Obras

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sexta-feira, 29 de setembro de 2017


CIÊNCIA. RAZÃO E SENSIBILIDADE


Após ter encerrado a série sobre reencarnação, espiritismo e vida após a morte, além de um quarto texto complementar, um amigo veio com um argumento padrão, em nada diferente de outros de mesma natureza. Cheguei a comentar rapidamente em A presença da ausência: a irrefutabilidade do testemunho, mas ele insistiu nessa tese. É um erro primário, infantil até, achar que o relato de uma dada experiência - ou a própria - seja prova suficiente da sua realidade. Fique claro que não se discute a credibilidade da testemunha. A questão é outra, muita atenção nisso.

Imagine se eu acreditasse nos relatos daqueles que alegam terem visto discos voadores, encontrado alienígenas, entrado nas naves, viajado espaço afora,  visto um fantasma na sala, conversado com fadas, sem ter feito um exaustivo exame, sem ter consultado o histórico e a literatura, sem considerar outras explicações, sem ponderar longamente sobre a possibilidade da existência real dos objetos e sem ouvir especialistas?! Certamente eu iria me sentir um idiota, um crédulo ingênuo. Não é assim que funciona, e o mesmo raciocínio se aplica a todos os demais eventos que exijam investigação, conhecimento, diálogo e intercâmbio com outras fontes.

Meu interlocutor afirma peremptoriamente que suas vivências no espiritismo lhe asseguram a realidade do fenômeno; um amigo jura por todos os santos que um disco voador sobrevoou sua casa; outra amiga tem seus motivos para crer que em vida anterior ela foi uma cidadã austríaca. Um experiente piloto civil afirma convictamente ter sido acompanhado em voo por um objeto luminoso. Se depender dos personagens, crédito total, mas só a palavra basta? Não, de forma alguma. Ao pesquisador cabe dissecar, não ficar empilhando ossos. Uma coisa é certa, os depoentes repelirão vigorosamente as conclusões das investigações se estas frustrarem suas expectativas, seus desejos e suas necessidades. Sei disso muito bem. Alimentar-se de explicações simplistas e prontas é alívio para mentes assombradas. Quando você não consegue explicar uma coisa, o problema não está na coisa, mas em você, no pouco ou conhecimento nenhum que tem sobre ela. 


Como diabos o mágico tirou o coelho de cartola vazia? 

A atitude mais lúcida sempre é se pautar por algumas chaves: senso crítico, lógica, cautela, disciplina e ética, e obedecer a um só princípio: Análise. Examinar com precisão cada detalhe, cada instância e cada circunstância, ponderar, contrapor, e a razão para isso também é uma só: Não se pode confiar que relatos dessa ou de qualquer outra ordem, independente da autoria, sirvam como elemento probatório de sua veracidade enquanto não se esgotar um minucioso inquérito. Indício não é sinônimo de evidência. Não é possível obter uma resposta mínima e razoavelmente satisfatória se não for feito um rigoroso estudo. Por que é tão difícil entender isso? Só porque contraria 'certezas' estabelecidas? E o espírito crítico, como fica? Os sectários, no entanto, se aferram às suas experiências e não admitem nem ousam pensar o contrário. É a famigerada zona de conforto da qual não abrem mão, zona que começo a chamar de cinzenta. Ou sombria. Ou escura mesmo.

Reitero, e desculpe a insistência, mas a vida só pode ser tecida pela decência e seriedade se assentada na lógica, mo racional, ma prudência e, sobretudo, na ética. Inclua-se, também, razão e sensibilidade. Fora dessas balizas tudo é ingenuidade, desordem, insciência, negligência, analfabetismo funcional, absolutismo e vigarice. Para Morin, estamos vivendo um momento histórico em que os desenvolvimentos técnicos, científicos e sociológicos são múltiplos e cada vez mais estreitamente interrelacionados. Atenção agora para essa fala: "Vemos que o próprio progresso do conhecimento científico exige que o observador se inclua em sua observação, ou seja, que o sujeito se reintroduza de forma autocrítica e autorreflexiva em seu conhecimento dos objetos". Entendeu? Ele é loquaz ao afirmar que estamos vivendo a aurora de um grande e profundo esforço que requer novos investimentos intelectuais que permitam prover meios de autorreflexibilidade e auto-integração da atividade científica. Não é pouca coisa, não é para fracos e acomodados, é um processo lento, longo, difícil, que demanda persistência, disciplina e principalmente vontade., virtudes bastante em falta na praça. Seria uma cultura às avessas, talvez uma "culturafobia" em curso?

Imagine o intelecto um músculo: se não exercitá-lo, ele atrofia, fica flácido, perde força e vitalidade. Não mantê-lo em atividade o torna "preguiçoso", se contentando com o básico, com o que está à mão, não questiona, não duvida. Responda, você é pensante ou errante? Uma rosa só floresce plenamente se sob a luz. Você também! Quem sabe a lápide de Kant te diga algo: "Duas coisas me enchem a alma de admiração e respeito quanto mais frequentemente o pensamento delas se ocupa - o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim". Razão e sensibilidade é isso.

