Obras

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sexta-feira, 31 de março de 2017

Insanidade, estupidez ou comédia?

O assunto de hoje me fez regredir ao tempo em que disparava críticas ásperas sem poupar ninguém, nem os amigos, quando erram necessárias. Parece que foi ontem, e não me sinto enferrujado. É que em certos momentos a elegância, a diplomacia, a boa formação e a ética devem ficar de lado para dar vazão à indignação ante um fato desprezível, indecoroso. Já não sou lá muito polido quando algumas situações exigem acidez na palavra, e menos ainda quando se tornam obscenas.

O texto original estava bem mais pesado, sem meias palavras, contudo, precavido, submeti antes a um olhar jurídico e fui aconselhado a abrandar os termos, a "pegar leve", ou seja, a escrever com a razão, não com o fígado. Contrariado, ponderei e obedeci. Só um pouco. Por isso, me desculpo pelo linguajar e vocabulário rude. O que me causa repugnância, que abomino, condeno e combato com fúria titânica é a exposição acintosa da ignorância coletiva para um assunto em que todos são apedeutas. Não sei qual termo no título está a caráter para o fato, diria que todos e principalmente os que foram suprimidos. Vejo fortes indícios de um comportamento psicótico.

A tragédia anunciada: "Câmara Municipal abre seu plenário para seminário sobre extraterrestre".¹ Até aí nada de mais, a Câmara nunca foi mesmo um primor de seriedade, então, que abra suas portas a quem bem entender. Alguém poderá dizer que isso é democracia, eu chamo de outra coisa. A indecência e a impostura intelectual estão no conteúdo desse espetáculo grotesco com o título Seminário Científico sobre Extraterrestres do Nosso Passado - um vomitório desatado de irresponsabilidade, desrespeito, boçalidade, falácias, obtusidade, aleivosias e desvarios, por conta de um analfabetismo científico e cultural tão macabro quanto nocivo, de um anacronismo colossal, com as bênçãos do curral político. 

O evento se deu sob a batuta de uma tal Academia Latino-Americana de Ufologia Científica, parida sabe-se lá de qual vacuidade mental. Lamento que um dos palestrantes seja um velho amigo, vítima talvez de alguma lavagem cerebral bem-sucedida. A programação é de revirar o estômago de tão fétida, posto que usa como base argumentativa os casos Adamsky, Antonio Rossi, Viktor Novi e Karran, fraudes notórias e sabidas, além de outros embustes clássicos.
Confira: https://www.facebook.com/events/384256685292706

"É preciso desatarraxar o parafuso da história, porque eles [alienígenas] efetivamente estão chegando", anuncia sem a menor cerimônia o mestre de cerimônias. Se desatarraxar o parafuso da cabeça desse cidadão, ela cai. A esse zurro jumentício segue-se o do orador: "A pergunta é se chegarão ou se voltarão". Melhor não apostar. O mau cheiro aumenta quando, com o aval de um coro de "cientistas" e exibindo na tela cenas de Independence Day, afirma, com desfaçatez quase celestial, que "ufologia é uma ciência, sim, e uma ciência nobre, nova, que não se ensina nas faculdades". Essa é de lascar.

Cientistas? Um pesquisador em "transcomunicação espiritual" pós-graduado em "psicologia energética corporal e consciência", um médico vegetariano, um ex-meteorologista sênior do Weather Channel nos EUA, além de outros títulos do mesmo naipe. O mal se alastra quando o expositor reclama que "a ufologia é vista de uma maneira preconceituosa, com muita fantasia, desconhecimento". O que ele esperava com este circo de horrores? Depois, alega que Hollywood é a culpada por criar o estereótipo do monstrinho verde em obras como, por exemplo, "Marte Ataca!", porque ele acha Contatos Imediatos de Terceiro Grau e O Dia em que a Terra Parou mais verossímeis!

Não é só a história que precisa desatarraxar os parafusos. 


Esse mesmo senhor esteve no Peru visitando múmias que julga serem de ETs. Ou ele crê serem seus ancestrais ou quer ressuscitar Däniken e seus insuportáveis deuses astronautas. E sua verborreia doentia não reconhece nem respeita a lucidez alheia, citando as sagradas escrituras como a Bíblia e o Alcorão, excreta, com empáfia pseudo douta, que Maomé, Jesus e Moisés seriam "contatados autênticos". Isso tem nome: demência mórbida. Conheço bem o tipinho, gente medíocre que existe às pencas e prolifera como batráquios no pântano e ratos no esgoto, deixando um rastro pestilento por onde passa. A Câmara paulistana e a plateia tiveram o que merecem. 

