Obras

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sexta-feira, 30 de junho de 2017


OO DIA QUE FOI INVENTADOTIU

Semana passada, dia 24 de junho. este blog completou 70 publicações. Não pensei que chegaria tão longe. No mesmo dia, a ufotopia comemorou 70 anos do que seus seguidores chamam de "Dia mundial dos discos voadores". Já foi longe demais. Juro que não programei nada, foi mera coincidência. A;iás, não sei o que os alienmaníacos têm a comemorar. já que estão de mãos vazias até hoje. Ah, claro, dirão eles que as provas são 'irrefutáveis', que governos sabem de tudo mas escondem a verdade, que o Vaticano detém segredos irreveláveis, que Varginha é é um caso incontestável e coisa e tal. Balelas, falácias, devaneios, delirium fremens (não errei, o "f" é de frêmito). Falando em Varginha, aguarde, em breve tratarei do assunto.

Eu ia deixar passar essa data em branco, mas aceitei escrever a pedido do meu amigo Grego, que também gosta de um barulho. A solicitação veio em cima da hora e nem tive tempo de preparar um texto mais elaborado, embora basta dar uma olhada nos posts anteriores ou nas obras que escrevi que está tudo lá, um punhado de boas considerações, análises, reflexões, fundamentação científica de várias disciplinas e autores e uma bibliografia de peso. 

Dia mundial dos discos voadores. Patético, coisa de mente obtusa, medrosa e despreparada para o mundo. Lado a lado, ufólogos que patinam na ignorância e tropeçam no desvario, e néscios viajantes das estrelas de quinta categoria, ambos herdeiros da Nova Era, do bestiário alucinatório, dos sonhos e esperanças que blindam pesadelos e desesperanças. A distância entre fascinados e vacinados está no campo do discurso, e ela não é pequena. O primeiro é monotemático, monocórdico, unidirecional e periférico ao homem: Discos voadores existem, e são tripulados por seres inteligentes provenientes de civilizações longevas e avançadas, que nos visitam há milhares de anos com os mais diversos objetivos. Irracional, bizarro, ilógico, ficcional, deprimente. Um monólogo rouco para si mesmos. 

Já o outro discurso é poliédrico, pluridimensional e multivocal, que incomoda, provoca desconforto e acentua o sentimento de vazio porque atinge o âmago da existência humana: Para mascarar a angústia visceral do desamparo e solidão  no cosmo - a mais vasta jamais imaginada, o homem cria fantasias, sonhos, ilusões e utopias contra uma realidade que desvela seus medos estruturais inescrutáveis, sua indigência e insignificância na infinitude do universo. Não há contraditório possível! A diferença de conteúdo é colossal! 


É para isso que existem as crenças, para atender a demanda de conveniências e carências: de faunos a anjos, de astrólogos e cartomantes a espíritos e vida após a morte, de amuletos e crendices a deuses astronautas e gurus pironautas*. O mercado é livre mas cada cenoura tem seu preço. Para o sujeito errante qualquer caminho é rota de fuga. A covardia é explícita, a insegurança e a imaturidade, escancaradas, porque a realidade lhe é insuportável tanto quanto a ideia da morte. Assim, iludidos, charlatães, flibusteiros e velhacos se unem ao rebanho, que vagueia pelas terras imaginárias de Magonia a festejar o 24 de junho, decretando a sua própria estupidez.

*Pironauta - neologismo, navegador da piração.

sexta-feira, 23 de junho de 2017


O real , o simbólico e o imaginário (final)

A revisão historiográfica calcada na análise crítica dos fatos, somada ao rigor metodológico de uma investigação isenta de paixões e não tendenciosa obedece a uma das prioridades da cultura comunicacional: Conhecer o mensageiro para melhor decifrar a mensagem. As sessões de leitura que Lúcia tinha com sua mãe precisam ser consideradas: histórias da vida dos santos e passagens de uma obra muito influente na época, "Missão Alvorada", do padre Manuel Couto, onde se falava do Inferno em termos medievais, com descrições de suplícios e horrores infligidos às almas pecadoras. Foi nesse ambiente que Lúcia daria seus primeiros passos rumo a clausura que viria logo depois, muito provavelmente fortalecida pela sua experiência visionária.