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Edgar Morim, Ciência com Consciência.  Bertrand Brasil, 2005.
Harold Bloom, Presságios do Milênio: Anjos, sonhos e imortalidade. Objetiva, 1996.
John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano. Martins Fontes, 2012.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017


A VIDA NÃO PERMITE RASCUNHO




Você leu aqui no primeiro módulo da série sobre reencarnação (A travessia no tempo), três semanas atrás, uma citação de Ernest Becker sobre a mentira caracterológica, ou mentira vital. Quero desenvolver um pouco mais essa questão, e para isso trago um panorama de A Negação da Morte, obra pantemporânea, clássica, densa, profunda, de um autor à frente do seu tempo que modestamente reconhecia Otto Rank como precursor e inspirador de todo o seu sistema de pensamento.

Retomo esse tema pela sua inegável relação no contexto deste blog que, apesar do nome, pretende sempre ir um pouco além da mera discussão sobre 'discos voadores', discussão essa, aliás, a meu ver, cada vez mais dispensável. Só um pouco além, repito. As conexões entre os temas são bastante óbvias porque a gênese é a mesma. Junte com tudo o que já leu aqui e sua reflexão se ampliará. Caso não tenha lido, o entendimento poderá ficar comprometido.

A angústia em torno da ideia da morte é algo constitutivo ao animal humano. A ideia da morte é algo tão forte que é recalcada logo no nascimento. O bebê, com seu ego ainda não constituído, vale-se do narcisismo dos pais para a construção de um projeto heroico sublimatório que dê conta dessa angústia que ele, sem instrumental psíquico, não dá. Toda a movimentação humana se dá em torno de um projeto heroico que sirva de suporte para a contenção da angústia e do sentimento de paralisia ante uma certeza negada, a morte. 

Segundo Becker, o grau de adaptação do indivíduo estaria ligado ao nível de encobrimento que o projeto heroico consegue trazer para ele. Nesse sentido, quem “mente bem” estaria adaptado e com suas angústias controladas por um tempo, até se fazer necessária uma nova mentira-remendo. Essas mentiras que nos contamos para darmos conta da certeza da finitude são nomeadas pelo autor como mentiras de caráter (mentiras caracterológicas) ou mentiras vitais.

Becker explica que diante da morte, por desempenhar um papel crucial na existência, a tendência humana é negá-la através de artifícios psicológicos inconscientes de autoengano e auto-ilusão. Creio dispensável listar de quais artifícios, mentiras e ilusões nos servimos. Becker centra sua análise também no conceito de heroísmo como a atitude humana arquetípica frente à realidade do mundo, da vida e da inexorabilidade da morte. Aliado ao conceito de heroísmo e não menos importante está o olhar psicanalítico sobre o narcisismo. Segundo ele, “Estamos perdidamente absortos em nós mesmos e, para cada um de nós, todos são sacrificáveis, exceto nós mesmos”. Vale destacar que sua análise antecede em muitos anos o advento das redes sociais, que amplificaram esse comportamento e certamente o fariam aprofundar o estudo. Nesse sentido, ele acrescenta que um pouco de vaidade e ilusão sobre nós mesmos evita cairmos em depressão profunda. Para mim, essa verdade por si só já deprime, mas, reconheço, só pode haver circo se houver pão, se você me entende.

Becker afirma que, na infância, vemos a luta pelo amor-próprio na sua fase menos disfarçada e que todo organismo proclama em voz alta as exigências de seu narcisismo. Esse desejo de extensão, esse desejo humano de se destacar, de ser algo na criação, quiçá ser o primeiro no universo, de provar que vale mais do que outra coisa ou pessoa é o que ele designa como “significância cósmica. Sem essa significância, mais desgraçado, degradado, degredado, efêmero, medroso, infantil, retardado e diluível - nessa ordem - o homem se torna.

Para Freud, o homem vive num mundo de símbolos e sonhos, seu narcisismo se alimenta de símbolos. Por isso, sua necessidade de incorporar símbolos e de se expandir neles, o que se constitui em uma forma de imortalidade. Considera-se, assim, que um dos conceitos básicos para compreender a ânsia do homem pelo heroísmo é a ideia de narcisismo, o instinto de sobrevivência e a necessidade de existir.

Necessidade de existir, necessidade de aplauso, afeto e afago, necessidade de auto-afirmação, necessidade de significância... Carências permanentes e absolutas. Deserto interior mais que exterior, imaturidade psíquica, fraqueza espiritual, fragilidade emocional, inanição intelectual, traços denunciadores e de uma existência esmagada pela finitude. Mentir é, sob todos os aspectos e em qualquer circunstância, trair-se, iludir o outro eu, falsear a realidade negando a verdade. O ápice da incoerência e da contradição é o sujeito mentir para si e acreditar na mentira! Só há perdedor nesse jogo, é não ter crédito em seu próprio banco. Como diria Giannetti, "é a lógica do círculo quadrado na geometria".

