Obras

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sexta-feira, 26 de junho de 2020

A ILHA DOS MORTOS

L’île des morts
Arnold Böcklin
óleo s/tela, 1886


Excepcionalmente, hoje quero abordar um assunto fora do habitual deste blog, porque atendo à minha consciência e minha indignação. Tenho esse espaço para me expressar e sempre o fiz baseado na consistência de dados, e não teria porque ser diferente agora. Não se trata de mera opinião sem base e sem estudo. Estou atento ao farto noticiário nacional e internacional com o devido filtro crítico, aos fatos em sua inteireza, e também à literatura pertinente, porque só informação jornalística não basta. Deixo claro que sou apartidário, para dissipar qualquer dúvida a respeito, mas me incomoda, constrange, envergonha, revolta e causa náuseas ver este país mais destroçado do que já está. Só tenho o recurso da minha escrita como forma de acalmar o espírito, por isso o texto é longo e contundente, sem poupar ninguém.

Me inquieto ante a quantidade inominável de descalabros que está ocorrendo no país e corroendo nossa vida, por conta da mais absoluta incompetência e irresponsabilidade de um governo acéfalo e disruptivo em toda a sua estrutura hierárquica. O mundo nos olha atônito e assiste com desconfiança ao cenário político caótico em pleno curso de uma crise sanitária sem igual e em seu momento mais agudo. Algumas nações declararam abertamente distanciamento deste país, com graves prejuízos comerciais e econômicos, com séria possibilidade de sanções. Equiparado aos regimes autocráticos mais danosos, a reputação deste país, hoje, é a pior em toda a sua história, comparada a uma latrina, em razão da quantidade de embaraços diplomáticos, crimes ambientais e errâncias diversas, entre outros vexames.


Um país desgovernado e um ministério-chave inoperante e sem ministro é tudo o que não precisamos. São meses à deriva com um governo apalermado, e o povo tentando se salvar como pode. Os que não conseguem sobreviver são jogados na vala e apagados do obituário. O simulacro de ente mitológico entronizado, que se julga acima da lei e da ordem, é vocacionado para o confronto, a discórdia, o enfrentamento, a cizânia, incapaz de um único ato minimamente ético, sendo indigno do cargo que ocupa. Tentando sobreviver politicamente e se livrar de seu destino certo e merecido, cerca-se de uma súcia de sabujos, nomeia apadrinhados, aventureiros ineptos e inaptos, manobra nas coxias para safar-se de acusações de improbidade e outras mais graves com conchavos, chicanas protelatórias, afagos oportunistas hipócritas, e para intimidar ou silenciar opositores e desafetos. Cada dia mais amedrontado, acuado e isolado, ajoelha servil e rendido, fatiando e vendendo o país a uma máfia de larápios parasitas, enquanto o país assiste, incrédulo, sem saída. 


Parafraseando o poeta, mas sem fazer poesia, os generais que aqui comandam não comandam como lá, porque aqui não comandam nada. Omissos, pífios, sem apreço pela cultura, polidez e reflexão, esbanjam arrogância. Faltam-lhes a sobriedade e a envergadura que a patente exige. Se tivessem atitude, se honrassem a farda que vestem e a Constituição que juraram defender e obedecer, jamais seriam coniventes com a barbárie institucional deflagrada neste país. Em nome da ética, jamais deveriam aceitar qualquer cargo público. Erraram feio na aposta de um governo sereno sustentado pela tropa de retaguarda não ideologizada e apolítica como “guardiã da ordem”. Ao contrário, no entanto, são os primeiros a profanarem a Carta Magna, marchando sobre ela com seus coturnos ao apoiarem atos contra a democracia e os demais Poderes. Se não querem cumplicidade com a baderna, que voltem para a caserna. O que vai ser? Não podem ficar com evasivas, ameaças e insinuações ambíguas, a menos que estejam cortejando uma intervenção no Estado. Estão? E o país adoece, refém do medo.

