Obras

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sexta-feira, 31 de julho de 2020




O MINISTÉRIO DO ATAÚDE AVERTE
Eu havia decidido que o post da semana passada seria o último a tratar de política no contexto do desastre que assola o mundo e em especial o Brasil, mas também não me sentia nem um pouco confortável em manter silêncio quando o caos desfila na nossa cara. Estou falando especificamente da Saúde, da sua, da minha, da saúde do país, física e mental. No caso do governo brasileiro, não há a menor justificativa para a quantidade descomunal de desacertos. Ou há, dependendo de como se olha a questão.

A verba destinada ao atendimento à população é ilimitada, porém, a política do avestruz no Ministério do Ataíde dificultou, retardou e interrompeu a compra de equipamentos, dificulta e/ou retarda a aquisição de kits de testagem, dificulta e/ou retarda a distribuição de verba às Secretarias Estaduais para o mesmo fim, dificulta e/ou retarda o repasse financeiro às empresas para evitar a quebradeira. E não evita, claro, porque a incapacidade de raciocinar retarda ou impede qualquer ação, tanto que nem dá satisfação do que está fazendo porque, claro, não está fazendo nada. Quando faz, faz a porcaria que aí está. Não é só na Saúde, o processo de desmantelamento é total em todas as áreas - Educação, Cultura, Meio Ambiente, Ciência... Mas tem mais.

Esse governo dificulta e/ou retarda a liberação do auxílio emergencial aos necessitados, não providencia a compra de anestésicos e outros insumos essenciais ao atendimento hospitalar, e, não satisfeito com tanta palermice e negligência, mandou produzir, em escala planetária, um medicamento comprovadamente inócuo e não recomendado, só para atender a sanha tresloucada do aparvalhado chefe. A paralisia mental, a negação dogmática aos estudos científicos e a recusa doentia em reconhecer a gravidade da situação desde o princípio, foram determinantes para escancarar a gestão homicida e a malversação dos recursos. Tarde demais para estancar a hemorragia de mortes, mas não para punir os irresponsáveis. E ela virá. Desta vez, não é só a História que irá julgar o ministro-boneco e seu destrambelhado ventríloquo. Ambos estarão sujeitos às penalidades do Tribunal Penal Internacional: "Privação do acesso a alimentos ou medicamentos".¹ 

Quanto ao arrevesado e frouxo ministro fantasma não médico, por si uma aberração, juristas afirmam que já há fundamentos suficientes para um julgamento técnico: a inação à frente do ministério, ou seja, omissão; os atos inexplicavelmente tardios, refletidos pelo silêncio, e o mais grave, os atos contrários ao regramento determinado pelos órgãos internacionais de saúde e de direito aplicado à saúde, caracterizando incompetência, desinteligência, negação deliberada sistemática, irresponsabilidade. O povo, já todo estropiado, infectado ou não, tenta sobreviver à realidade e à avalanche de desmandos, sem dinheiro, assistência decente, testagem, equipamentos básicos e sem perspectiva, por culpa de uma tropa de fracassados que vive chafurdando no fundo do poço. 

O meio científico brasileiro é reconhecido e respeitado internacionalmente pela sua competência e seriedade, mas não pelas nossas prepotentes autoridades. Julgando-se superiores e bem informadas, tomam medidas criminosamente inversas às evidências, advertências e orientações técnicas. Ainda temos muito a aprender sobre a atuação do vírus, meios de transmissão, período de incubação, reinfecção, quadro sintomático... São muitos estudos em andamento, todo dia alguma nova pesquisa revela dados que reorientam as diretrizes. Entretanto, para alguns, nada disso tem importância. Essa é a assinatura do cínico desprezível, o "patriota": E daí, todo mundo vai morrer um dia. Cuidado, patriota, a próxima vítima pode ser você.

Aliás, não foi esse mesmo patriota que se achando doutor de coisa alguma, declarou que a tal "gripezinha" não mataria mais do que "umas 800" pessoas? Ele foi avisado que passamos de dois milhões de infectados e 100 mil mortos, e que os números podem dobrar até o fim do ano? Curiosamente, não foi esse mesmo patriota que, ao ser testado positivo com o vírus, correu para dentro de casa, tomou uma droga qualquer, botou máscara pra se proteger? Proteger-se por que, patriota, se vamos todos morrer um dia? É assim mesmo, quando a realidade bate à porta, tem que ter tutano para abrir, mas o patriota não sabe o que é tutano.