Entende agora porque pulei fora dessa verdadeira Stultifera Navis? Porque o padrão é esse! Entende agora porque a ufotopia é um hospício ao ar livre? Entende agora porque as autoridades guardam asséptica distância desses psicopatas perigosos? Entende agora porque eu me dedico em te informar e prevenir dos loucos de pedra, aventureiros, farsantes e desmiolados à solta na multidão? Outro dia escrevi aqui que quem se abrigar sob o meu guarda-chuva não irá se molhar. Entendeu agora?



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¹http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/03/1869997-camara-municipal-abre-seu-plenario-para-seminario-sobre-extraterrestre.shtml

sexta-feira, 24 de março de 2017

Longevidade não é sinal de inteligência




O fato virou manchete no mundo: "Cientistas detectam sinal de rádio que pode vir de uma civilização alienígena". Já abordei este assunto mais de uma vez, mas quando ele volta à baila, as pessoas me fazem muitas perguntas (geralmente as mesmas). A fonte da notícia foi o SETI - Search for Extraterrestrial Intelligence que, afinal, para receber as polpudas verbas de pesquisa, precisa mostrar serviço e não só, apresentar resultados. O sinal captado vem de uma estrela localizada na chamada "zona habitável", a 95 anos-luz e idade estimada em 6,5 bilhões de anos. Talvez já nem exista mais, nem o planeta que a orbita com a hipotética civilização que poderia ser a responsável pelo sinal. Mas não é esse o ponto que quero comentar.

Uma estrela emitir um sinal tão potente e por tanto tempo é normal, porém, crer que uma civilização, por mais antiga e avançada, também tenha desenvolvido tecnologia semelhante à nossa não é lá sinal de muita inteligência. Só falta os deslumbrados cientistas do SETI ou de outros centros acharem que os aliens estão enviando uma mensagem em código Morse! Se for o caso, sugiro internação imediata. Cada vez que uma notícia dessas é divulgada e provoca tal reação, mais reforça a necessidade do ser humano de companhia cósmica e insistência obsessiva e alucinada nessa busca. Apesar de o retrospecto ser de total frustração, ele não desistirá jamais.

Alguns poderão perguntar por que não pesquisar a vida extraterrestre inteligente, mas eu não tenho a menor vontade de responder, de tão óbvio. Ou melhor, respondo com outra pergunta: Por que não enfiar a parafernália de instrumentos num formigueiro para tentar decifrar a linguagem das sociedades formicídeas? Não seria formidável descobrir o que as incansáveis formiguinhas 'conversam' depois do jantar, já que a espécie 
é considerada inteligente? É mais perto, mas fácil, seguramente mais barato, com ampla variedade de insetos himenópteros para estudar e a vantagem de acompanhamento permanente. A chance de um resultado positivo é zero. O princípio é o mesmo.

Não importam classe social, credo, cultura, profissão ou curriculum, todos querem dividir o espaço com mais alguém, a qualquer preço. Quanto mais o universo se agiganta aos nossos olhos, mais improvável encontrar parceiros por aí. O princípio é o mesmo: Quanto maior o palheiro, mais difícil achar a agulha. Quanto mais fundo o rio, mais difícil pescar o peixe. A solidão é insuportável, daí, qualquer 'barulhinho' que venha de fora deixa a turma excitada. Nem vou comentar a indisfarçável vaidade profissional e intelectual daquele que intenta ser o primeiro a captar um sinal inteligente vindo do espaço exterior. Nesse momento o ego chega literalmente às estrelas.

Em 1961 surgiu a famosa Fórmula de Drake (ou Equação de Green Bank) que buscava encontrar um número razoável de planetas que pudessem abrigar uma civilização tecnologicamente comunicativa. Criada pelo astrônomo Frank Drake, obviamente ela não vingou, apesar dos esforços de uma equipe de respeito. Como não se pode responder às premissas fundamentais "Que tipo de vida estamos procurando?"e "O que se entende por inteligente?" a equação se dissolve.

Mas não é o que pensam os apressadinhos desinformados e tolos diplomados, que se agitam com a possibilidade quase tão real, quase tão próxima, quase tão crível de que alguém bate à porta. Cuidado meninos, segurem a sanha. Os mais comedidos cientistas do SETI,  mais fincados em solo firme e mais sensatos afirmam, em tom quase tão sério que, se houver inteligências por aí prontas a nos visitar, com certeza virão para assumir o controle do mundo. Não há nada mais estúpido que o Welcome space brothers. Talvez seja prudente não abrir a porta.
 

sexta-feira, 17 de março de 2017

Quando a imaginação atravessa a realidade


Continuando o tema da sci-fi, hoje resolvi economizar nas palavras e deixar que um pequeno pacote de imagens fale por si, ilustrações criadas para as novelas de ficção científica décadas antes da chamada era moderna dos discos voadores - 1947. Nunca houve uma "era antiga". É evidente que o formato "disco" das então chamadas naves interplanetárias dormitava no inconsciente, no imaginário, esperando o momento de se deslocar e atravessar a realidade cotidiana. Era uma questão de tempo.