Outro dado importante de implicações diretas com Fátima diz respeito ao contexto político e ideológico daquele período. Portugal vivia um ambiente de intolerância religiosa pelo excessivo anticlericalismo jacobino dos arquitetos da Primeira República, proclamada em outubro de 1910. Além disso, havia muita incerteza e temia-se pela vida dos jovens soldados portugueses em combate na França. Para os líderes republicanos, os acontecimentos da Cova da Iria eram entendidos como atos de exploração da crendice popular pelas forças antirepublicanas e monárquicas revanchistas. Note-se que Portugal tinha 75% de população analfabeta, vulnerável a rumores, superstições, crendices e toda sorte de imposições culturais.

Nesse intrincado cenário político e social, as aparições ocorreram no mesmo momento em que a Nova República assumia o poder e estreitava suas relações com a Igreja. Portanto, eram "bem vindas", pois sedimentavam a hierarquia católica e se integravam à ancestral tradição mariana ancorada no imaginário mítico português. Em 1863 seria construído o santuário do Sameiro, ainda sem o estrépito das peregrinações fatimistas. Para consolidar essa "união mística" entre a Coroa e a Igreja Católica, em 26 de março de 1646, por requerimento de D. João IV, Nossa Senhora de Fátima foi consagrada Padroeira de Portugal.

Em 1929 o Papa Pio XI realiza a benção de uma estátua da Virgem de Fátima, em Roma, ratificando a validade do culto relativo às aparições. Em 2017, o Papa Francisco, em sua visita ao Santuário, promulga a canonização dos dois primos de Lúcia, Jacinta e Francisco, falecidos em 1919 e 1920. Um conveniente jogo de cena de grande apelo popular. Irmã Lúcia entrou para o claustro aos 14 anos e lá viveu até a sua morte, em 2005. Como Fátima já não era suficiente para sustentar suas débeis crenças, ela alegou ter tido novas visões da Virgem e de Jesus, entre outras entidades celestes (esse grifo é meu). Quanto às alegadas "mensagens", estas poderão ser comentadas em outro momento, tendo por base os trabalho de Fernandes e outros autores.

Pelo conjunto de aspectos aqui sumariamente apresentados, pelos estudos de largo espectro conduzidos por especialistas de diversas áreas e pelas reflexões de cunho filosófico, sociológico, cultural, histórico e psicológico de anos, Fátima se apresenta como um fenômeno emblemático muito além da marianofania. Como diz o próprio Fernandes, Um património imaterial e um fundo cultural ancestral da nossa matriz genética enquanto comunidade e mantêm vivas e persistentes as expressões de um pensamento mágico e da sua estrutura mítica profunda.

E aqui retomo a menção rápida do primeiro post de que nos encontramos diante de um quadro emoldurado pelas instâncias do real, do simbólico e do imaginário, que se tocam e, em certa medida, combinam-se num caldo de discussões multidimensionais. Acho que, neste caso, não preciso me estender em explanações sobre um e outro e outro porque seria afrontar a sua capacidade de apreensão. Já sou grato por saber que esta síntese tenha sido aprovada pelo autor do artigo.

São as palavras finais do amigo historiador que revelam as tintas originais desse moderno palimpsesto: A Igreja Católica acabou por se apropriar dos fenómenos de Fátima, talvez a única instituição no tempo capaz de o fazer, dado o desinteresse e incapacidade da ciência da época. Lúcia, qual donzela sacrificada a deuses ancestrais, foi encerrada e silenciada para que outra Fátima surgisse, mais lógica, mais integrada nos cânones católicos. Lúcia e os primos foram eles e também as suas circunstâncias, os seus limites e possibilidades, como lembra o cardeal Josef Ratzinger, o Papa emérito Bento XVI. Prisioneiros do nosso espaço-tempo e da nossa cultura, ponderamos aqui hipóteses interpretativas que não se coadunam com as necessidades dos crentes que repelem o uso da razão em matérias de fé. Mas, por força das nossas limitações humanas, cada um é livre de acreditar naquilo em que quer acreditar.