Espero que você tenha compreendido que nenhum crescimento e nenhuma liberdade de pensamento serão possíveis enquanto se viver na inefável Terra de Oz, o mundo do faz-de-conta, das fantasias, das utopias e quimeras. Transferir responsabilidades e delegar a tutela da existência a legisladores imaginários - deuses, anjos, espíritos, oráculos, extraterrestres, epifanias e demiurgos -, é assumir-se ingênuo, covarde e inapto para conduzir a própria vida com autonomia. A decisão é sua: Amadurecer acompanhando a velocidade do mundo ou ficar brincando de roda com o tempo. Acredite, você não terá segunda chance. 
A tão desejada imortalidade não está em nós, mas na obra que fazemos e deixamos, daí a importância das nossas escolhas. Não basta ler,  quero que você reflita a respeito.

No momento em que redigia estas linhas, Shakespeare irrompe na tela e se encaixa no texto a tempo: Somos feitos da mesma matéria que compõe os sonhos, e nossa breve vida está envolta em sono (...) A vida é uma sombra errante; um pobre comediante que se pavoneia no breve instante que lhe reserva a cena, para depois não mais ser ouvido. É um conto de fadas que nada significa, narrado por um idiota cheio de voz e fúria. Você é sempre bem vindo, William.

Para fechar, uma última reflexão com matiz poético: 
Somos a grande embarcação que navega à volta de um sol ardente no universo. Mas cada um de nós é também um barco que atravessa a vida com uma carga de genes. Quando a tivermos transportado até ao porto seguinte, não teremos vivido em vão. (Jostein Garder)



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Eduardo Giannetti, Auto-engano. Cia. de Bolso, 1997.
René Guénon, O Erro Espírita. Ingret, 2017.
Mary Del Priore, Do Outro Lado. Planeta, 2014.
William Shakespeare, Macbeth. Objetiva, 2003.
________. Como Gostais/Conto de Inverno. L&PM, 2009.
Theodore Dalrymple, Podres de Mimados. É Realizações, 2015

sexta-feira, 15 de setembro de 2017


INFINITUDE  INTERROMPIDA

Eu poderia ter fechado o post anterior de forma sarcástica: “Elvis vive, em alguém, em algum lugar”. Sarcasmo não é sinônimo de deboche. O que quero saber é por que só pessoas "legais" reencarnam? Não consta da lista de retornados figuras como Dante, Napoleão, Rei Arthur, Tiradentes, Carlota Joaquina, Robespierre, Tocqueville, Platão, Shakespeare, Michelangelo, Cleópatra... Curiosamente, também, ninguém quer ser a reencarnação de um "zé ninguém", de um ilustre desconhecido. Outra questão: Todos os sete bilhões de seres do planeta são reencarnados? Em sentido inverso, todo esse povo irá reencarnar? Como explicar que a população mundial cresce exponencialmente a cada década? A média global anual de mortes é de 40 milhões, e a de nascimento, 90 milhões¹. De onde vem o excedente? Em 2000 éramos seis bilhões, e o bilhão a mais hoje veio de onde, das Plêiades? Se a resposta for não, não são todos que reencarnam, então quem ou o que estabelece o critério - se é que há - para que um espírito retorne e outro permaneça no limbo?

Mais perguntas, tomando o exemplo de Beethoven: O fato de uma criança tocar piano como o músico alemão significa que este reincorporou nela, segundo os defensores da teoria, certo? Mas não são eles a dizer que reencarnação é um "degrau evolutivo" na vida do sujeito? E Beethoven volta como Beethoven de novo? É só o talento que prevalece ou toda a personalidade do gênio, com seus defeitos, humores, manias, cacoetes e virtudes? Por que a criança não fala o idioma do músico? Só o que é "bom" aparece? Os reencarnacionistas têm as respostas ou selecionam as explicações de acordo com suas conveniências e interesses?

É muito comum algumas pessoas alegarem ser a reencarnação de uma enfermeira da Segunda Guerra morta em ação, ou de um médico indiano do século 18 que só atendia pessoas sem recursos por caridade, enfim, gente desse tipo. Heroísmo, solidariedade, benemerência pegam bem, mas ninguém quer ser a reencarnação de Jack, o estripador, do sanguinário conquistador mongol Genghis Kan, do impiedoso Átila, o Huno, de um carrasco ceifador da Inquisição ou de um estuprador, um pedófilo, um criminoso. Não são eles que mais precisariam de remissão? Não, o reencarnado jamais terá vindo dessa escória, mas de alguém 'do bem'. Facínora não tem direito à 'evolução cármica'. Nada disso faz sentido. Nem poderia. Quem não tiver oxigênio para defender sua tese, que não faça, ou vai dar com os burros n'água.

Muito se fala em "autoconhecimento" como forma de "transcender a matéria". Bonito, soa chique, mas o que poucos sabem é que o real conhecimento de si é amargo como fel porque, entre outras coisas, obriga admitir que vive à custa de mentir para si mesmo o tempo todo sobre a vida e a morte, servil a um protetorado imaginado. O indivíduo, desassistido pelos deuses, à mercê de seus flagelos, infortúnios e desgraças, sente o fluir inclemente da sua história, por isso quer e precisa confiar em suas criações, em suas fantasias, mesmo ilusórias, para que elas, em contrapartida, lhes deem a força necessária para suportar essa longa e trágica travessia Não precisaria acreditar, não fosse presa fácil de suas crenças e refém de seus medos, e se não se encantasse tanto com sua realidade imaginária.