Observe, consulte a imageria ufológica e verá que as semelhanças não são meras coincidências; há muito mais em jogo, há toda uma estrutura dinâmica, semântica, estética, com linguagem e gramática próprias, material que enriquece as ciências sociais e humanas, a história, a cultura, o imaginário, a mitologia e a religiãoA ufotopia é o sorvedouro dos elementos da ficção num processo mimético de ideias e conceitos. É uma história que se escreve por mãos alheias e cenários emprestados. 


1909 - Le vainqueurs de l’espace. Arnould Galopin. Paris.
Cortesia Yven Bosson Collection; agendemartienne.fr



1926 - Amazing Stories. Capa: Frank R. Paul. amazingstoriesmag.com



1936 - Wonder Stories. Capa: Frank R. Paul. amazingsotiresmag.com




1938 - AstoundingStories. www.pulpartists.com/Wesso.html



1940 - Thrilling Wonder Stories. Capa: Frank R. Paul. Gallery Frank R. Paul’s Artwork. frankwu.com



1946 - Amazing Stories. amazingstoriesmag.com



Vale destacar o que diz o sociólogo Jean-Bruno Renard, que vê o fenômeno Óvni como o ponto culminante da simbiose entre os temas de ficção científica e as crenças pararreligiosas. Já para o professor de Teologia da Universidade Göttingem, Andreas Grünschloß, "Sem dúvida, um importante atrativo das crenças em UFOs é a sua capacidade de sintetizar elementos de tradições esotéricas, espirituais, teosóficas e cristãs, para reconciliá-las com a ciência, a tecnologia espacial e a cosmologia moderna." Eu tenho dito que a ficção é a porta de entrada da ufologia, e a religião, a de saída. Daí porque estou adotando a expressão ufotopia, muito mais apropriada.

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Biago D'Angelo. “Deuses Invisíveis: A ficção científica e os mitos cosmogónicos
(Lem, Lessing e Le Guin)”. E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia,       
nº 9, Edição Temática “Ano 2100”. Porto. 2008.
Umberto Eco.  Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. Nova Fronteira, 1989.
Abdres Grünscholß. “Quando entramos na nave espacial do meu pai - Esperanças
cargoísticas e cosmologias milenaristas nos novos movimentos religiosos de UFOs”. 
Trad. Paulo Gonçalves Silva Filho. Revista de Estudos da Religião. PUC/SP. nº 3, 2002.
Patrick Legros et al. Sociologia do ImaginárioSulinas. 2007.
Alice F. Martins. Saudades do Futuro: O cinema de ficção científica como   
expressão do imaginário social e do devir, Ed. UnB. 2013.
Bertrand Méheust. Science-Fiction et Soucoupes Volantes. Terre de Brume, 2008.
Carlos Reis. Naus da Ilusão. Multifoco, 2016.
Ieda Tucherman. “A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo”.
www.comciencia.br/reportagens/2004/10/09.html.

sexta-feira, 10 de março de 2017



Na semana passada você tomou conhecimento, pela primeira vez, da palavra ufotopia, expressão que criei para revelar a verdadeira face da ufologia. Desnecessário explicar. Outros termos virão a reboque, no âmbito da ficção científica, assunto inesgotável, de amplitude muito além do que se supõe e umbilicalmente ligado ao universo do disco voador. Por isso o post está dividido em duas partes, ficando a bibliografia reservada para o final. 

Umberto Eco identifica quatro caminhos possíveis para a obra ficcional: alotopia, ucronia, utopia e metatopia/metacronia. É nesta última que ele entende que a sci-fi encontra sua principal característica: "... o mundo possível representa uma fase futura do mundo real presente; e por mais que seja estruturalmente diverso do mundo real, o mundo possível é possível - e verossímil - exatamente porque as transformações a que foi submetido nada mais fazem do que completar as linhas de tendência do mundo real." Para Eco, a ficção científica assume a forma de uma antecipação, e a antecipação assume a forma de uma conjetura formulada a partir de linhas de tendência reais do mundo real. 