Esse governo tem a obrigação moral de custear os testes (verba ilimitada, lembre-se); deve, também, obrigar a que os planos de saúde assumam esse encargo, e não deixar que o cidadão pague pela sua inépcia. Não é só a população que sucumbe com essa política do avestruz, o governo também. O problema é que a estrutiocultura* é muito forte no altiplano central e não há indícios de que a espécie esteja em extinção, pelo contrário, ela se multiplica.




* Estrutiocultura: latim strutiosavestruz. A semelhança com stultus - estúpido, não deve ser coincidência.

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quinta-feira, 23 de julho de 2020

VENTRÍLOUCOS


O título é um trocadilho nada sutil e bastante autoexplicativo, mas a descrição elimina a sutileza: Ventríloquo é aquele que "fala" sem abrir a boca, e o boneco que está sob seu comando no colo é quem conta as histórias, responde perguntas, diz o que o "chefe" faz de conta que não disse. Enquanto não passa de uma simpática brincadeira de salão para a criançada, a festa segue divertida. Porém, quando adultos resolvem brincar de ventriloquia, a festa vira show de horrores. Palavras-chave da conversa de hoje: chefe, comando, boneco, colo, fala. Se eu te conheço, você já chegou ao fim do texto antes do texto chegar ao fim.

Esse teatro de gente grande, na verdade, gente muito pequena, é ruim para o boneco e para quem ouve o boneco, e quanto mais astuto o ventríloquo, maior o dano. Quer exemplos eu dou. Começando de baixo, bem lá de baixo. O guru da autoajuda que, com habilidade e paciência, coloniza a mente (daí "mentor") dos adeptos com retórica e jogo de cena impecáveis. Ao fim e ao cabo, os "bonecos" saem repetindo o "encantamento" sem nenhum questionamento. O rito se reproduz nas pregações onde o público está lá também para ouvir o que quer ouvir, e aí o "pastor do rebanho" logra seu intento quando a louvação é de fazer inveja ao coral dos anjos.

Antes de prosseguir, é fundamental entender Lévi-Strauss quando ele diz que a eficácia de um "encanto" implica na crença desse encanto; primeiro, pela confiança no encantador e na sua capacidade de persuasão, ou sedução; segundo, porque se quer crer que o encanto produz o resultado desejado, e terceiro, porque outros como ele pensam a mesma coisa - a opinião coletiva, ou, se preferir, a câmara de eco, que ratifica o poder do encantador e seu encanto, feitiço, magia ou simplesmente, discurso.


Dessa tripla combinação resulta, ainda segundo Lévi-Strauss, uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o encantador (o "chefe") e aqueles a quem ele encanta (os "bonecos"). É uma questão mais psicológica que sociológica. Traduzindo, o feitiço, o encanto, o comando, terá mais efeito se o "boneco" estiver no "colo" do "ventríloquo". Não preciso lembrar que isso vale para qualquer tipo de pregação, narrativa ou ideologia, da mais exótica à mais nefasta. Aqui estamos chegando ao ponto de ebulição.

Estou falando de ambientes como uma torcida de futebol, por exemplo, onde, a um comando, a turba se inflama, ensandece e parte para o confronto e a violência; estou falando de atos públicos em que basta um megafone potente para que, em minutos, a praça se transforme em zona de guerra, ou uma rede social incendiária, um influencer da moda que dita regras quase nunca compatíveis com a razão, a lógica e o bom senso. Em todos estes casos e mais alguns, o "ventrílouco" tem o controle das ações e deixa que os "bonecos" façam o trabalho sujo. Bonecos não pensam, não têm vida própria nem agem segundo sua vontade, apenas mexem a cabeça, agitam braços e pernas e só abrem a boca para repetir o que lhes é mandado dizer.

Por fim, quando um "ventrílouco" exerce grande poder sobre a massa e tem no colo vários bonecos, a situação piora, ainda mais quando ele não tem noção (não?) do que é capaz. Age como uma criança malvada que pega seus soldadinhos de chumbo e joga-os na fogueira, dá desinfetante para ver se o gato sobrevive, esconde o remédio da vovó ou lacra o cofrinho da irmã para ela não comprar jujubas. Qualquer semelhança com quem você conheça não é casual. Nem a analogia é. Tem muito adulto que se comporta de modo inadequado como criança má, fazendo seus bonecos, fantoches ou bonecos de Olinda dançarem conforme os tambores batem. 