A reflexão sobre as diferentes formas do desespero (des-espero - não esperar), da temporalidade - finitude e infinitude relacionadas, respectivamente, ao fator corporal limitante e ao espiritual expansivo e ilimitado da síntese humana, mostra como o indivíduo pode beirar o colapso psíquico caso afirme em excesso ou suprima um de seus polos. Sujeito compósito, bífido, dual, ou, como diz Morin, unidual – dois em um: metade divino, dotado de linguagem, expressão e sentimentos, autoconsciente, metafísico, transcendente, e metade humano, amedrontado, desorientado, condenado à decomposição da carne e ao esquecimento. Baudelaire não suaviza:

Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro,
um granito açoitado por ondas de assombro,
a dormir nos confins de um Saara brumoso.
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
esquecida no mapa, e cujo áspero humor
canta apenas os raios do sol a se pôr.

Diante da certeza da morte, e se à ciência não cabe o papel de Deus, o sujeito moderno opta por negar sua débil condição humana, não sem antes recorrer a modelos exteriores para escorar sua existência. Por que o homem vive essa ansiedade? Por que esse “absurdo” na vida terminal? Por que buscamos um significado para existir e ela parece negar-nos? Não é tanto o “quando?” e o “como?” que aflige a consciência do indivíduo, mas o “por quê?”. Não se engane, não há e não haverá jamais respostas totalizadoras porque às perguntas do homem deus não responde, e às perguntas de deus o homem não tem respostas. 

Tudo isso é mais que um conflito, é uma neurose, uma cisão interna fortemente enlaçada com a questão do próprio tempo, e representa uma tentativa frustrada de resolver dentro de si um problema universal. A vida é apenas uma faísca do tempo cósmico, e é nela que transcorre toda a existência humana. "A vida não é mais que uma fina chuva de verão", afagam os poetas. 

Se o tempo é o tecido das nossas vidas, como dizia Antonio Candido, e se não temos mais tempo para o tempo que deveria ser nosso porque se desfaz antes que possamos senti-lo, buscamos esticá-lo antes que seja tarde, antes que escoe em si próprio. Bergson afirmava que o presente não existe porque ele é a milésima parte da milésima parte de uma dimensão que o passado empurra para frente, ao mesmo tempo em que o futuro apaga, engole. Entende-se então que o passado é apenas memória (passível de nem existir) e o futuro simples ficção (não existe mesmo). A única certeza que esse futuro nos dá é a morte, e o temor disso é passar pela vida “sem ter a experiência de escrever a sua própria rapsódia” (Walter Benjamin).
 

Morin e Becker dialogam sobre o fim: o homem o teme porque faz perder sua individualidade, resultando no "traumatismo da morte"; juntamente com a consciência da morte e a crença na imortalidade, forma o triplo dado - a antropobiologia, o duplo e a morte-renascimento. A consciência realista da morte é traumática em sua própria essência; a consciência traumática da morte é realista da sua própria essência. “Onde o traumatismo ainda não existe, onde o cadáver não está singularizado, a realidade física da morte ainda não está consciente”, diz Morin.

A morte, para o homem, é um não acontecimento - não quer ver nem falar nem ouvir falar; é um esboço sobre cegueira, mudez e surdez. Às exéquias do sujeito morto assistimos ao ensaio geral de nosso próprio funeral. A consciência da morte não é inata, é cultural. Por fim, a crença no renascimento deriva para outra, de concepções mais arcaicas, a manifestação do duplo através do qual o indivíduo pensa assegurar sua vida após a morte, e o caminho mais comum é o do espiritismo e de outros cultos, aos quais Morin denomina “fixação institucionalizada do infantilismo humano diante da morte”. A crença na reencarnação, espíritos e vida eterna faz parte do cipoal metafísico no qual o homem se agarra com fervor para não ser tragado pelo charco movediço da excruciante caminhada no tempo. Há um sentimento consensual entre pensadores de todas as épocas sobre essa fragilidade, essa vacuidade e essa imaturidade do ser perante a dimensão trágica da existência em sua infinita finitude. 
Como escreveu o ensaísta e poeta Lêdo Ivo (1924-2012), "Afinal, o que sobra é a obra, o resto soçobra."

Penso que não foi difícil compreender o cerne da discussão trazida aqui. Nossa inconsistência é fratura exposta, nossa incapacidade em "controlar" o tempo é angustiante. Só percebemos a brevidade da vida quando nossa jornada aproxima-se do ocaso. Quando jovens, não estamos "nem aí" para o tempo, tratando de viver o aqui e agora, quando muito planejando um futuro possível na expectativa de efetivamente vivê-lo, mesmo sem qualquer garantia disso. Se há alguma "garantia" de que vamos viver esse futuro, é aquela que criamos artificialmente para preencher tantas lacunas. Entre estes artifícios está a reencarnação, a crença em 'espíritos evoluídos' que vagam em outras esferas, na vida após a morte, enfim, na continuidade da vida. Claro que tudo é tão mais sutil quanto denso e complexo, mas não espere mergulhos mais profundos agora.

