Obras

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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

MISSA DOS EXCLUÍDOS-

O que há de bom ou mau em qualquer crença,
"qualquer" é o modo como se crê.
O bem ou o mal estão no psiquismo
do crente, não na crença.
Fernando Pessoa

Uma vez conhecida a complexa dimensão e a real natureza humana diante desse emaranhado de sentimentos e alternâncias, e para que o ser não sucumba à dor da sua precariedade, é de se supor que devam existir pontos de ancoragem que o auxiliem na travessia desse mar bravio chamado vida. Existem, mas, para saber quais são, devemos recuar um pouco na história. O totemismo é o primeiro deles, pois o totem indica o fenômeno presente em todos os povos primitivos de transformar uma coisa (natural ou artificial) em emblema do grupo social e em garantia da sua solidariedade. Este tema já foi trazido aqui e não há porque retornar (PrimitivaMente Moderna), por isso vou me ater somente ao principal.

O totemismo é um sistema organizador de clãs, tribos e sociedades, pela crença no parentesco entre o grupo e seu tomem como elemento mágico aplacador de algumas incertezas, e desfazer temores e ansiedades quando a ciência é incapaz de aquietar os espíritos primitivos. Assim, os aspectos religiosos/mágicos assumem papel relevante como fontes primárias de conhecimento e especulação, e ordenadores da m oral.  É Durckheim quem diz que os primeiros sistemas de representações que o homem produziu do mundo e de si mesmo são de ordem religiosa. Isso é importantíssimo considerar. Nesse caso, o totemismo é fundamentalmente um elemento distintivo de identidade de um gruo, exercendo a função de unidade e coesão como representação de uma “divindade física – patriarca, líder –, ou espiritual – entes da natureza. O homem depende integralmente dessa instrução religiosa como legisladora da sua sobrevivência espiritual e emocional. Por que a crença religiosa é necessária? Freud investigou: 
As ideias religiosas são proposições, enunciados acerca de fatos e circunstâncias da realidade externa (ou interna) que comunicam algo que o indivíduo não encontrou por conta própria, e que reivindicam que se creia nelas. Visto que informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos interessa na vida, elas gozam de alta consideração. Quem delas nada sabe é deveras ignorante; quem as incorporou aos seus conhecimentos pode se considerar muito enriquecido.
Entretanto, quando a religião também não é suficiente, outras crenças sobem ao pedestal, mesmo ilusórias e dessacralizadas: deuses, anjos, espíritos, astros, oráculos, pastores, cristais, mestres e também alienígenas. Se tais figuras trazem conforto e apoio espiritual ao homem, ele as acolhe e nega tudo o que contrarie seu pensamento ou de sua tribo, turma, grupo ou crença. Daí para o corpo-a-corpo, metafórico ou literal, basta uma faísca. Estamos falando de uma geração de mimados, infantis, acovardados, vítimas de uma sociedade desestruturada a caminho do desastre.

Essa vitimização é parte da “liturgia da exclusão” e produz retração, empobrecimento intelectivo, ausência de cognição lógica, esquiva das reflexões e da crítica, pressa nas respostas. Há um claro declínio cultural sistêmico patrocinado pela bolha epistêmica, pelo viés de confirmação, pela câmara de eco, pela ilusão de profundidade explicativa e pela sala de espelhos, tudo já discutido aqui. O homem está acuado em seu porão num estado anímico de desorientação e esquizofrenia. Esse não lugar no mundo e desbordamento da realidade aniquila a alteridade em seu sentido mais profundo. Você pode fugir da realidade, mas não pode se esconder dela. Dalrymple afirma que as fronteiras entre civilização e barbárie estão se desfazendo muito rapidamente. Estamos no rumo de uma civilização da barbárie.

Esse recolhimento do sujeito ao seu próprio útero, ao eu universo de convicções, se traduz no que ficou conhecido como servidão voluntária ou confiança perversa no carcereiro. Tal condição remete o ser à ambiguidade como recurso de preservação da vida, uma aceitação natural ainda que pareça paradoxal. Podemos substituir homem primitivo por imaturo que no fundo é a mesma coisa.