Em outras palavras, o que Eco está dizendo é que a FC segue o padrão utópico: "A projeção ou representação de uma sociedade ideal, muitas vezes caricatural, como deformação irônica de nossa realidade". E conclui: "
... o mundo paralelo é sempre justificado por rasgos, desfiamentos no tecido espaço-temporal, enquanto na utopia clássica ele é simplesmente um não-lugar dificilmente identificado (talvez passado e desapercebido) do nosso próprio mundo físico."  Ele entende que a ficção científica, de modo geral, oferece uma realidade que nem a própria realidade concreta é capaz de suplantar, onde o universo da narrativa é o único no qual podemos estar totalmente seguros de uma coisa e que oferece uma ideia forte de verdade.

São muitos os autores e especialistas que falam da importância da FC não só para a cultura de uma sociedade como para a própria sociedade. Morin, por exemplo, afirma que, por ser um espelho antropológico, o cinema (ou a literatura), como veículo de massa da ficção, reflete as realidades práticas e imaginárias, as necessidades e os dramas da individualidade humana. À realidade imaginária da obra de ficção corresponde a realidade imaginária do homem. Existe uma prevalência da fantasia realista e da ficção sobre o fantástico e o documental, e é a antropologia do imaginário que nos leva à essência das questões contemporâneas.

O crítico literário e estudioso de ficção científica Darko Suvin observa, neste gênero, uma proximidade cognitiva que permite, mais do que profetizar o futuro (não profetiza), compreender a realidade angustiante do presente de onde a exaltação das viagens como estruturas metafóricas da narração cognitiva. Ao mesmo tempo em que aproxima, ela cria uma espécie de "estranhamento cognitivo", um distanciamento invertido, ou seja, familiarizar o desconhecido.

A escritora Doris Lessing entende que a mente humana sente necessidade de se expandir em direção às estrelas, às galáxias e ao infinito, e a ficção seria como a "eclosão do nada", algo como o renascimento da necessidade do mito e da função das religiões na produção estética da obra ficcional. Ela afirma ainda que os mitos são atuais porque oferecem condições "lógicas" ou aceitáveis para viver ao reunir em si os questionamentos sobre a ciência e a sociedade.

Depois deste breviário, incompleto naturalmente, é possível deduzir que na ficção, no mito, no conto de fadas, nas fábulas e no fenômeno Óvni, tempo e espaço são indefinidos - acronia e atopia, ou, indo mais além, heterotopia e heterocronia, dimensões de cruzamento entre o real e o imaginário. Tão importante quanto estudar a ficção à luz da antropologia, é compreender o antropos no contexto da ficção. Na visão de Morin, é no núcleo desta posição que está o fato que caracteriza o homo sapiens e o homo demens - produtor de fantasias, fantasmagorias, ideologias, mitos e magias.


O que estou tentando mostrar, muito resumidamente, é que a narrativa da obra ficcional tem pesada influencia na linguagem ufológica, em todos os sentidos, a tal ponto de não se distinguir onde uma acaba e começa a outra. Definitivamente, ufologia não é para principiantes e amadores. Continua na próxima semana.

sexta-feira, 3 de março de 2017


Conexões desconexas
carlosalbertoreis51@gmail.com


Sei que parece óbvio o que vou dizer e, por favor, não pense que esteja subestimando sua inteligência, até porque sua presença é sinal de que há vida inteligente por aqui. Você sabe o que é conexão desconexa? Grosso modo, é quando se liga um fato a outro sem que haja vínculos entre eles, ou pode ser também pensar uma coisa e falar outra, ou confundir "alhos com bugalhos".

O mais comum é quando assistimos o primeiro capítulo de uma novela ou seriado, o segundo, o terceiro... o quinto... aí perdemos vários seguidos e quando retomamos lá pelo vigésimo episódio, não entendemos mais nada da trama e tentamos ligar os fatos. Começamos a ler um bom livro, mas, por circunstâncias várias, deixamos de lado por um tempo e quando voltamos ao ponto marcado, a memória não reteve os fatos anteriores e temos que retroceder várias páginas ou até começar do zero para refazer as ligações de causa e efeito. Por que estou dizendo isso?

Porque é o que acontece por aqui. Não sei se você é leitor assíduo, se está fazendo as ligações corretas entre os inúmeros temas abordados - porque estão todos ligados como fios imperceptíveis de uma teia. Também não sei se estou sendo claro em muitas dessas passagens, não sei se este blog está atingindo com clareza seus objetivos. É uma autocrítica? Sim, também, mas há uma clara percepção de que tem gente misturando as estações. Será o senso comum que prevalece e interfere na visão dos fatos? Se for, você terá que mudar seus conceitos, porque tudo o que eu não quero é cair na vala do senso comum. Tenho evitado fazer argumentações subjetivas justamente para não margem a interpretações ambíguas. O fato é que a confusão persiste.