Seria honroso, e inteligente, ao menos para salvaguardar o respeito e a dignidade, que se declarassem demissionários das funções para as quais nunca estiveram capacitados, como demonstram os sucessivos erros, pronunciamentos e atos contraditórios. Seria recomendável que se mirassem no exemplo da maior autoridade militar americana, Chefe do Estado-Maior, General Mark Milley, que se desculpou publicamente por ter participado de ato político ao lado do Presidente Trump:
O resultado da minha foto na Praça Lafayette foi visto por todos vocês. Aquilo provocou um debate nacional sobre o papel das Forças Armadas na sociedade civil. Eu não deveria estar lá. Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna. Como oficial da ativa uniformizado, foi um erro com o qual aprendi. Devemos defender o princípio de um Exército apolítico, que está tão profundamente enraizado na própria essência de nossa república. Isso leva tempo, trabalho e esforço, mas pode ser a coisa mais importante que cada um de nós faz a cada dia.
Qual parte do discurso nossos senhores generais não entenderam? A História nos conta com fartura: sempre que militar ascende ao poder, boa coisa não é. Governo armado fede a naftalina, pólvora e enxofre em permanente tensão. Por que seria diferente aqui e agora? Não adianta escamotear a realidade com pajelança, falácias e desmentidos, pois os mortos estão aí em número crescente dia após dia. Não adianta subtrair, eles continuam a somar. Morto não se esconde, se enterra, e eles chegam hoje a mais de 50 mil em três meses de uma quarentena desdenhada pela população e desincentivada pelo governo. O país caminha para o topo da mortandade e vai continuar padecendo por culpa exclusivamente sua.


Não adianta querer dividir a nação com uma facada, ela - a nação - é muito maior que a carne que ela - a facada - rasgou. Não adianta arreganhar os dentes sujos de sangue e vociferar e prevaricar, o que manda é a rédea curta, e quando ela refreia a demanda sistemática de medidas arbitrárias sem amparo legal, transgressões tão orgânicas quanto a burrice é visceral, o rito é enfiar o rabo entre as pernas, baixar as orelhas e obedecer, sem espernear. Nunca houve precedente de uma camarilha de figuras tão desprezíveis em torno de uma única mesa fingindo governar, espancando a língua pátria com vocabulário chulo e ofensivo, sua identidade fundadora, sua estética de comunicação.


É um governo aquartelado em sua bolha de mentiras, vícios, fantasias, imundície, tramoias e manipulações, inteiramente avesso, surdo e cego à realidade externa. Quando ela bate à porta, quem atende é o “ministério da verdade”, que engendra uma alquimia estranha de modo a encaixar os fatos à sua lógica, sua versão, sua, recriando uma narrativa conforme a realidade conveniente, ficcional - autoverdade. E o país, traumatizado, sitiado, tenta se equilibrar numa gangorra escorregadia ao enfrentar uma doença pestilenta fora de controle, de um lado, e de outro, lidar com a hemorragia moral de um governo com fratura exposta necrosada. Como se não bastasse, ainda tem que esperar pelo dia seguinte na mais completa escuridão, sem luz em túnel algum. É no que dá governar em causa própria, nem a chama de uma vela afasta os fantasmas que a cada fato novo que surge no horizonte assombram um governo agonizante.

Este é mesmo um país singular, mas não como gostaríamos que fosse. É o único que, em meio a uma pandemia, não tem um Ministério da Saúde nem um ministro de verdade; o arremedo de ministro que lá está lá não está, nem médico é, desceu de paraquedas no cargo, paraquedista que é, mas errou o salto e caiu num buraco. Seu antecessor, que médico era, não sabia nem pronunciar nome de remédio. Resumo da ópera-bufa, uma política de saúde pública relapsa, num descaso imperdoável.

Os titulares das demais pastas e órgãos, militares e civis, com raríssimas exceções não estão qualificados para os cargos que ocupam. A troca de nomes não cessa, por óbvio, e o novo indicado é sempre uma reencarnação em vida, piorada, do substituído. Destemperados, amadores, de intelecto raso e mente perturbada, confusos, desconexos, iracundos, apedeutas sem o menor trato com a compostura e a educação. A bandalheira é geral e o povo que se dane. 