Ainda sobre ambiguidade, Wilfred Bion observa que nossa mente trabalha como um pêndulo em instâncias psíquicas distintas entre os estados neurótico e psicótico, entre aspectos infantis e adultos e entre elementos sadios e patológicos. Mais ambíguo impossível. Esse balanço caracteriza a mente multissensorial e multidimensional, lidando com as realidades interna e externa conforme o tipo predominante de funcionamento mental, ou seja, na dinâmica psíquica há uma atividade operando neuroticamente e outra psicoticamente. Freud nos dá as chaves definitivas para se entender o homem: 
Compreendemos como o homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal (...) Um homem dos dias posteriores comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem apoio de seu deus (...) A questão da angústia constitui um ponto no qual convergem os mais diversos e importantes problemas e um enigma cuja solução irá projetar mais luz sobre toda nossa vida psíquica.
Retomando Kant, o homem só pode alçar à sua autonomia pelo esclarecimento, pela superação da minoridademas, inepto que é, está preferindo o caminho inverso ao falsear a história, ao depredar a cultura, dilapidar o saber, sepultar valores pétreos como  ética e responsabilidade, ao abolir o diálogo. Com certeza há de pagar um alto imposto pela sua insanidade. Para quem não se pauta pela razão, qualquer reza serve. Gosto quando Jung diz: “Quem olha para fora, sonha, quem olha para dentro desperta”. Imagine então olhar para si mesmo e despertar... de um pesadelo. É oque vem por aí no último capítulo da série.

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Émile Durckheim. As Formas Elementares da Vida Religiosa. Martins Fontes, 2003.
Claude Lévi-Strauss. A noção de estrutura e etnologia; Raça e  História; Totemismo hoje. Abril Cultural, 1980.
________. O Pensamento Selvagem. Papirus, 1989.
J. G. Frazer. O Ramo Dourado. Circulo do livro, 1978.
Lucien Lévy-Bruhl. A Mentalidade Primitiva. Paulus, 2017.
Jared Diamond. Colapso. Record, 2007.
Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, 2007.
Bronislaw Malinovski, B, Magia, Ciência e Religião Edições 70, 1984.
Theodore Dalrymple. Nossa Cultura... ou o que restou dela.  É Realizações, 2015.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019


RAZÃO & DESRAZÃO
A mente é o seu próprio lugar,
e dentro de si pode fazer
do inferno um paraíso,
do paraíso um inferno.
Paraíso Perdido 

John Milton, 1667

Caminhando 100 anos mais, encontramos outro gigante da Filosofia Social, David Hume, um empirista radical, cético, que levou a investigação da mente às últimas consequências com seu ambicioso “Tratado da Natureza Humana”. Crítico de Descartes em relação ao “Eu”, que ele via como uma invenção, e também dos dogmas religiosos, concebia o ser não mais que um ajuntamento de sensações desordenadas, onde a razão era incapaz de orientá-lo nas decisões mais complexas, restando apenas as noções de prazer e dor como balizadores de sua conduta. Essa posição dura lhe custou dissabores, comprometendo sua carreira acadêmica. Porém, assim como outros grandes, seu pensamento ainda hoje é ponto de partida para profundas reflexões. Uma indagação sua é desconcertante e intrigante: Qual é o conteúdo da consciência que se oculta sob as palavras? É um desafio e tanto que poucos ousam responder.

O trabalho de Hume inspirou seu contemporâneo Kant. Reconhecidamente o mais importante nome da filosofia ocidental, Kant conseguiu reunir o racionalismo de Descartes ao empirismo de Hume, propondo um sistema que ficou conhecido como a “revolução copernicana na filosofia”, ao situar o indivíduo como parte integrante do conhecimento e não mais como uma tabula rasa.

Kant dizia que todo conhecimento tem origem nos sentidos, mas defende que o homem tem sim uma razão – a razão pura – que interpreta os dados recebidos. Ele tinha preocupação com a ética e a moral nas ações e relações humanas, e postulava que o mais nobre valor moral do caráter está em fazer o bem por dever, não por um desejo mesquinho. Vale dizer, Kant rompia também com a ideia medieval de que a razão, associada à fé, conduzia o espírito humano a níveis mais elevados. O filósofo prussiano separou a fé da razão, discordando de que a metafísica fosse uma ciência.