Esse "entre eles" indica que há mais coisas, mais instrumentos "garantidores" dessa pretensa imortalidade, e me perdoe se sou repetitivo, mas preciso sê-lo: Estou falando de anjos, mestres e, mais especificamente, de oráculos (de aliens já falei demais). Por que destaco as práticas divinatórias? Porque, falaciosas, vaticinam um futuro inexistente, imaginado, ilusório, irreal, mentirosamente construído. De modo geral, as pessoas se deixam levar por tais predições desde que lhes sejam favoráveis, mas, se um astrólogo, cartomante ou 'vidente' lhe disser que desgraças estão a caminho ou que sua morte é iminente, a tendência será ouvir uma "segunda opinião". Se esta confirmar aquela, você tocará seus dias com apreensão, procurando, inconscientemente, não levar muito a sério, afinal, são apenas "crendices populares". 




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¹  http://www.worldometers.info/br/
Gaston Bachelar, O Direito de Sonhar. Bertrand Brasil, 1994.
Harold Bloom, Presságios do Milênio: Anjos, sonhos e imortalidade. Objetiva, 1996.
Peter Burke, Cultura Popular na Idade Moderna. Cia. de Bolso, 1978.
António R. Damásio, E o Cérebro criou o Homem. Cia. das Letras, 2011.
Émite Durckheim, As Formas Elementares da Vida Religiosa. Martins Fontes, 2000.
Norbert Elias, A Solidão dos Moribundos. J. Zahar, 2001.
Ana Freud, O Ego e os Mecanismos de Defesa. Artmed, 2006.
John Gray, Cachorros de Palha:  Reflexões sobre humanos e outros animais. Record, 2007.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017


A PRESENÇA DA AUSÊNCIA

Continuando com o tema iniciado na semana passada, o fundo religioso contido na ideia da reencarnação tem uma força extraordinária, especialmente no Ocidente, onde o cristianismo tem rebanho numeroso. A crença no "retorno" tem grande poder de sedução justamente porque atende ao mais atávico anseio humano - a eternidade, ou imortalidade. Quem é regido pelos princípios católicos não rejeita o conceito de vida eterna, ou vida após a morte, o que pode tomar contornos de heresia.

O sujeito morre, o corpo é desembaraçado. Sua vida chegou ao fim, mas seu espírito, consciência, alma, corpo etéreo ou astral ou seja lá que nome tenha, vai para 'outro plano', outra dimensão, e fica lá por tempo indeterminado esperando a hora de 'habitar' outra carne - reencarnar -, no jargão espírita. Simples não? Não! Que plano, que dimensão é essa ninguém sabe, ninguém explica, porque não tem a menor noção do que seja, na verdade, não sabe nem o que está dizendo. Plantam-se as palavras e cada um colhe o que quiser. Bem, se é o espírito ou a consciência que está lá seja onde ou o que for esse "lá", então, pela lógica, animais não reencarnam, lembre-se disso. Se alguém disser o contrário com fundamentação lógica e científica, eu paro de escrever.

Antes de prosseguir, um adendo importante e oportuno. Em 2012, um seleto grupo internacional de neurocientistas reuniu-se para reavaliar os substratos neurobiológicos da experiência consciente e comportamentos relacionados em animais humanos e não humanos. Dessa reunião proclamou-se publicamente a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não-humanos. Não tire conclusões precipitadas, leia o documento primeiro. O neurologista pesquisador do MIT e chefe da equipe, Dr. Philip Low, esteve no Brasil em 2015 apresentando-se na Unicamp com a conferência "Consciência animal: implicações éticas e práticas". O estudo concentrou-se em três esferas: cognição, autoconsciência e senciência. Note o detalhe no título da declaração: Animais humanos e não-humanos...

Vamos voltar um pouco no tempo, aí por volta de seis milhões de anos, quando ainda éramos todos australopithecus - "macacos do sul". A divisão natural da espécie começou lentamente a partir daí, e passamos os três milhões de anos seguintes em mutação para a classe homo - neanderthal, erectus. Os primatas continuaram primatas. Nós não descendemos do macaco, somos uma variação, uma subespécie. Millôr Fernandes dizia com filosófico bom humor: "O homem é um macaco que não deu certo"Levaríamos mais três milhões para chegar ao modelo sapiens. Pergunto: A reencarnação já existia naquela época? Não, claro que não, animais não reencarnam, e nós não passávamos de símios estúpidos digerindo folhagens e raízes. Ou teria sido num passe de mágica ou por intervenção divina que o último pithecus reencarnou no primeiro homo da fila, dando início à cadeia reencarnacionista? Não há nenhuma base lógica ou sentido nesse raciocínio. Queiramos ou não, gostemos ou não, continuamos primatas, agora pensantes. E animais não reencarnam.