Temos um governo civil militarizado, onde general cinco estrelas é ordenança de oficial inferior, escumalho da política, expulso por insubordinação, acusado de atentado terrorista, punido com prisão disciplinar. País singular é assim. Um antigoverno doente que comete crime de lesa-humanidade ao instituir protocolo para uso de droga que sabidamente não cura e pode matar. Disléxico, sob o pretexto de “salvar a economia”, conclama seu povo a voltar às ruas para trabalhar, consumir, aglomerar, contrariando o que o resto do mundo fez, e quem não fez paga um alto preço. E o povo sai massivo, manada obediente que é, e a curva da morte volta a subir.

Para encerrar, temos um governante celerado que libera armas pesadas e munição à vontade para que todos se defendam, mesmerizado e mimetizando os mais insanos reinados, impérios, tiranias e dinastias que o mundo já viu. Truculento, falastrão, alardeia “bala na agulha” com tambor vazio; um vice que se compraz com tanques e canhões, um hediondo “gabinete do ódio” e, o mais bizarro, um trio de de alucinados “co-presidentes” que atua numa corte paralela dizendo quem entra e quem sai do “Palácio”. Um acinte inaceitável. Um prédio que abriga um ministério da verdade, um gabinete do ódio, um escritório do crime e um puxadinho presidencial, tem rachadinhas na estrutura e não vai resistir muito tempo, uma hora desmorona.

Por tudo isso e pelo que mais não foi dito, é preocupante saber que estamos, de fato, à mercê de um maníaco, desequilibrado, amoral, grosseiro, imaturo, vulgar e autoritário. Arquiteto da destruição, ostenta o signo do ódio, articula o retrocesso, faz apologia dos estados totalitários e ditatoriais, instiga compulsivamente o descumprimento das regras institucionais e constitucionais e fomenta a desobediência civil, julgando-se blindado e inimputável. Não está e não é, e as consequências estão a caminho. Quanto mais no fundo do poço, mais esticada a corda. Parafraseando outro poeta, no meio do caminho há um abismo, há um abismo no meio do caminho, e não se dança à beira do abismo na rota do furacão. O retrato deste país, hoje, mostra que ele é mesmo tão singular que, desterrado de si mesmo, tornou-se insular: a ilha dos mortos.

quarta-feira, 17 de junho de 2020



VITRINE DE EGOS


O que intensifica o comportamento antissocial? Foi essa a questão deixada em aberto no fim do post anterior, e a resposta é escancaradamente óbvia, dada pela quase totalidade dos autores, cientistas, analistas e filósofos: exibicionismo, com suas equivalentes narcisismo, ostentação, egolatria, autopromoção. cabotinismo, jactância, vaidade, etc. Dito isso, ao buscar uma arte para ilustrar o texto, consultei o Google para “exibicionismo” e o resultado foi deplorável: 95% de nu frontal feminino, seios e glúteos. É a degradação moral e depreciação estética da mulher por ela mesma.

O exibicionismo não é apenas do corpo, é também de opiniões, ideias, discursos, talento, trabalhos e arte, até um ponto de razoável exposição. Para além desse ponto, entram em cena aspectos psicológicos, psiquiátricos, educacionais, psicanalíticos e legais. Cresceu vertiginosamente a necessidade do indivíduo de se fazer notar, ou continuará sendo um mísero ninguém, um zero, imerso na insignificância e no esquecimento.

A era da comunicação digital dos últimos anos provocou uma explosão de super exposição imagética do sujeito e de todo tipo de verbalização de seu pensamento. Umberto Eco já preconizava que a internet daria voz e vez aos idiotas, e eles se multiplicam a uma velocidade viral. O indivíduo em todos os lugares ao mesmo tempo, onipresente, para ser visto, ouvido e admirado à exaustão numa autovalorização do ego. Exibicionismo, protagonismo, causar, acontecer, ser centro das atenções, ter seguidores e likes preenchem seu vazio. Não me ocupei em fazer levantamento sobre o material útil veiculado no Facebook, por exemplo, mas numa rápida mirada constatei que um número irrisório de postagens pode ser aproveitado. O mesmo vale para as demais plataformas, e quanto mais privativo o meio, mais censurável, mais impublicável será o conteúdo.