Para aprofundar nos aspectos psicopatológicos constituintes de uma índole disruptiva, teríamos que recorrer a Freud e a uma ampla gama de considerações, o que não me cabe fazer, obviamente. Suzana Grunspum, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, citando o trabalho de Melanie Klein, que deu continuidade aos estudos de Freud nesse particular, ressalta que "Melanie foi uma das primeiras psicanalistas a considerar a agressividade como um fator do mundo interno da criança, e a apontar que os aspectos violentos e destrutivos também fazem parte da constituição da vida maternal desde bebê."


Mesmo dividindo críticas e elogios aos seus estudos, Melanie é reconhecida pela sua arguta observação do universo infantil, a ponto de Lacan chamá-la de "açougueira genial", por explorar as entranhas mais selvagens dos até então "anjinhos" puros e inocentes. Quando esse adulto se recusa a crescer, quando permanece infantilizado e imaturo em suas ações, responsabilidades e pensamentos, quando é incapaz de olhar o mundo em sua complexa totalidade, como é natural em uma criança ainda em processo de formação da personalidade, esse não adulto tenderá a seguir com suas brincadeiras sem medir as consequências. Seguirá julgando-se centro do mundo e aqueles que o rodeiam, bonecos manipuláveis para suas travessuras.

Os "ventríloucos" sempre existiram, é verdade, mas na era da comunicação digital e de massa e com a força das imagens, eles encontraram o paraíso para extravasar suas carências, recalques e falhas de caráter. Há uma inequívoca e permanente tensão pairando no ar, um sentimento incômodo de que algo de ruim está para acontecer, e geralmente acontece, só não se sabe o que, quando e onde. Um ventrílouco, por não ter voz própria nem rosto, e se esconder por trás de um boneco, tem outro nome, e você sabe qual é. Sabe sim.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

DE ALIENISMO EU ENTENDO

Na semana passada você "leu" meu silêncio e certamente captou o sentimento que me toma pela imagem publicada. Não é só tristeza pelo que estão fazendo com o país e no país, é nojo também. Foi um breve período no modo silencioso, introspectivo, observador. Vejo, de um lado, um governo mal intencionado na nascente e em toda a sua extensão, irresponsável e, em certa medida, genocida. Quem manda de verdade são os psicopatas da "ala ideológica", com a conivência catatônica da inconveniente e impertinente "ala militar". Ambas transformaram o país na esbórnia que aí está por inépcia e ineptidão no comando de uma nação. Ambas ignoram as leis, esmagam a democracia, asfixiam a cidadania, queimam a ética. Enfim, ambas se irmanam na parceira das iniquidades, ilegalidades e outras aberrações. Quando todos são alienados, e disso eu entendo, a coisa não vai nada bem. Eu já sabia que seria assim, e avisei a alguns bem próximos, mas não quiseram me ouvir. Paciência. Não sei se me ouvem agora.


Genocida? Exagero? Quer esclarecimentos eu doou. Entre os itens do artigo 6 do Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional, que trata de genocídio, lê-se: "Causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial". Da mesma forma, diz o artigo 208 do Código Penal Militar Brasileiro: "Matar membros de um grupo nacional, étnico, religioso ou pertencente a uma determinada raça, com o fim de destruição total ou parcial desse grupo." A semelhança na redação não é coincidência.

Se você acha que não havia razão para trazer essa definição, pergunte aos indígenas, aos pobres, aos pretos, aos desvalidos. Pergunte àqueles que perderam seus entes por desassistência social. Pergunte aos que não não foram salvos por falta de equipamento devido às falcatruas administrativas. Sim, vamos todos morrer um dia, mas não precisa ser de uma vez e pelo mesmo mal. Releia as definições. Insisto, para que fique marcado, a história vai julgar e cobrar os responsáveis pelo que estamos passando. Não se descura centenas de milhares de vidas impunemente, a fatura virá. Cada país arcará com seu ônus e cada governante responderá pelas suas ações - ou omissão. Quem viver verá.