Os sequazes dessa doutrina professam suas teses a partir de episódios esporádicos incomprováveis, embora afirmem possuir "provas irrefutáveis": uma criança que toca piano como Beethoven, uma jovem que fala em outro idioma sem prévio aprendizado (xenoglossia), ou alguém, visitando um lugar pela primeira vez, caminha pelas ruas e alamedas com a desenvoltura de um morador. Em outra ocasião, é dito ao sujeito que, em vida pregressa, na Grã-Bretanha da Idade Média, ele era um habilidoso ferreiro na corte do Rei Arthur, e ele não só acredita como passa a entender sua 'interesse' por cavalos e histórias das Cruzadas, pouco importando se se tratar de literatura fantástica,

Assim, consultei Jumg para saber se há algum fundamento psicológico para a crença em espíritos, e encontrei uma resposta. Leia com atenção:
Se lançarmos um olhar para o passado da humanidade, encontraremos, entre muitas outras convicções religiosas, uma crença universal na existência de seres aeriformes ou etéreos que habitam em volta do homem e exercem sobre ele uma influência invisível, mas poderosa. Em geral esta crença é acompanhada da ideia de que estes seres são espíritos ou almas de pessoas mortas. Esta crença se encontra tanto entre os povos altamente civilizados como entre os aborígines australianos que ainda vivem na Idade da Pedra. Mas entre os povos civilizados do Ocidente, a crença nos espíritos tem sido combatida há mais de um século pelo Racionalismo e Iluminismo científico, e reprimida em um grande número de pessoas cultas, juntamente com outras crenças metafísicas.
Em Memória, Sonhos, Reflexões, ele amplia seu exame: O  problema  do carma, assim como o da reencarnação ou da metempsicose, ficaram obscuros para mim. Assinalo com respeito a profissão de fé indiana em favor da reencarnação e, olhando em torno, no campo de minha experiência, pergunto a mim mesmo se em algum lugar, e como, terá ocorrido algum fato que possa legitimamente evocar a reencarnação. Cabe lembrar que ele era profundo estudioso das religiões e mitologias porque eram importantes para a clínica do inconsciente, tendo sempre muita reverência por todas as correntes, incluindo as extra-acadêmicas, o que não o impedia de ponderar criticamente sempre no âmbito de sua competência. 

Jung tinha também especial interesse pelo xamanismo, pajelança, folclore, feitiçaria, ocultismo, práticas divinatórias e oraculares como Astrologia, I Ching, Tarô, pela riqueza de simbolismos e conteúdos arquetípicos, fundamentais para os seus estudos. Sua atitude diante destes fenômenos está assim colocada¹, e novamente peço atenção na leitura:
O homem primitivo não se interessa pelas explicações objetivas do óbvio, mas, por outro lado, ele tem uma necessidade imperativa, ou melhor, a sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve corresponder - para ele - a um acontecimento anímico, isto é, o Sol deve representar em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo, habita unicamente a alma do homem.

O que ele está dizendo é que vemos o mundo sob um olhar eminentemente simbólico, porque os símbolos são uma criação humana assim como a arte, a religião, a linguagem, baseados em nossa experiência e no modo como construímos esse mundo. Cassirer definia o homem como homo symbolicum e não rationale. O símbolo é uma forma de estruturar e harmonizar as relações do homem com o mundo, mesmo sendo uma relação conflituosa, turbulenta, complexa, mas é a única possível.

Perdoe se me estendo, mas é essencial aprofundar no pensamento de Jung, porque é quem melhor trata destas questões metafísicas com olhar livre de paixões:
A projeção é tão radical que foram necessários vários milênios de civilização para desligá-la de algum modo de seu objeto exterior. No caso da astrologia, por exemplo, chegou-se a considerar esta antiquíssima scientia intuitiva como absolutamente herética, por não conseguir separar das estrelas a caracterologia psicológica. Mesmo hoje, quem acredita ainda na astrologia, sucumbe quase invariavelmente à antiga superstição da influência dos astros. O homem primitivo é de uma tal subjetividade que é de admirar-se o fato de não termos relacionado antes os mitos com os acontecimentos anímicos. Seu conhecimento da natureza é essencialmente a linguagem e as vestes externas do processo anímico inconsciente." E finaliza: "O homem primitivo simplesmente ignorava que a alma contém todas as imagens das quais surgiram os mitos, e que nosso inconsciente é um sujeito atuante e padecente cujo drama o homem primitivo encontra analogicamente em todos os fenômenos grandes e pequenos da natureza.

Voltando à reencarnação, ainda em Memórias, prossegue Jung (destaque meu): É evidente que deixo de lado os testemunhos relativamente numerosos que acreditam na reencarnação. Uma crença prova apenas a existência do "fenômeno da crença", mas de nenhuma forma a realidade de seu conteúdo. É preciso que este se revele empiricamente, em si próprio, para que eu o aceite. Até estes últimos anos, embora tivesse tido toda a atenção, não cheguei a descobrir absolutamente nada de convincente neste campo. E encerra confessando que, apesar da boa vontade e cuidado nas observações, não poderia endossar a realidade da reencarnação.

Ian Stevenson, um dos mais importantes nomes na pesquisa sobre reencarnação, apesar de empregar metodologia científica por muitos anos em busca de respostas, nunca conseguiu comprovar o fato. Ele dizia que os casos estudados apenas sugeriam o fenômeno. Stevenson tinha em seu acervo casos de xenoglossia manifesta em sonhos e em vigília, os sonhos propriamente ditos, marcas de nascença ou peculiaridades físicas que pareciam estar relacionadas a vidas passadas, mas que puderam ser comprovadas. Mesmo com farto material, não havia nenhuma evidência que pudesse atestar a realidade da reencarnação.