De todo modo, a questão é que, antes do surgimento das mídias digitais, o homem só expunha suas ideias entre quatro paredes, nas rodas de bar, reuniões, festas, no clube, em pequenos grupos. Agora, ele tem um canal poderosíssimo para fazer ecoar a sua voz, encontrar parceiros ideológicos, compartilhar subjetividades, neuroses, doutrinas, psicoses, ódios e ressentimentos, provocar, ofender, instigar, caluniar e ameaçar. A atividade em grupo fortalece o ser humano, lhe dá fôlego, inspiração, abrigo, ressonância, estímulos para propagandear e difundir seus objetivos, sejam quais forem, inclusive os ilícitos e os perigosos. No mercado há comprador para tudo, no virtual, então, não há fronteiras.

É importante acrescentar outros aspectos relevantes no excesso de “confiança” na rede. A difusão de fake news, desinformação, bullying e difamação, entre outros sortilégios, geralmente originados de falsos perfis, induzem a erros e danos irreparáveis. Todo perfil falso é esconderijo e antro de covardes. Como (ainda) não há normatização ou “senso ético” sobre o uso das redes, nem um sistema legal de segurança eficiente, a vigilância e a restrição ficam por conta das próprias plataformas, que bloqueiam postagens consideradas ofensivas, transgressoras e inapropriadas. Na pirâmide social, ninguém está imune à condenação, seja figura pública ou anônima, presidente ou servente. Nada impede, entretanto, a livre circulação de material pernicioso na deep web, o submundo sem lei da internet.

Mensagens ilegais estão sendo monitoradas e impedidas de circular: pedofilia, pornografia, terrorismo, incitação à violência, ameaça a instituições públicas ou privadas, à pessoa física ou jurídica, violação das leis de segurança nacional, intimidação, racismo, extremismo, truculência, intolerância, preconceito ou ofensa étnica, de credo ou de gênero e outras. Estas é que são verdadeiras “bombas de defeito moral”. Advogados, juristas, criminalistas, constitucionalistas, educadores, jornalistas, profissionais de mídia e demais instituições estão empenhadas em estabelecer diretrizes reguladoras para a liberdade de expressão nas mídias digitais, de modo a evitar medidas judiciais severas. Há uma longa e dura batalha pela frente, porque opera uma indústria muito bem montada de falsas notícias, células e facções criminosas com patrocínio suspeito, que insuflam o ódio, pregam a violência doutrinando a massa de modo astuto e persuasivo. Não sei se posso evocar o Zeitgeist - o espírito de uma época - como justificativa para o que estamos vivendo. E por que mão?

Porque o tempo está frenético, dando a impressão de “encolher”, escoar pelos dedos; o sujeito almoça jantando, dorme na segunda quando acorda já é sexta, beija sua mulher sem saber se está saindo ou chegando. O tempo todo conectado no mundo, o tempo todo desconectado de si. O tempo não tem mais tempo nem para ter um “espírito” que o defina. Essa “imaterialidade” ou “virtualidade” das relações humanas, sociais, econômicas e políticas são sintomas cristalinos de que mundo perdeu sua concretude estrutural, e a sedução por um projeto futuro de longo prazo deixou de ser verossímil, esfumou mais rápido que o giro dos ponteiros. Estamos na transição acelerada entre dois modelos de mundo: o que está deixando de ser e o que ainda não é e não sabemos como será. A pandemia não é nem rascunho dessa transformação. Os valores pétreos de um serão pó na visão do que está por vir. Daí o fim das utopias e o desencantamento do mundo, promovidos por um angustiante sentimento de insegurança, impotência, vulnerabilidade e medo, onde a ação reativa é o ataque, de preferência em grupo e sorrateiro.