Somos tentados a ver na história de Fátima, na versão popular católica e do maravilhoso cristão, uma réplica das narrativas do “país das maravilhas”, o “mundo de Oz”, – ou mesmo o mundo das fadas e das mouras encantadas tão presentes nos nossos arquétipos míticos – onde irrompem as mais fecundas imagéticas do onírico universal, e onde Lúcia dos Santos faz de Dorothy Gale ou de Alice. O complexo estruturante de Fátima traduz um ponto de chegada, um ponto Ómega onde se fundem longínquas correntes culturais, cujos afluentes participaram da construção do nosso inconsciente coletivo e que definiram a sensibilidade feminina da religião popular portuguesa. Portugal foi sempre um país desde a nascença ligado a mitos estruturais. Um país alimentado por prodígios, profecias e espantos. Mas, como lembra Fernando Pessoa, “o mito é o nada que é tudo”…

Terminamos pelo início, de volta a 1917, quando uma amiga de Lúcia, Joaquina Vieira, perguntou à vidente:

Joaquina- Ó Lúcia, o que é que tu viste?
Lúcia – Vi uma Senhora.
Joaquina – O que é que tu lhe perguntaste?
Lúcia – Perguntei quem era vossemecê.
Joaquina – E o que é que ela te respondeu?
Lúcia – Ela esticou um dedo para cima.

Resta por descobrir o que fica na direção do “dedo esticado” da Senhora sob o céu de Fátima/Cova da Iria. Como avisa Confúcio, não detenhamos o nosso olhar no dedo…

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Para quem quiser saber mais sobre as análises contemporâneas de Fátima, indico os seguintes links:
Artigo original:  https://athena.pt/2017/05/11/116/
Documentário Conversas do Centenário com Joaquim Fernandes e convidados, Porto Canal. Seis episódios, um por mês, até outubro. Os dois primeiros já foram ao ar: http://portocanal.sapo.pt/um_video/pa1CmJJsNRhMNViurNgf/


sexta-feira, 16 de junho de 2017


BASTIDORES


António da Silva (irmão da mãe de Jacinta) – Se os cachopos viram uma mulher vestida de branco, quem poderia ser se não Nossa Senhora?!

Aquela “espécie de boneca muito bonita”, como também a descreveu Lúcia, não se identificara, mas a pequena Jacinta antecipara tratar-se de Maria da Nazaré, mãe de Jesus Cristo. Talvez por influência do tio para quem a alegada “Senhora” só poderia ser a Nossa Senhora que ascendera aos céus há quase 2 mil anos…

As aparições seguiram-se por seis meses, "testemunhadas" por milhares de pessoas a cada vez sempre num clima de máxima comoção, além de vendedores ambulantes munidos de folhetos com imagens da Virgem Maria, retratos das três crianças e penduricalhos. Escreve Fernandes: Um imparável rumor ultrapassava já toda a prudência e dispensava os inquéritos por parte dos responsáveis clericais. A força da religiosidade popular, de um povo angustiado pela guerra e ávido de sobrenatural tornara-se um indomável terramoto. E é Joaquim quem faz as perguntas:

A "mulherzinha bonita vestida de branco" seria mesmo a própria Maria de Nazaré? Obviamente que não. Manifestação sofisticada de uma inteligência ou realidade desconhecida? Também não. Uma "visão interior" como sugerida por Bento XVI, ou apenas uma recorrente fantasia infantil? Não tenho dúvidas de que se trata desta última. A situação fugiu do controle a tal ponto que Lúcia jamais negaria o ocorrido, como nunca fez e nem poderia. Ela não desmentiria sua versão dada a rígida disciplina religiosa familiar, a pressão dos clérigos locais e mais ainda pela temência à autoridade divina.

