas que nos deixaram estão registradas em escritos que trazem, eles próprios, todos os sinais de serem indignos de confiança. São contraditórios, retocados e falsificados; quando relatam comprovações efetivas, eles próprios carecem de comprovação. Não ajuda muito afirmar que suas formulações, ou apenas seus conteúdos, têm origem na revelação divina, pois essa afirmação mesma já é uma parte daquelas doutrinas cuja credibilidade deve ser investigada, e nenhuma proposição pode provar a si mesma.

Chegamos assim ao estranho resultado de que precisamente as comunicações de nosso patrimônio cultural que poderiam ter para nós o maior dos significados, às quais cabe a tarefa de nos esclarecer os enigmas do mundo e nos reconciliar com os sofrimentos da vida – de que precisamente elas possuem a mais fraca comprovação. Não poderíamos nos decidir a aceitar um fato para nós tão indiferente quanto o de que as baleias parem seus filhotes em vez de colocar ovos se ele não fosse melhor demonstrável. Esse estado de coisas é por si só um problema psicológico bastante notável. E que ninguém acredite que as observações anteriores acerca da indemonstrabilidade das doutrinas religiosas contenham algo novo.

Ela foi percebida em todas as épocas, e certamente também pelos antepassados que legaram tal herança. É possível que muitos deles tenham nutrido as mesmas dúvidas que nós, porém se encontravam sob uma pressão forte demais para que ousassem expressá-las. E, desde então, um número incontável de homens se atormentou com as mesmas dúvidas, que queriam sufocar porque se julgavam obrigados a crer; muitos intelectos brilhantes sucumbiram a esse conflito, e muitos caracteres sofreram danos em razão dos compromissos em que buscavam uma saída.

Se todas as provas apresentadas em favor da credibilidade das proposições religiosas provêm do passado, é natural verificar se o presente, que pode ser julgado com mais acerto, também pode oferecer tais provas. Se, dessa forma, se conseguisse colocar a salvo de dúvidas mesmo que apenas uma única parte do sistema religioso, o todo ganharia extraordinariamente em credibilidade. É aqui que entra a atividade dos espíritas, que estão persuadidos da continuidade da alma individual e que pretendem nos demonstrar que essa proposição da doutrina religiosa é isenta de dúvidas.

Infelizmente, não conseguem refutar o fato de as aparições e as manifestações de seus espíritos serem apenas produtos de sua própria atividade psíquica. Eles evocaram os espíritos dos maiores homens, dos mais destacados pensadores, mas todas as manifestações e notícias que deles receberam foram tão tolas, tão inconsolavelmente ocas, que não se pode acreditar em outra coisa senão na capacidade dos espíritos de se adaptarem ao círculo de pessoas que os invoca.

[continua na próxima semana]


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Psicanálise e Religião, Erich Fromm

As religiões autoritárias estimulam a dependência humana. É fato que o homem está sujeito à morte, ao envelhecimento e à doença, mas uma coisa é reconhecer a dependência do homem e suas limitações, e outra é estimular essa dependência e cultuar as forças que escapam ao seu controle. Compreender realisticamente, e nas justas proporções as limitações humanas faz parte essencial da sabedoria adulta, mas adorar essas limitações constitui atitude masoquista e autodestrutiva.