Eu arriscaria dizer que o espírito que o tempo não tem é o do senso crítico, da ética coletiva, da noção real de cidadania, do valor moral de responsabilidade. Sem estes princípios, fica realmente difícil conduzir-se com decência, dentro ou fora das redes sociais. O que se publica revela o que se é, e se o que se vê em grande medida é matéria banal, nociva, falsa e inútil é porque a fonte também o é. Se o que se vê são selfies e sorrisos esterilizados e estetizados, é porque se procura pelo rosto perdido, e quem não tem um rosto não tem olhos para se ver, é um ego cego, facilmente manobrável a ser levado para onde quer que se queira levá-lo.



quinta-feira, 11 de junho de 2020

GENEALOGIA DO MAL


Não me tem bastado dizer que a natureza humana é isso, que o homem é aquilo, porque fico com a sensação de estar me repetindo - e estou -, e também com a de que o leitor está cansado de ler sempre a mesma coisa - e está. Pois bem, os dois últimos posts serviram como balão de ensaio para uma reflexão ainda mais funda. Por que o homem vem se comportando de maneira tão antissocial, quando ele é justamente um ser que só sabe viver em grupo? Algo está errado! A conversa de hoje caminha em duas direções: a causa dessa animosidade explosiva e o que a potencializa.


Não é só no terreno político que este comportamento rancoroso tem se manifestado com mais veemência. No campo esportivo também, e na ciência, na cultura, no cotidiano, onde qualquer debate dentro de regras civilizadas se transforma, num estalo, em zona de guerra. Essa conduta tem duas variáveis bem distintas: se a casa estiver pegando fogo, ou o sujeito continua ajeitando o nó da gravata, ou ele atira o gato nas chamas. No primeiro caso, alienação, no segundo, violência. É com esse que eu me preocupo. O gato também. 

As ciências sociais debatem as consequências dessas atitudes destemperadas, mas estou em busca da origem. Ao usar o reino animal como ponto de partida, afinal, somos todos animais, a resposta também não está lá. Todas as espécies fazem o que fazem não por maldade, mas por necessidade de sobrevivência, porque não têm escolha, é da sua natureza. Entre os mamíferos observa-se até mesmo uma “solidariedade desinteressada”, ausente nos humanos, quando uma da espécie ou o grupo socorre seus pares de um predador, ou se um deles apresenta alguma dificuldade, um atolamento inesperado, uma cria perdida, ou na defesa em bloco ante a iminência de um ataque.


Ocorreu-me então que um caminho a explorar seria o da genética, bem a propósito nesses tempos virulentos (em sentido duplo). Tanto quanto a Neurociência, a Genética é uma das áreas que mais investe no estudo da Saúde mental e corporal, e do Comportamento. Obviamente que outros fatores exercem influência no processo de modelagem do homem - sociais, psicológicos, históricos, culturais, religiosos, etc. “O fenômeno da violência é multifatorial”, diz o cientista Jari Tiihonen, do Karolinska Institutetda Suécia, que liderou uma pesquisa nessa área com a população finlandesa.

De acordo com os resultados das pesquisas, publicados na revista científica Molecular Psychiatry, os genes MAOA e CDH13 estão presentes em 10% dos criminosos violentos, e aumentam em muitas vezes os riscos de uma pessoa se tornar violenta. O genótipo, porém, não é frequente na população em geral, razão pela qual os autores entendem que os genes não podem ser considerados determinantes da criminalidade. Apesar de os estudos terem começado em meados dos anos 1990, na Holanda, as recentes investigações parecem confirmar a associação destes genes e sua comunicação com os neurônios. Diferentemente dos animais, o homem pode escolher não riscar o fósforo. Se não tem necessidade disso, por que o faz? Tiihonen esboça uma explicação:
Há muitas coisas que podem contribuir para a capacidade mental de uma pessoa. A única coisa que importa é a capacidade mental do criminoso para entender as consequências do que ele está fazendo e se ele pode ou não controlar o próprio comportamento.
Christofer Ferguson. da Stetson University, da Flórida, salienta que não há um ou dois genes que possam, por si só, representar um código para a violência: “De alguma forma, somos todos produtos da genética e do ambiente em que vivemos, mas não creio que isso nos tire a capacidade de discernir entre o certo e o errado”. Se Nietzsche falava em Genealogia da Moral, podemos falar em uma genealogia do mal? Se Hannah Arendt falava em Banalidade do Mal, como podemos conter nossa propensão para o mal? Se Bauman falava de Cegueira Moral, como podemos achar a rota de correção? Quando a Psiquiatria se une à Biologia e à Neurociência, muitas questões podem vir à luz. O quanto somos influenciados pelo ambiente? 