A convicção dos crentes sobre a manifestação de Maria permaneceu indestrutível até 1978, quando Fina D'Armada, uma pesquisadora laica, teve acesso aos arquivos do santuário de Fátima. Pela primeira vez, os documentos estavam sob um olhar fora da Igreja. Como relata Joaquim, Esta investigação foi vertida, em 1982, no livro “Intervenção Extraterrestre em Fátima”¹, que enunciava dados inéditos ou omitidos, hipóteses e leituras inéditas e “chocantes”, com base na reanálise dos inquéritos originais de 1917 e de 1923, amparada na leitura exaustiva e comparada da bibliografia da época, mormente fontes primárias com cerca de uma centena de testemunhos primários e pessoais. 

O próximo comentário me soa contundente e, em certo sentido, mortal para os incuráveis "marianofanáricos": Ainda hoje, o conceito de “extraterrestre” – invocado para os fenómenos de Fátima num amplíssimo espetro de sinónimos e possibilidades de natureza física e astrofísica – teima em ser tendenciosamente traduzido, de forma caricatural, pelo estereótipo do “marciano” e do disco voador do imaginário espacial da década de 1950! Arcaísmos insidiosos que intentam a ridicularização da hipótese proposta.



Fina d’Armada, em Fátima entrevistando João Marto, amigo de infância de Lúcia.

São muitas as contradições, os desvios e as omissões nos relatos dos pequenos protagonistas no transcurso do processo de reconstrução doutrinal em torno das “aparições”, que as “Memórias” tardias da Irmã Lúcia coram de forma notória. A "bela mulherzinha" se torna a "Virgem Maria", uma "bola de luz" que as poucos se transforma em "Coração" e mais tarde no "Coração Imaculado de Maria". A narrativa auroral e espontânea foi sendo interpretada, retocada e ajustada às conveniências paroquiais e políticas, como as do pároco de Fátima, Manuel Marques, nos primeiros interrogatórios.

A partir das descrições iniciais das crianças e das entrevistas originais feitas por Fina D'Armada, ainda que fortemente influenciadas pelo tônus clerical da época, foi possível estabelecer um “retrato” do episódio, conforme Fernandes: Uma figura feminina, muito bela, de olhos negros, envolvida por uma luz que cegava. Tinha cerca de 1 metro e 10 de altura e aparentava uma idade entre os 12 e os 15 anos. Vestia uma saia travada, branca e dourada, aos cordõezinhos de cima a baixo e atravessados. Um manto tipo capa que descia até à orla do vestido que não ultrapassava os joelhos. Trazia algo na cabeça que lhe cobria as orelhas e os cabelos. Pendia-lhe do pescoço um cordão com uma bola luminosa à altura da cintura. Não tinha movimentos faciais nem mexia os lábios quando “falava” nem os membros inferiores quando se afastava de costas voltadas em direção ao alto…

Seguindo a cronologia e genealogia do fenômeno, tem-se que: 

1 - Em datas não determinadas, de 1915 e 1916, Lúcia afirma ter tido visões de um “anjo”, figura a que chamou “estátua de neve” transparente ou ainda uma “pessoa embrulhada num lençol”;
2 - Em 13 de maio, os três pastorinhos assumem-se intermediários de uma “senhora vestida de branco”, que desce sobre uma pequena azinheira. Questionam-na sobre alguns doentes e o destino dos soldados portugueses enviados para as trincheiras de França;
3 - Em 13 de Julho ocorre a transmissão de um “segredo” pela mesma entidade aos pequenos videntes e promessa de um milagre para Outubro seguinte, com pedidos de orações, penitência e conversões. O tema da Grande Guerra sobressai nas mensagens alegadamente recebidas por Lúcia.
4 - Em 13 de Outubro a visitante sugere a edificação de um templo dedicado a Nossa Senhora do Rosário, ou identificando-se como tal (dúvidas de Lúcia) – garantindo que a Grande Guerra acabaria naquele mesmo dia. O que não sucedeu. O sangrento conflito só terminaria em Novembro de 1918, com cerca de 10 mil mortos portugueses.