De alienados eu entendo bem, estive rodeado deles por anos, uma trupe de lunáticos, misticóides, mistificadores e, como em todo lugar, patifes. Reconheço-os só de olhar, e quando abrem a boca, acerto na mosca. Da turma do governo não errei nenhum, seja de farda, gravata ou saia. Quer exemplos eu dou. Quando um ministro aparece vestido de astronauta em cerimônia oficial, alguém está fora de órbita. Quando a Educação troca quatro nomes em um ano e meio, é porque falta educação no país. E o que chegou agora, indicado pela ala ideológica, já pela primeira fala antes da posse aposto que não vai longe. Foi abrir a boca e detectei mais um. Não sei se me entendeu. Seja qual for a pasta, são todos da mesma laia.

Quando o ministério da Saúde é comandado por um interventor leigo e omisso metido a doutor, que nem teve a hombridade de declinar do cargo por notória incompetência, então, definitivamente, há algo de podre nesse reino que não é o da Dinamarca. Sim, o país está doente, paralisado em berço esplêndido desafiando o nosso peito à própria morte. De verdade, o que falta a essa gente frouxa e pequena, de farda, de gravata e de saia, é vergonha na cara. Agora você entendeu. Quando todos demonstram analfabetismo, funcional ou não, não há conserto possível.

Conheço bem os alienados. De todo tipo. Há os ingênuos, que não causam mal algum e vivem em seu quadradinho de inocência. Existem os fanáticos exaltados, que pregam suas convicções mais tresloucadas e teorias paranoicas mofadas. E há os perigosos, virulentos, que contaminam os não imunizados. Conheço todos, de longe. O governo está lotado destes, de farda, gravata e saia. Os demais se espraiam por aí. De alienismo eu entendo. Alienismo: "Distúrbio mental caracterizado pela incapacidade de pensar e agir conforme a razão, dificultando o convívio social." A tendência é o agravamento gradual em direção à insanidade, demência e loucura. Em outras palavras, os alienados vivem em um mundo paralelo, à parte, totalmente desconectado da realidade, por isso fora do eixo, do mundo real. Alguém duvida que muitos integrantes dos governos mundo afora se encaixam nessa descrição?


Tecnicamente, alienação "é o estado mental consequente a uma doença psíquica em que ocorre a deterioração dos processos cognitivosde caráter transitório ou permanente, de tal forma que o sujeito é incapaz de gerir sua vida socialmostrando-se inteiramente dependente de terceiros no que diz respeito às responsabilidades exigidas pelas regras da convivência em sociedade. O alienado pode representar risco para si e para terceiros". Mais claro impossível, mais adequado idem. O itálico é meu, e a definição é do Núcleo Especial do Ministério da Saúde, que é justamente quem deveria prestar mais atenção em quem o dirige, e aos demais cargos da República. Poucos se salvam. Quero notar o fato de que, se o alienado estiver cercado de outros como ele, o desastre é inevitável. O que se vê no país e no mundo confirma a tese.

Há, ainda, uma quarta categoria, intermediária e mais perigosa, a dos imbecis propriamente dito. São aqueles que, em nome de uma ideologia, doutrina ou seita, assumem devoção extremada em rota de colisão com o pacto civilizatório. Destes, há centenas dentro do governo e milhares fora, em total desrespeito às leis, às normas institucionais e ao bom senso. Quer exemplos eu dou. Magistrado que abranda pena de foragido por razões "humanitárias" é um despropósito e contrário à lei penal; advogado que pede habeas corpus coletivo demonstra ignorância de ofício, feitiçaria jurídica ou má fé; general que faz ameaça explícita contra uma ordem judicial legal revela evidente más intenções, ou ignorância da lei, o que é comum; ministro que prevarica e estimula atos antidemocráticos é passível de prisão por improbidade e falta de decoro.


Quando o chefe de uma nação é aparvalhado e tosco, quando adota discurso de ódio, racista, preconceituoso, misógino e homofóbico, quando mostra desrespeito pela ciência, desorientação política, envolvimento com ilicitudes, descontrole emocional, incontinência verbal chula e comete grosserias diplomáticas, obviamente não tem estatura moral e estrutura mental em condições sequer para pedalar uma bicicleta ergométrica, quanto mais conduzir uma nação. Obviamente, também, claro, a espiral hierárquica segue o mesmo padrão, e aí o tal país fica ingovernável. A primeira lição para se avaliar a inteligência de um governante é atentar para os homens que o cercam. Esse é um conselho antigo de quem tinha grande intimidade com o poder e sabia o que dizia - Machiavelli. A alienação pode ser tratada, mas o imbecilismo não tem cura.