Com isso, a Teologia via suas bases sofrerem um abalo considerável, porquanto Kant demonstrava a fragilidade de uma metafísica especulativa incapaz de dar suporte às ações humanas. Na sua argumentação, ele propõe como base para a fé um senso moral inato ao homem – o imperativo categórico – fundamentado na “razão pura” independente dos sentidos. Para ele, o caráter pode ser tanto físico quanto moral; o primeiro define o homem como um ser sensível ou natural, enquanto o segundo é o que o distingue como ser racional dotado de liberdade, um ser autopoético.

As guerras que marcaram o século 20 provocaram o desencantamento do mundo em filósofos sensíveis como Hanna Arendt, Sartre e Lévinas, obrigando-os à revisão dos seus conceitos de maldade inerente ao homem. Havia um consenso de que o indivíduo era inteiramente responsável pelos seus atos, e que, através deles, construía seu caráter – sua essência. A fórmula discursiva do existencialismo ateu de Sartre advoga que a existência precede a essência e que por essa razão estamos condenados a ser livres; condenados porque nos criamos a nós próprios (a autopoiese), e livres porque, uma vez atirados ao mundo, tornamo-nos responsáveis pelos nossos atos, bons ou maus, não podendo jamais responsabilizar os outros  quaisquer outros, inclusive Deus  pelas consequências.

Não muito distante desse pensamento está Emmanuel Lévinas, para quem o homem é a própria alteridade, mas acredita ser seu pensamento absoluto e soberano em relação aos outros. Lévinas não limita sua observação somente aos crentes e religiosos, estendendo seu raciocínio a todos, indistintamente, já que cada um tem seu modo particular de pensar o mundo e seus princípios de fé. Ele entende que isso faz florescer o pensamento totalitário, uma aberração da inteligência que gera o sofrimento, a guerra e o fim da moral e da ética. O mistério da crueldade e da violência está ligado ao pensamento totalizante, que coloca o seu pequeno mundo de crenças como devendo ser o de todos.

A pensadora Hanna Arendt desenvolveu todo o seu discurso político-filosófico nos conceitos do mal e da violência com base nos paroxismos da experiência totalitária. No seu entender, a doutrina totalizante é mais opressora que a escravidão e a tirania, mais destruidora que a miséria econômica e o expansionismo territorial. Ao costurar o mal ao vazio reflexivo, ela propõe uma possível explicação para a violência do homem contemporâneo: ela se viabiliza na banalidade, na injustiça e nas práticas radicais de fúria contra minorias  imigrantes, mulheres, índios, negros, crianças, homossexuais, idosos, credos diferentes e até a natureza. Maldade e violência não é só agressão física, é misoginia, homofobia, pedofilia, desonestidade, truculência, estupidez, hipocrisia.

Traçando um paralelo entre o desenvolvimento da civilização e o amadurecimento libidinal do sujeito, Freud ressalta que quando se inicia um estágio civilizatório, deve-se renunciar à pressão dos instintos, mesmo que se pague um alto preço. A “besta selvagem” que são os impulsos de natureza “bárbara” precisa ser domesticada em benefício da preservação da sociedade. O processo de sublimação das pulsões  – motor da marcha civilizatória  exige sacrifício ao prazer imediato.

Tendo por parâmetro os impactos da guerra, Theodor Adorno vê na barbárie a falência da racionalidade, o que explica como foi possível se chegar ao extermínio absurdo do homem pelo homem  auge da bestialidade. Para ele, mundo abstrato, corpo-máquina e indiferença afetiva são algumas características próprias do adoecimento do contato, do desaparecimento do rosto, da crise da presença:
Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontram atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes  ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza.
Adorno não está só nessa avaliação áspera sobre o homem, a realidade, a sociedade, a civilização ou a própria humanidade. Você, que está acompanhando esta série, e tem lido ao longo de meses muitas abordagens no mesmo tom, deve ter percebido que o alerta vem soando há tempos  - 2.000 anos, pelo menos - e em todas as direções, mas a surdez é absoluta e a cegueira, contagiante. Sei que você dirá que, mesmo assim, sobrevivemos a tantas catástrofes. É verdade, mas não creio que nossos antepassados tivessem planejado este futuro (presente) para nós, e se estamos sentindo na carne os efeito desse não planejamento, e se temos (temos?) condições de fazer a coisa certa para os nossos filhos e netos, é melhor fazer agora, porque a missa dos excluídos vê crescer seu público. Que pode se tornar maioria. É o que teremos na próxima semana.