(Encerra na próxima semana)
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¹ Ed. Bertrand


sexta-feira, 9 de junho de 2017


A gênese das marianofanias - 1


"Fátima" continua rendendo frutos, no blog e no mundo. Compreensível, por se tratar do seu centenário e por envolver aspectos muito mais que meramente religiosos. Minha intenção inicial era replicar um artigo assinado por Joaquim Fernandes* - "As 'aparições' de Fátima-1917 entre o real e o imaginário", na íntegra. Entretanto, por ser um texto longo, ainda que imperdível, sua divisão em capítulos para encaixá-lo no formato do blog resultaria em 10 capítulos, incorrendo no risco de sua leitura perder continuidade em algum momento. Assim, resolvi condensá-lo, atendo-me aos pontos realmente cruciais para se entender os "bastidores" da história, desse modo reduzindo consideravelmente a série de postagens. Os interessados no artigo original podem acessá-lo no link: https://athena.pt/2017/05/11/116/

Importante ressaltar que este episódio de caráter essencialmente religioso tornou-se um marco na vida de Portugal e do mundo, objeto de estudos para teólogos de todas as matizes e cientistas sociais. Por outro lado, espero que você perceba o vínculo  - não premeditado - com os posts recentes, quando se falou de vazio que não se preenche, palimpsesto, pós-verdade, tempo e linguagem, onde tudo está imbricado nos conceitos do real, do simbólico e do imaginário. Óbvio que este vínculo não é coincidência, nem casual, mas causal e, insisto em dizê-lo, soma da mescla de saberes, do capital crítico, da ausência de derivação de tendências e propósitos em busca da verdade. Vamos ao que interessa.

A “Senhora vestida de branco” tem uma milenar cronologia e, antes de Fátima e de 1917, estão registados alguns milhares de alegadas “aparições” marianas. A tradição ocidental reivindica uma primeira manifestação da Virgem Maria de Nazaré, ainda em vida desta, no dia 12 de Outubro do ano 40 da era cristã, em Saragoça, norte de Espanha, ao apóstolo Tiago, irmão de João Evangelista. Neste caso tratar-se-ia de um fenómeno de bilocação (estar em dois lugares em simultâneo), em que “a Virgem aparece acompanhada de anjos, sentada num trono de luz, circundada por nuvens diáfanas no momento em que Tiago orava”. Daqui nasceria o culto a Nossa Senhora do Pilar, na sequência do habitual pedido de edificação de um templo com aquela inovação.

Impossível não deixar de mencionar a famosa visão de Ezequiel: "Olhei, eis que um vento tempestuoso vindo do norte, e uma grande nuvem com fogo a revolver-se, e resplendor ao redor dela, e no meio disto, uma coisa como metal brilhante que saía do meio do fogo. Do meio desta nuvem saía a semelhança de quatro seres viventes, cuja aparência era esta: tinham a semelhança do homem. Tinham cada um quatro rostos, como também quatro asas (...) Os seres viventes ziguezagueavam como relâmpagos (...) O aspecto das rodas e a sua estrutura eram brilhantes como berilo."  Os adeptos da corrente danikeniana se apressaram em corresponder este e outros episódios visionários à presença de veículos extraterrestres. Por que seria diferente com Fátima? Segundo Fernandes, A crença nas “mariofanias” (aparições de Maria), como sustenta a historiadora francesa Sylvie Barnay, remontaria ao ano 380 da era cristã e proviria sobretudo do Oriente grego com fundamentos ponderosos: é que, na paisagem cultural da Ásia Menor, perdurava de há muito a tradição das deusas-mães, ecos dos cultos da fertilidade e que serviu de fermento à potencial piedade mariana, segundo o teólogo Hans Kung.

O “pai da igreja” Gregório de Nissa (m. 397) é tido como o fundador da crença, introduzindo no ocaso da Antiguidade um modelo de narrativa que se iria desmultiplicar nas torrenciais hagiografias e vidas santificadas nos séculos vindouros, quando contaminou toda a Idade Média europeia ocidental. Das geografias orientais, entretanto tomadas pela cristandade imperial ortodoxa, a crença mariana emerge mais tarde no Ocidente, já no século IX, atingindo um primeiro fulgor no século XII, com o decisivo contributo do monge cisterciense Bernardo de Claraval. A partir daí irrompem, como lembra Jean Delumeau, controversas teológicas marcadas pelo dogma da Imaculada Conceição, cujo lugar na hierarquia celestial do edifício cristão havia sido irreversivelmente marcado pelas decisões do Concílio de Éfeso, no ano 431: Maria, a que concebeu Deus (theotokos) superando “a que concebera Cristo” (christotokos) gerou um enunciado cristológico prenhe de consequências que perduram até hoje.