A estupidez não se restringe aos gabinetes oficiais, à farda, à gravata ou à saia, nem é exclusiva de um único país. Também não está confinada a esta ou aquela camada da população. Não senhor. Da meretriz ao juiz, todos são partícipes da esculhambação transnacional. Doutores saídos das melhores escolas estão rasgando o verbo e jogando no lixo a boa formação com retórica e atitudes deploráveis. A barbárie tem diploma sim senhor. Ela está nas ruas, nos atos de violência, vandalismo, boçalidade, arruaça e provocação, sob o olhar sempre complacente das autoridades, desde que o gesto esteja afinado com seus interesses. O país que se dane. Cumprem à risca a célebre máxima "Aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei". É a canalhice sórdida ocupando a mesma praça num abraço repugnante. As redes sociais e boa parte da mídia protagonizam papéis sujos em uma peça doentia escrita por um insano, em um cenário carcomido de um teatro em ruínas. E a plateia se divide entre o aplauso dos dementes e o apupo dos decentes. Não sei você, mas de alienados eu entendo bem.

quinta-feira, 2 de julho de 2020


NÃO SUBESTIME A REALIDADE


Você leu aqui que, quando fatos se tornam versões, o pesadelo começa. Alguma dúvida? Se você discorda, é porque está subestimando a realidade, e ela vai te pegar de jeito por essa negligência. A pandemia é só o pano de fundo para a conversa de hoje, que vai servir como parâmetro. Ou pretexto. Em nome de “versões”, tem se tomado uma série de medidas que contrariam o bom senso e a mais óbvia clareza dos fatos. Em todas as instâncias, repito, todas, a hostilidade aflora na pele, a violência galopa na ponta dos cascos, eu disse cascos, atropelando a ética, a civilidade, a racionalidade. Pior é quando parte do cume da pirâmide ao destilar o fel cáustico, que escorre e se infiltra pelas fendas erodindo tudo abaixo e à volta. Abra o mapa do mundo e veja as nódoas da insensatez esparramadas sobre ele.

Não adianta refutar certas verdades. Insisto, não adiantaSe há um contágio global, não há como negar ou ignorar os estragos e o desastre que vem causando, e isso é um fato! Se a mortalidade tem um percentual baixo em relação à taxa de contaminação, fato é que ele mata. Não se dissimula dez milhões de infectados e 500 mil mortos. É macabro pensar que a morte está literalmente no ar, o ar que respiramos, e isso não é figura de linguagem, é fato! Quem acha esse percentual irrelevante é porque criou a sua versão do fato, subvertendo ou invertendo-o: o que é não é, o que não é passa a ser o que ele acha que é. Não é assim que a realidade funciona.

Furtar-se às evidências é enveredar pelo caminho da omissão, do delírio, da fantasia, até chegar ao perigoso limiar da psicopatia. Talvez a Psicologia veja isso como uma forma de mentir parara si mesmo. Um amigo comentou que a realidade é mais louca que qualquer ficção. Eu diria que a realidade não é louca, ela é o que é; louca é a ficção, a imaginação, porque nelas tudo se cria, inclusive uma outra realidade. Quem acha a realidade louca se abriga na fantasia, e fica dançando nas costas do jacaré em meio a tempestade.

Quando a Ciência é questionada, só o é por quem não é do ramo, portanto, ignorante em assuntos científicos. Ela própria se encarrega de ter suas incertezas, suas dúvidas e de admitir seus erros, não precisa de nenhum forasteiro metendo o bedelho onde não deve. Esse princípio se aplica a todos os campos do saber, incluindo, claro, o tema central deste blog. Se quiser discordar ou discorrer sobre algum assunto, vá estudá-lo e a tudo que lhe diga respeito, produzindo sua própria oficina de conhecimento, mas não pense que será fácil, a complexidade o espera na porta de entrada. Quer um exemplo?