Mais um adendo necessário. Esteve recentemente em visita ao Brasil, a convite da Universidade Federal de Juiz de Fora,  Robert Almeder, professor titular de Filosofia da Ciência da Georgia University, EUA, quando apresentou a conferência "Há evidências científicas de sobrevivência da mente/consciência após a morte?" Apesar de Stevenson ter dito "Não é razoável acreditar na reencarnação", Almeder segue seus passos e acredita na reencarnação, mas admite ser difícil falar em provas ou apresentar evidências científicas, e rebate seu nentor: "Não é possível rejeitar a crença na hipótese da reencarnação" (itálico meu). Continuamos na próxima semana.

Ah, sim, lamento informar que Elvis morreu e não voltará, nem agora nem nunca.




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¹ Carl G. Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes, 2000.
_______. O Eu e o Inconsciente. Vozes, 2008.
_______, Memórias, Sonhos, Reflexões. Nova Fronteira, 1986.
_______. A Natureza da Psique. Vozes, 2000.
Ian Stevenson, Xenoglossia: novos estudos científicos. Vida&Consciência, 2012.
_______. Reencarnação: vinte casos. Vida&Consciência, 2010.
Tom Shroder, Almas Antigas. Sextante, 2001.
Ernst Cassirer, A Filosofia das Formas Simbólicas - o pensamento mítico. Martins Fontes, 2004.
Robert Almeder, Death & Personal Survival: The evidence for life after death. Rownam&Littlefield, 1992.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017


A TAVESSIA NO TEMPO

Desviando um pouco do roteiro habitual deste blog, a conversa que vamos ter a partir de hoje e nas próximas semanas é bem delicada, pois mexe direta e profundamente com convicções enraizadas na alma. Os amigos que pedem minha opinião a respeito sabem que ela está embasada em anos de estudos e reflexões. Na verdade, não é um tema só, mas três: reencarnação, espiritismo e vida após a morte, que se enroscam e se fundem, sendo difícil distinguir onde acaba um e começa outro. A reboque, vem a tal "terapia de vidas passadas", uma indigência moral e indecência ética que me abstenho de comentar.

Procurei não ser repetitivo, mas foi inevitável tocar em pontos onipresentes aqui, o último deles em Vazio que não se preenche. Tenho evitado seguir a trilha poeirenta do 'senso comum' porque ela leva sempre à modorrenta zona de conforto da acomodação e do conformismo. Há muito caiu por terra a concepção errônea de que só utilizamos 10% do nosso cérebro, querendo com isso dizer que não temos capacidade de apreender certos "mistérios". Não há como determinar a fração de algo quando não se pode mensurá-lo todo. Essa é uma típica lenda urbana formulaica. A nossa mente ainda tem muito a revelar e a neurociência projeta e promete descobertas surpreendentes.

Muitos dizem "não mexa com coisas sérias que não conhece". Errado, de novo, é justamente aí que devemos ir fundo, escarafunchar, demolir falsas ideias, desfazer mitos e derrubar tabus. Por outro lado, como onde há luz há sombra, ainda somos muito primitivos, limitados, covardes, e nos deixamos banhar nas águas da ignorância por preguiça. Ou medo. Então, fundamos religiões e templos, elegemos oráculos e deuses, criamos ritos, superstições, lendas, fábulas. Se o desconhecido é desconhecido só porque é desconhecido, deixemo-lo assim? excesso de respeito pelo sobrenatural, pelo desconhecido ou "transcendente"é porta de entrada para o medo, que bloqueia o intelecto e o torna covarde. Se as mentes mais brilhantes não ousassem pensar muito além do simples, se não dessem o passo para fora da caverna, ainda estaríamos venerando totens e divindades telúricas. Muitos ainda estão.

De modo geral, a base da reencarnação fala de espíritos aguardando (ou não), em "outro plano", a vez de retornar ao mundo dos vivos para prosseguir na sua escala evolutiva. No Brasil, essa doutrina, e mais ainda o espiritismo, perdura por razões culturais e emocionais, mas no resto do mundo, inclusive na França, seu berço, ficou restrita a um esquálido número de persistentes adeptos. Não vou discorrer sobre psicografia, psicopictografia, psico isso psico aquilo, obsessão, incorporação, mediunidade, que pertencem ao campo da parapsicologia e sob estudo principalmente das áreas de Saúde Mental, Psicologia e Psiquiatria.

O eixo central por onde gravitam crenças, paixões e esperanças  - palavra forte nesse contexto - está no olhar inescapável sobre a finitude da vida. A travessia existencial é uma lenta e silenciosa agonia que acorrenta e atormenta esse moderno, triste e pobre Prometeu. Pode-se dizer que essa é a síntese consensual entre os mais profundos pensadores, e começo por Schopenhauer, filósofo polonês do século 19 (1788-1860), por onde iniciamos nossas reflexões: O animal vive sem o conhecimento verdadeiro da morte, por isso o animal indivíduo goza de todo caráter imperecível da espécie, na medida em que só se conhece como infinito. Com a razão aparece, necessariamente, entre os homens, a certeza assustadora da morte. Os aspectos envolvidos nessa "tríade una" trazida aqui se movem por vários campos - religião, cultura, história, biologia, psicologia, metafísica, mística e mitos. Dizendo de outro modo, é a busca obstinada de sentido para a vida que faz o homem ir atrás de sua perpetuidade, de ocupar o vazio que não se preenche. Para ele, a vida precisa ter um sentido.