Nota: Sobre a edição passada, um assíduo leitor destacou uma frase e engatou uma pergunta. Considerei importante e preparei um texto a respeito, que será publicado no final da série, como um complemento. Peço que aguarde.

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Theodor Adorno, Max Horkheimer. Dialética do esclarecimento. Zahar, 1985.
David Hume. Tratado da Natureza Humana. Ed. Unesp, 2009. 
Emmanuel Lévinas. Entre Nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes, 2005.
Jean-Paulo Sartre. O Existencialismo é um Humanismo. Brasiliense, 1978.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

CIVILIZARBÁRIE-3

No século 5 da era cristã, Santo Agostinho foi um dos primeiros a delinear nossa verdadeira identidade, inquieto que era quando tratava de compreender a condição humana. Não apenas ele é um legítimo representante do espírito de uma época em que se discutia a relação entre fé e razão, como também seu pensamento influenciou fortemente toda uma corrente de filósofos e humanistas sobre a Questio Dei, sendo considerado aquele que simboliza o nascimento da Era Medieval, plantando as sementes filosóficas da civilização ocidental. Santo Agostinho estava em busca da verdade e da luz espiritual. Para ele, o homem é um ser degenerado, perturbado e pecador em sua essência sendo confrontado desde o nascimento com as coisas desse mundo, mundo que é matéria de expiação, sofrimento e dor como fontes de angústia e desespero:
Nesta lamentável inquietação dos espíritos decaídos, que, despidos da veste de tua luz, manifestam as próprias trevas, mostras claramente a grandeza de tua criatura racional; na busca da felicidade, ela só se sacia com tua grandeza, onde encontra repouso – pois que ela não pode bastar-se a si própria. Porque tu, Senhor, iluminarás nossas trevas. De ti vêm nossas vestes de luz, e nossas trevas serão como o sol do meio-dia.
Antes dele, Sócrates já andava às voltas com a investigação acerca do homem, e reconhecia que, nada sabendo sobre si mesmo, não poderia avaliar a questão em toda a sua profundidade. Heráclito (540-470 a.C.) propunha a mutabilidade constante do homem, o que dificultava conhecer a sua natureza, mas é com Platão que o homem é colocado no centro da Filosofia. Depois de Santo Agostinho, poucos se dedicaram a esmiuçar nossas entranhas pela mesma ótica por estarem sob as leis da Igreja e dos preceitos da fé cristã. A questão entre fé e razão só voltaria ao debate com Santo Tomás de Aquino mil anos depois.

No início do século 16, quem toma a palavra é Niccolò Machiavelli. Sua consagrada obra ainda é objeto de estudos e interpretações na Academia por ser um tratado ímpar sobre o Poder, o que ele faz do homem e o que este faz daquele. Ademais, seu discurso disseca sem hipocrisia, cinismo ou ingenuidade o mundo como ele é e o homem como ele é. Por isso mesmo, um autor central para se entender, sem ilusões, as engrenagens que movem o planeta. Para este filósofo e historiador florentino, a maneira pela qual o homem conduz a política é espelho de sua natureza violenta, perversa e traiçoeira, porque o Poder, acima de qualquer outra coisa, assim o demonstra. Mesmo se dizendo cristão, Machiavelli não se ilude com a religião nem com o homem, para quem, sempre que possível, agirá segundo as fraquezas de seu espírito – covardia, dissimulação, crueldade, falsidade. Definitivamente, não estamos bem na foto.