A figura de Maria de Nazaré foi catapultada pelo Concílio de Éfeso, em 431 d.C. para um patamar de excelência – a Theotokos (mãe de Deus) – abrindo assim uma via para uma hiperdulia (veneração e honra exacerbada pelos crentes) que as outras igrejas cristãs não aceitam.


As chamadas "aparições marianas", como revelações e cultos privados, não fazem parte de nenhum dogma da Igreja Católica. A fé católica romana assenta no dogma da Revelação cristã inscrita nos Evangelhos, como relembrou o cardeal Josef Ratzinger, papa emérito Bento XVI. Face à Palavra, objeto de fé divina, as chamadas “aparições” relevam somente da fé humana e são meras manifestações discutíveis no quadro dogmático reclamado pelos textos canónicos. A Igreja Católica não cauciona “videntes”, mas crentes; reconhece os lugares de peregrinação, mas muito raramente se manifesta sobre a autenticidade das chamadas “aparições”, donde nenhum católico é obrigado a aceitar o fenómeno aparicional mariano como certidão irrefutável de uma presença física ou outra da Virgem Maria.
Num domingo, 13 de Maio de 1917, no interior Portugal conhecido como Cova da Iria, três crianças tiveram sua visão quando pastoreavam ovelhas: Lúcia dos Santos, 10 anos, e seus primos Francisco Marto (9) e Jacinta Marto, de 7 anos. De repente, viram uma explosão de luz, e depois outra, como se fossem relâmpagos, quando notaram uma "mulherzinha muito bonita" rodeada de intenso resplendor. Inquirida pela mãe Maria Rosa, Lúcia descreveu sua visão:
Maria Rosa – Ó Lúcia, ouvi dizer que tinhas visto Nossa Senhora na Cova da Iria?
Lúcia – Quem foi que lho disse?
Maria Rosa – Foi a mãe da Jacinta, a quem a filha contara. É verdade?
Lúcia – Eu nunca disse que era Nossa Senhora, mas uma mulherzinha bonita. E até pedi à Jacinta e ao Francisco que nada dissessem. Não tiveram mão na língua!…
Maria Rosa – Uma mulherzinha?
Lúcia – Sim, mãe.
Maria Rosa – Então diz lá o que foi que te disse essa mulherzinha…
Lúcia – Disse-me que queria que nós fôssemos seis meses a fio, nos dias 13 chegados, e no fim diria quem era e o que queria de nós”.

(continua na próxima semana)

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* Doutor em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, co-fundador do CTEC- Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, na Universidade Fernando Pessoa, Porto e co-autor, com Fina d’Armada, de obras sobre a fenomenologia das “aparições” marianas, como “Fátima nos bastidores do Segredo” (Lisboa, 2002, Âncora Editora). 

sexta-feira, 2 de junho de 2017


Alien covenant


Semanas atrás fiz um comentário sobre o filme "A Chegada", discorrendo sobre simbolismos, tempo e linguagem. Hoje faço nova incursão no cinema com Alien Covenant, novo filme de Ridley Scott, agora sob outro enfoque. Tomei por base o ótimo artigo da jornalista e escritora Eliane Brum, "Alien, o passageiro perdido de uma nave sem futuro", publicado no jornal El País (21/05/2017). Sutil ironia: sim, o alien somos nós, no extremo da alteridade. Não gostei da estética do filme, mas isso não vem ao caso. O artigo abordando a saga dá volume e densidade ao que você já se acostumou a ler aqui e que é o objeto central do blog.

Como sempre, a ficção científica e suas luvas de pelica a nos revelar verdades que não queremos ver. Ou não vemos de fato. E tome androides, replicantes, sintéticos, cyborgs e artificiais prenunciando um futuro distópico possível pela frente - o do pós humano. Outra revelação perturbadora: o silêncio na solidão, a falta de horizonte, o vácuo exterior, o vazio interior. Vazio que não se preenche.