Eu precisei de três décadas para compreender os meandros da mente e os humores do comportamento humano em relação às crenças. Cheguei até aqui imerso em águas nunca imaginadas e ainda tenho uma bela jornada pela frente. No entanto, ora veja, tem gente que mal chegou no mundo e acha que já sabe das coisas, porque montou seu entendimento sem ter atravessado o túnel das experiências reais consolidadas, e sem ter encorpado a voz o bastante para dialogar com o mundo. Outros leem meia dúzia de livros e trocam ideias na sala de espelhos da câmara de eco e supõem que isso seja suficiente para formatar seu saber. Em ambos os casos, são novatos numa estrada poeirenta e vão ter muito sol queimando no lombo antes da próxima parada.

Eu poderia falar sobre uma enxurrada de medidas que foram e estão sendo tomadas de forma desastrosa, leviana e inconsequente, com ou sem pandemia, mas não o farei. Isso ocorre quando se quer torcer, distorcer, ocultar ou falsear a realidade, o que vem acontecendo cada vez mais nos últimos anos. Há, também, os casos de oportunismo, interesses pessoais suspeitosos e outras artimanhas do tipo. Incorrer nessa irresponsabilidade é flertar com o caos. O ponto é: realidade, verdade e fato não podem ter versões porque são indissociáveis. O fato, ao existir e por existir, já é real e verdadeiro. Esta é uma questão complexa que pede muita atenção, não é fácil compreender de imediato. Tomemos como exemplo os 500 mil mortos na pandemia; o número “500” pode ser questionado, corrigido, o que não muda, porque real e verdadeiro, é o fato gerador - a pandemia -, os mortos são consequência. Um fato pode ser relativo e subjetivo na sua interpretação, mas será sempre real e verdadeiro na sua crueza. A realidade é uma sucessão ininterrupta de fatos, portanto, sempre verdadeira, sem intermediações nem inferências. 


Quem não vê a realidade dessa forma, quem a subestima ou a reescreve em sua própria linguagem, denuncia sua rota de fuga, declara sua imaturidade e incapacidade de lidar com o enredamento do mundo, e de compreender as regras do jogo. Ou navega no maremoto da realidade, ou vai andar de pedalinho na represa, onde estão os medrosos e os insuficientes de si próprios. Outro amigo vive me dizendo que temos realidades diferentes. A ser assim, então são 7 bilhões de realidades diferentes ao mesmo tempo, e o mundo passa a ser o que cada um quer que ele seja!

O conceito de realidade tem sido debatido ao longo da história pelos melhores pensadores, de Platão e Aristóteles a Kant e Spinoza, entre outros. É uma boa conversa para abstrações filosóficas depois do jantar, mas é também uma saída estratégica para quem não quer topar de frente com um muro de concreto. O mundo real. A realidade é uma e única coisa, o que muda é a leitura que cada um faz dela. Em si mesma, ela é imutável e irredutível, como a verdade e o fato.


É fundamental o exercício da reflexão livre de conceitos preestabelecidos, e senso crítico apurado diante daquilo que se apresenta aos olhos. Não há fórmula pronta, não basta “virar a chave” e esperar que tudo mude. É um longo e gradual processo de maturação das estruturas cognitivas a que poucos se dispõem, o que não lhes apetece porque a resposta tem que ser rápida. O que há é um árduo sacrifício intelectual para abdicar das conveniências, dos ranços e matrizes ultrapassadas; é, em certo sentido, reaprender a pensar. Há que se ir além do campo de visão microscópico contido nos limites das percepções e expandi-lo ao tamanho e no compasso do mundo. Do mundo real.


Só compreendendo o real é possível compreender o irreal, e o inverso é tão ou mais verdadeiro. A realidade não deve ser interpretada, vertida, retificada, ela é como o tempo, que não encurta nem estica, ele é imperturbável, nós é que o colocamos na métrica aparente. A realidade é como a Verdade da parábola judaica onde, em estado puro, anda nua pela rua, só não a vê quem não quer encará-la. Uma rosa é uma rosa e não importa o que se pense sobre ela, será sempre uma rosa. La rose est sans pourquoi - a rosa não tem porquê (Silesius, poeta, 1624), ela é o que é porque é. Alberto Caiero, ou Fernando Pessoa, propõe a síntese definitiva: A realidade não precisa de mim”.