Machiavelli não era o único a pensar dessa maneira, mas morar em Florença, berço do Renascimento e centro culturalmente efervescente, colaborou muito para propagar suas ideias. Ao comentar sua obra, o filósofo Maurice Merleau-Ponty assevera que “O realismo de Maquiavel¹ desmonta concepções clássicas de um homem virtuoso, e isso alterará os modos de compreensão do poder”. Um dos aspectos fundamentais da política é a aparência do ser, conforme afirma o autor florentino:
A natureza dos homens faz com que eles se maravilhem com o que veem, mesmo quando enganados, e geralmente o são, pois os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir. (...) O vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados, e o mundo é constituído pelo vulgo.
No século seguinte é o trabalho de Thomas Hobbes que sobressai nas discussões sobre o estado de  natureza, cuja  obra, Leviatã, torna-se um marco. Também ele segue a linha dos autores mencionados ao afirmar que o homem é “utilitarista, egoísta e interesseiro”, com predisposição para a explosão – o ser em sua “natureza bruta”,  sem lapidações sociais; cruel, possessivo, beligerante, age a ponto de matar em defesa de sua fé, muitas vezes com requintes de crueldade e sadismo.

O princípio do prazer faz o indivíduo desobedecer questões éticas e morais para atingir o pleno gozo de seus objetivos. Fato é que a busca do prazer está em rota de colisão com a realidade porque, quanto mais esse desejo aflora, mais diminui a capacidade de pensar, ponderar, deliberar. Para o homem, segundo Hobbes, pessoas e coisas têm o mesmo valor como meros instrumentos manipuláveis em benefício próprio. Jean-Jacques Rousseau dirá isso de forma diferente e com maior ardência ao comparar pessoas a bovinos: “Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos de gado, cada qual com seu chefe a guardá-la a fim de a devorar”.

Devo ressaltar que foram levados em conta o ambiente histórico de cada autor, que certamente os influenciou na construção das ideias. Ocorre que tais obras são tão  densas, reformadoras  e inspiradoras, que se tornaram,  de certo modo,  fundadoras das Ciências Políticas e Sociais da nascente Era Moderna. A leitura hobbesiana nos põe a pensar que Leviatã, em última análise, somos nós e não apenas o Estado. Se o inferno são os outros, como dizia Sartre, então os outros somos nós também. O inferno somos todos, construindo uma civilização que, em algum momento, não se diferenciará mais da barbárie, será a civilizarbárie. Na próxima semana veremos a distância entre os homens de razão e a desrazão dos homens.


¹ Como critério pessoal, tenho adotado, para autores estrangeiros, a grafia do nome próprio no idioma natal,; no caso de citação ou obra publicada, mantenho como tiver sido empregado.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

QUEM HABITA A SUA PELE? - 2

Quando traçamos a linha do tempo da humanidade, verificamos que todas as tribos, clãs, sociedades e civilizações desenvolveram sua ciência, sua cultura e sua tecnologia próprias, estruturalmente semelhantes ao que se observa no mundo atual. A diferença está em nossa cultura revestida por uma finíssima pele de “modernidade”, que oculta a face primal instintiva de sobrevivência, dominação, força e medo, este como base das pulsões religiosas impregnadas na experiência humana.

Falar em eclipse da razão, dissensão a alteridade e autoverdade é insuficiente para abarcar toda a matéria, por isso é preciso tocar em alguns pontos capitais, ainda que brevemente. As grandes narrativas do passado deram lugar às micro narrativas, isto é, abandonaram-se os projetos de futuro, o ideário social e o comprometimento coletivo em nome de um imediatismo obsessivo e uma nova proposta individual de verdade – a autoverdade: O que se diz, o que se faz, defende e acredita é o texto final para promover a adesão grupal. Disso resulta a dissensão da alteridade, ou seja, o outro só me é útil se e enquanto alinhado com meus propósitos, se não, ignoro, desprezo ou elimino, metafórica ou literalmente.

O sujeito só ouve a si e quer que só a sua voz seja ouvida. Solipsismo compartilhado, lógica burra, monólogo de surdos. Temos aí a diluição dos princípios culturais, éticos e morais, a vida tratada como coisa, clivagem psíquica, distrato social, ruptura dos afetos, colapso da base educacional, eclipse da razão. Trata-se da retomada do estado de natureza do animal humano, de barbárie, enfim. Todo processo civilizatório é também  um processo de barbárie, assinala Walter Benjamin. Pergunto o inverso: Toda barbárie é também um processo de incivilidade? Claro que sim. Se o processo civilizatório é contínuo, a barbárie também é, portanto inevitável, e hoje muito mais midiática, muito mais expositiva e estarrecedora do que jamais foi, ainda que em contextos diferentes. Precisamos entender melhor seu pensamento, bastante atual.