É esse o tom de Heidegger, filósofo alemão contemporâneo (1889-1976): A angústia é uma característica fundamental da existência humana. Quando o homem desperta para a consciência da vida, percebe que ela não tem sentido ou finalidade. É uma sombra que paira sobre todas as coisas. É o nada que tudo aniquila e que está por sobre e além de nós. Tudo caminha para o ocaso e decadência. Tudo termina no nada, e não há palavras que possam expressar o nada que sentimos. Não só é muito difícil admitir tudo isso, como é doloroso, desagradável e causa muito desconforto, talvez até um trauma, um choque, reconsiderar conceitos condicionantes e combater os dragões negros e cegos guardiães da resistência, aquartelados  nas lacunas do espírito.

Ao tomar consciência desse fato inexorável, o intelecto se fragiliza, mente para si mesmo, o que Becker chama de "mentira caracterológica" ou mentira vital: O homem tem uma identidade simbólica que o destaca nitidamente da natureza. Ele é um eu simbólico, uma criatura com um nome, uma história de vida. É um criador com uma mente que voa alto para especular sobre o átomo e o infinito, que com imaginação pode colocar-se em um ponto no espaço e, extasiado, contemplar o seu próprio planeta. Essa imensa expansão, essa sagacidade, essa capacidade de abstração, essa consciência de si mesmo dão ao homem a posição de um pequeno deus na natureza. É essa mentira que 'sustenta' a existência humana. O homem quer ser imortal como os deuses, mas "esquece" que essencialmente é um animal como qualquer outro, um cavalo selvagem domesticado, mas sempre um cavalo.

Por tudo isso, ele anseia pela sua significância cósmica. Em uma palavra, narcisismo. Integrar-se ao universo 'infinito' é uma forma de continuar 'existindo', de imortalidade, ainda que simbólica. No entanto, esse mesmo narcisismo capacita-o para o recalque da ideia da morte, pois nos seus recessos orgânicos mais íntimos, ele se sente imortal, diz Becker novamente. E há uma luta interna invisível, titânica, consumindo toneladas de energia psíquica, para que as estruturas internas do indivíduo não deixem vir à sua consciência a ideia da morte, uma espécie de negociação permanente com o inconsciente para que ele deixe a consciência fora desse diálogo. Ou é assim ou, dirá Nietzsche, "a angústia de acompanhará". Bem, de qualquer jeito, a angústia será sua parceira constante, ela é parte da sua vida, ou seja, só acaba quando finda a vida. Para Ortega y Gasset (1883-1955), a verdadeira condição do homem é a de um náufrago, o que explica muita coisa. Ou tudo. 

Sartre, por sua vez, diz que o sujeito deve ser responsável por si: O homem não é passível de uma definição porque, de início, ele não é nada, só depois será alguma cisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Para ele, o sentido da existência humana é o seu compromisso com a história. Você acha que é fácil lidar com o assunto e que explicações simplórias bastam? O exame se divide em camadas e em diversos níveis de complexidade. Perceba que são duas narrativas aparentemente distintas: a da perenidade do espírito e a da solidão cósmica, es eu incluiria uma terceira - a da solidão do homem consigo mesmo.

Para fechar esta introdução mais que necessária, duas observações: Você deve ter percebido os mecanismos compensatórios (e em certa medida, recompensatórios) que o homem articula - consciente ou inconscientemente - para blindá-lo de seus medos, sua covardia, sua incompletude - as tais muletas metafísicas. Falo disso o tempo todo. De qualquer forma, aqui todas as opiniões, vivências e convicções individuais são respeitadas. No lugar de polêmica, proponho pensar a partir da análise crítica dos argumentos. Você pode discordar de tudo, mas não do peso da fundamentação e dos autores e a larga experiência de cada um, por isso a bibliografia conduz a um conhecimento mais amplo. Semana que vem continuamos.



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Ernest Becker, A Negação da Morte. Record, 2008.
Arthur Schopenhauer, Metafísica do Amor. Metafísica da Morte. Martins Fontes, 2008. 
Gaston Bachelard, A Formação do Espírito Crítico. Contraponto, 1996.
José M. de Carvalho, O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro. Rev. Brasileira de Ciências Sociais, 3:38, 1998.
Françoise Dastur, A Morte. Ensaios sobre a finitude. Difel, 2002.
Aniela Jaffé, A Morte à Luz da Psicologia. Cultrix, 1995.
Edgar Morin, O Homem e a Morte. Imago, 1997.
Martin Heidegger, O que é Metafísica. Nova Fronteira, 1996.
Jean-Paul Sarte, O Ser e o Nada - Ensaio de ontologia fenomenológica. Vozes, 2005.
José Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas. Ruriak, 2013.
Soren Kierkegaard, O Conceito de Angústia. Vozes, 2013