Com frequência me perguntam se eu "acredito em vida extraterrestre". Claramente há uma sub-pergunta aí, uma pergunta com segundas intenções, uma pergunta antevendo resposta prévia, querendo saber se, acreditando em vida extraterrestre, acredito também em seres extraterrestres, em "discos voadores". Quem faz a pergunta não está pensando em microrganismos, vida unicelular, essas coisas, mas em vida inteligente. Esse é um exemplo clássico de conexão desconexa. Eu não trabalho com crença, trabalho com lógica e ciência. Vou mais fundo.

A história escreve que certos processos religiosos serviram como duro obstáculo à evolução humana em suas relações com a cultura e a ciência. A religião sempre esteve imbricada à narrativa mítica e o inverso é verdadeiro. Estou falando da origem do pensamento religioso no qual estamos imersos até a medula, por respeito e medo do desconhecido (ou do transcendente). Estou falando do homo religiosus, que traz em si o sentimento da divindade. Essa conversa vai longe. Vou mais fundo ainda.

Vejamos o que diz Laplantine: "A construção da divindade é realizada no imaginário coletivo. Este imaginário caracteriza-se por uma criação limitada e definida pelo sistema religioso e social. À medida que são colocados para a sociedade novos fenômenos e problemas, criam-se novos deuses ou reinterpretam-se as divindades tradicionais. As criações de novos deuses são feitas pelas relações entre as tradições religiosas e socioculturais e a reinterpretação dessas tradições". Já mostrei aqui que este é o pensamento corrente e consensual entre os estudiosos nas ciências sociais.

Para a historiadora das religiões Karen Armstrong, as religiões são construções culturais, históricas, sendo o antropomorfismo o fundamento de qualquer religião, e os deuses refletem as aspirações e ambições humanas. Segundo ela, o pensamento religioso surge a partir deste desejo de ligar-se à divindade, ou religar - religare, religio - o profano ao sagrado, o mundo inferior ao plano superior, o elevado, o "além-terrestre". “Não se deve esquecer que, para o homem religioso, a sacralidade é uma manifestação completa do Ser”, afirma Eliade. A existência da vida extraterrestre inteligente, da sua realidade, é a pedra angular da ufologia, e, neste sentido, ela deixa de ser ufologia para se tornar uma... ufotopia.

Para encerar, esperando que tenha ficado claro o que é uma conexão desconexa: Vida extraterrestre não é a mesma coisa que vida extraterrestre inteligente. O tema foi explorado no post "Vida extraterrestre é possível, inteligente não" (/5/2016). Não se trata apenas de discutir filosofia, ciência ou lógica porque é uma questão religiosa e cultural bem mais complexa, enraizada no espírito humano. "Acreditar" em discos voadores e seres alienígenas subentende crença, e crença não se discute. O que se discute é o conhecimento que podemos ter sobre ela, suas origens, suas causas. A crença acaba onde começa o saber.

Em tempo: Dias atrás, astrônomos anunciaram a descoberta de sete planetas de características semelhantes às da Terra orbitando uma estrela anã-vermelha do tamanho de Júpiter, num sistema planetário distante cerca de 40 anos-luz batizado de Trapist-1. O que me surpreende não é a descoberta em si, mas os cientistas alegarem que pode haver mais! É claro que pode, com certeza haverá mais, muito mais, mas atenção: como sempre acontece nessas horas, aumenta o frenesi pela possibilidade de haver vida por lá. Sim, pode haver, mas vamos manter os pés no chão.

As primeiras informações indicam que as condições parecem favoráveis para que algum tipo de vida possa existir, ou ter existido, inclusive a possibilidade de água em estado líquido. Mas é só o que se tem, o resto é pura especulação. A vida pode ser abundante universo afora, mas não será a vida inteligente afirmada infantilmente pela ufologia nem a acalentada pelos sonhadores. Isso, repito, não é ciência, é ufotopia - projeção ou representação de um ideal não muito bem definido, não exatamente um outro mundo, mas de um possível imaginado. Ufotopia. Semana que vem tem mais.

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ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, cristianismo e islamismo. Companhia das Letras, 2009.
DELUMEAU, Jean. De Religiões e de Homens. Loyola, 2000.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano.  Martins Fontes, 1992.
LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. Brasiliense, 1997.
LÉCY-BRUHL, Lucien. A Mentalidade Primitiva. Paulus, 2008.