Benjamin (1892-1940) foi um influente pensador alemão do início do século 20 com olhar bem pessimista sobre o futuro, com base nos aspectos políticos, históricos, econômicos e culturais da sociedade. Para ele, é preciso cortar o pavio antes que a faísca atinja a dinamite. No seu entender, a revolução tecnológica na virada do século 19 para o 20 modificou o papel da cultura de massa, dos meios de comunicação e da produção cultural, influenciando na percepção e na assimilação do público, gerando novas formas de mobilização social e contestação política. Percebeu a semelhança com a virada do 20 para o 21? Sua análise estava correta e continua valendo.

Segundo esse filósofo e ensaísta alemão, a tecnologia desenfreada e invasiva substitui as relações interpessoais, fazendo com que o sujeito perca a sensibilidade da experiência direta, autêntica, original. Esse declínio perceptiva torna-o incapaz de apreender as mudanças do ambiente, levando-o a um estado de nudez interior e impedimento da capacidade de comunicação. Tal pobreza da experiência tem consequências. Seu pensamento está aqui resumido ao máximo, pelas razões que você já sabe: 
Ele deseja libertar-se de toda experiência, aspira a um mundo em que possa assentar tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso (...) Sim, é preferível confessar que essa pobreza não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge, assim, uma nova barbárie. 
Que estamos envolvidos por uma imagosfera asfixiante também não há nenhuma dúvida; a imagem tornou-se mais importante que o real, em qualquer circunstância. Vivemos um jogo de aparências onde imperam mentira, hipocrisia, falsidade, fake news, turbinadas pelas redes sociais em todas as plataformas numa multiconectividade avassaladora, um lugar simbólico de não pertencimento. Vários estudos apontam os danos dessa imersão desordenada no universo virtual mais real que o real: Desconstrução e reconstrução identitária, narcisismo compulsivo, fuga por inadaptação à realidade, hipervalorização progressiva do repertório imaginário, autocomiseração, imaturidade, covardia. Covardia moral neurótica, como diz Freud. Essa radiografia pode parecer, num primeiro olhar, devastadora de nossas melhores virtudes, quando é, de fato, retrato fiel, porque o exame crítico é e deve ser inelutavelmente rigoroso, imune a paixões, se quiser desvelar a face humana sem maquiagem. A pergunta-chave desta série, Quem habita a sua pele?”, traz uma resposta irrefutavelmente assustadora: Há uma besta-fera enjaulada faminta por um pedaço de carne, que não a sua.

Ainda dentro do ambiente digital, a celeridade e elasticidade de informação geralmente sem filtro atropela a reflexão e a interpretação judiciosa dos fatos; Mark Bauerlein chama de “gratificação instantânea”, resultando na perda de contexto e historicidade, na atrofia de ideias e aporte contínuo de conflitos. Seu estudo é um recorte bastante sintonizado com os de países como Holanda, Dinamarca, China, Portugal, Espanha e Inglaterra, por exemplo, num total de 14 levantamentos independentes. É quase um consenso global.

Uma das conclusões apresentada nestes trabalhos é que a juventude de maneira geral, mas em especial a americana, perdeu totalmente o interesse pelos livros, pela literatura e pelo saber amplo; os estudos indicam ainda que esse decréscimo de inteligência começou a ser demarcado a partir dos últimos 40 anos, crescendo no início deste século, período em que a internet conquistou seu espaço. Não é mera coincidência. A correlação é inegável, segundo o consenso dos autores, que encontra eco nos trabalhos da neurocientista britânica Susan Greenfield, da Oxford University, para quem o admirável mundo novo digital está alterando significativamente e de forma inédita o nosso cérebro. Por óbvio, nossas atitudes, por óbvio, nossa auto-imagem. Aonde tudo isso nos leva? Semana que vem eu conto. Não perca o fio.

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BAUERLEIN, M. The Dumbest GenerationTarcher/Penguin, 2017.
GRENFIELD, S. The Private Life of the Brain. Penguim, 2002.