Para Kant (ele não poderia faltar), o homem é naturalmente afetado pelas boas e más disposições, e só se torna mau por sua livre vontade como um meio para a autossatisfação (sublinhado meu). O bem e o mal, na concepção kantiana, são princípios que subsistem por si na natureza humana e influem na formação do caráter do homem. Kant propõe que o homem é organizado ou predisposto para o bem, existindo, em sua natureza, “uma disposição em que absolutamente nada de mau se possa enxertar”. Entretanto, ele defende também que, para que a liberdade seja possível, é preciso haver uma tendência natural para o mal, ou seja, o mal deve existir como algo possível no exercício do arbítrio. 

Resumindo seu pensamento, e isso é fundamental entender, quando o homem submete o seu desejo à lei moral, ele é um bom homem; no entanto, se ele subordina a lei moral à satisfação de seus desejos, ele se torna um homem mau. A escolha de um fim implica a escolha dos meios para alcançá-lo. O mal não traz nenhum interesse para o ser racional por não ter nenhum valor intrínseco. O campo de exploração é vasto, e o objetivo hoje era mostrar que o mal, no homem, não é apenas um fator moral ou social, mas uma inclinação natural pautada também pela genética. Faltou discutir o que intensifica este comportamento, que fica para a próxima semana.

__________
* Genetic background of extreme violence behavior. Molecular Psychiatry, 20:786-792. oct 2014.
Immanuel Kant, A Religião nos limites da simples razão. Lusosofia. Lisboa, 1995.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

WE ARE THE WORLD

WE ARE THE WORLD


Logo após ter publicado o post da semana passada, reli o texto tentando detectar algo que pudesse ter me escapado ou que não foi dito e precisasse ser feito. O texto tratou dos efeitos provocados por um endurecimento das relações humanas, mas, qual a causa dessa tensão, onde ela está? A causa está presente ao longo de muitos escritos (os links te levarão a alguns deles). Ela não está escondida atrás do muros, não está camuflada na floresta, ela caminha pelas ruas, está em todos os lugares, o tempo todo, como sempre esteve, só que agora mostra as veias abertas (Inimiga íntima).

Estou colocando o mundo sob a minha lente, para não ser acusado de apontar o dedo para este ou aquele país, este ou aquele mandatário, este ou aquele personagem. No meu campo de análise cabem todos, sem exceção, e isso inclui nós dois, você e eu. O tamanho desse campo é do tamanho do mundo, e me esforço para encaixar a análise - o mais judiciosamente possível - nesse espaço tão exíguo do blog. O que os fatos expõem à luz do dia é a completa desconstrução do bom senso, da ética, do respeito, da racionalidade, das estruturas social e institucional em todas as esferas. 

O mundo é movido pelas sociedades, que são movidas pelos indivíduos, que são movidos por... eles mesmos! O sujeito é o primeiro elo dessa "cadeia falimentar" que leva, com seus atos, impulsos, ideias e, principalmente, desmandos, àquilo que está estampado com todas as letras na outra ponta da linha: mentiras, agressões, hostilidade, ameaças, falsidades, calúnias, intimidações, atentados, conluios... (A quem interessa?). E olhe que nem falei da pandemia que potencializa tudo isso, nem recorri aos melhores autores e trabalhos que legitimam essa tese. Não importa em qual hemisfério você vive, o cenário é exatamente o mesmo aí também (Poética de um pesadelo). 