A aporia está na ponta da linha, na visão de Brum: O erro daquele que foi projetado para não cometer erros aponta que o androide se humaniza. E a tragédia, para os humanos da espaçonave Covenant, é justamente a humanidade do sintético. Ao pensar por si mesmo, ao ser capaz de fazer suas próprias escolhas, David conclui que a humanidade é um erro. A analogia é evidente: o humano, incompleto por não ser "divino", busca divinizar-se, e a tragédia se consuma ao encontrar no criador a imperfeição de sua criatura. Se Frankenstein é nossa angústia - somos feitos com "pedaços" de outros, e Davi (o de Michelangelo) o sonho da perfeição, David (o androide) é o quase humano, incompleto, inseguro, vingativo, ressentido. 

Para a escritora, ao criar Alien, Ridley Scott é, Como boa parte da população atual, um humano do século 20 que chega ao 21 mergulhado num presente que é, ele em si, uma distopia. Mas uma distopia em que as referências já não dão conta. Busca-se desesperadamente nossos mitos fundadores, recicla-se os personagens arquetípicos e reedita-se as tragédias clássicas, mas já são oráculos sem respostas porque nós, que os interrogamos, estamos condenados ao presente. Já não há nem mesmo como contar com o espaço como fuga. A Terra se assemelha cada vez mais a uma nave superpovoada e avariada demais, da qual não há como sair. Ou, como ela define em outro artigo¹, A última utopia do presente é uma ilha vulcânica. Nosso presente é tão impactado pelo futuro que somos capazes de imaginar quanto pelo passado que tentamos compreender. Brum inverte o sentido doo tempo sem ferir a lógica!

Nada muito diferente do que você tem lido aqui e, muito provavelmente, em outros lugares. Nada muito diferente do que você, muito provavelmente, pauta em suas mais metafísicas reflexões. E, assim, giramos todos em falso. E o filme de Ridley Scott gira também em falso. Paralisados pela impossibilidade de imaginar um futuro, qualquer futuro, já não conseguimos dialogar com nossos mitos como antes. É este o vazio que, contrariando a lógica, não se preenche. Não a falta que produz movimento de busca, mas o vazio paralisante. O silêncio paralisante. O medo paralisante. 

A nave já não é a caravela que nos leva ao novo mundo – ou ao paraíso perdido. A nave é o presente onde estamos confinados. Nos brancos corredores claustrofóbicos viajamos com a destruição que carregamos. Alien, este estrangeiro íntimo feito da matéria dos sonhos, é o conto de fadas para adultos que dialoga com nossos medos mais profundos e inconfessáveis. Feito da matéria dos sonhos, ele só pode ser vislumbrado. Não é todo filho um alienígena enquanto se engendra nos interiores da mãe?

Nosso presente atualiza o passado, que reescreve o futuro, que ressignifica o presente. O futuro é um presente expandido. O tempo reconstitui o homem que reconfigura o mundo. As peças vão se encaixando. Precisamos muito de uma paleontologia dos fósseis do amanhã. Ou de uma psicanálise dos traumas futuros. A ficção é o cadinho, o alien o elemento. A alquimia é sua.



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¹ "O amanhã não pode ser apenas inverno". El País, 09/11/2016.
Alice Fátima Martins, Saudades do Futuro: o cinema de ficção científica como expressão do imaginário social e do devir.  Ed. UnB, 2013.
Ieda Tucherman, A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo
www.comciencia.br/reportagens/2004/10/09.html. 
_______. O pós-humano e sua narrativa. Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia, 1:02, p. 105-124, 2003.
Mark Rowlands, Scifi=Scifilo: A filosofia explicada pelos filmes de ficção científica. Relume Dumará, 2005.
Izaura Rocha.The Happening. Terror pós-moderno e alegoria da alteridade como fonte de tensão e conflito.”  Boletim On-line de Ciências da Comunicação. U.FJF, 2009.

Jean-Bruno Renard. Religion, Science-fiction et extraterrestres. Archives de Sciences Sociales des Religions. 50:1; pp. 143-164. 1980.