O ser humano é incapaz de impor limites aos seus desatinos, ignorando que ele mesmo será alvo no retorno. Usa todos os recursos que a sua inteligência criativa lhe proporciona para obter vantagens em qualquer terreno, porque é da sua natureza, como qualquer predador do reino animal (A diferença é ser humano). Quais recursos? Ora, se estamos na era da comunicação - imprensa, imagem, linguagem, tecnologia digital - o mercado está aberto aos manipuladores da informação (A dimensão social da palavra). Estamos na era das fake news, da pós-verdade e da auto-verdade. Os fatos deixaram de ser fatos para se tornarem "versões", como se fosse possível uma banana mudar de forma, nome e sabor para se tornar qualquer outra coisa que não banana. A realidade não brinca em serviço, não faz-de-conta, não usa maquiagem, não doura a pílula, não se veste de Arlequim, ela bate, de frente e duro, sem misericórdia. De que adianta amarrar os sapatos quando o Titanic está afundando? Não entendeu? Vai entender.

Vejo com muita preocupação um estranho sinal no horizonte. Há uma tecnologia absolutamente revolucionária, diria até, perigosamente revolucionária - a deep fake.* Utilizando a inteligência artificial, o programador aplica o rosto de uma pessoa, por exemplo, do ex-presidente Barack Obama, com todos os trejeitos e esgares, além da voz, à face de outra pessoa, reproduzindo o discurso na "pele" deste modelo. O resultado é extraordinário, e é aí que mora o meu temor. O que poderia ser apenas uma notável técnica para a indústria do entretenimento (cinema, videogames) a tecnologia ultrapassa exponencialmente as fronteiras da razão, da ética, da responsabilidade, da privacidade e da segurança nacional, pessoal e coletiva, se usada ilicitamente. E não nos enganemos, é o que vai acontecer, se já não está.

Imagine um "ditador" aparecendo em cadeia nacional convocando sua força militar para invasão ao país vizinho. Ainda que não passasse de uma fake, as consequências poderiam ser catastróficas. Em mãos criminosas - e elas proliferam - tal instrumento terá um poder imprevisível. Você pode achar um exagero meu até presenciar ou ser vítima dessa trucagem, tanto quanto pode pensar que a contaminação do vírus é uma possibilidade remota até chegar a sua vez de esperar por vaga numa UTI lotada.

Reitero algumas coisas escritas em posts anteriores reforçando a minha posição e a sua percepção para que não venha me cobrar depois. Continuo muito atento aos movimentos do mundo, ainda que muita coisa me possa escapar. Não é prudente chegar ao fundo do poço para descobrir que é fundo e não ter corda para sair dele (O poço, a mensagem). A História é cíclica, já deu mostras suficientes do quanto erramos, e, além de não aprendermos a lição, persistimos nos erros. O mal não precisa mais de armas, bombas e outros aparatos, ele mora em nós (A pele que me habita), só aguardando a ordem - nossa voz, nosso grito, nosso urro - para agir.


Ah, sim, claro, você vai dizer que só pego pesado com o ser humano, que só vejo sua face horrenda, seus atos monstruosos, não é mesmo? Pois é, acontece que essa é a parte mais difícil de admitir, por isso insisto tanto que devemos aceitá-la. A única maneira de enfrentar nossas fraquezas é reconhecê-las. As virtudes, os sentimentos mais nobres e elevados, a "transcendência" do ser, tudo isso é exterior a ele, é cultural, socialmente adquirido, circunstancial, não inerente, não natural, alheio à sua essência.


Para rejeitar esse lado obscuro da sua biografia, e não sofrer com isso, ele cuida de apagá-lo da memória elegendo divindades e suas hostes para consolo do espírito, adotando o pensamento mágico como sustentáculo da sua existência. Acreditando estar a salvo pelas deidades, põe-se abstraído e feliz a cantarolar We are the world enquanto o Vesúvio despeja uma chuva de fogo sobre sua cabeça.  Entendeu agora?