Obras

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sábado, 28 de janeiro de 2017


Quando o mistério não tem mistério
carlosalbertoreis51@gmail.com
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Quando o não tem mistério
Observação importante: Uma amiga comentou que o blog contém textos longos demais para serem lidos no celular. Concordo, porém, por orientação médica, não se deve forçar a visão lendo textos longos no celular; as matérias pedem reflexão porque são temas complexos que não permitem reducionismo. Por isso, sugiro dispensar alguns minutos lendo-as no computador com atenção dedicada para a adequada absorção do conteúdo.
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Retomando o debate iniciado há algumas semanas, o lance da vez é a eterna dicotomia entre ciência e crença. Vejamos como caminha essa dialógica. O que os separa é a dúvida, a ignorância, a inocência, o desconhecido, o imaginário, que alimentam e estimulam o mistério. Enquanto a ciência sai à cata de explicações e não descansa até encontrá-las - e nem sempre encontra -, a crença, não tendo estas respostas, deixa tudo nas mãos do imponderável, do 'transcendente', e o mistério permanece 'misterioso'. Por que destaquei imaginário? Por óbvio. Para Manguel, "A nossa geografia imaginária é infinitamente mais vasta do que a do mundo material. Esta observação, por muito banal que seja, permite‑nos detectar a generosidade imensa de uma função humana vital: a de dar vida ao que não pode reclamar presença no mundo do volume e do peso".

O antídoto para o germe da dúvida é o saber. O instrumental que viabilize a dissolução do problema deve conter racionalidade, questionamento responsável, espírito crítico, conhecimento transdisciplinar (olha ele aí de novo) compartilhado, observação, pesquisa e experimentação sistemáticas, temporalidade. Com isso, temos, de um lado, paradigmas esperando serem substituídos (ou não), de outro, paradogmas que não querem ser contestados. Para que o antídoto surta efeito, ele deve ser composto de princípios ativos associados: compromisso com a verdade, conhecimento, olhar atento e consciente, percepção das estruturas, ócio criativo, indagações pertinentes, contínuas e dessemelhantes, autoconhecimento, noção do erro, dialética e coragem. Coragem? Sim, coragem, para enfrentar o contraditório de suas crenças, a remoção do antigo e a instauração do novo.

O problema é que a atração pelo mistério faz com que o indivíduo obstrua seu senso crítico, ignore os avanços científicos e, assim, persista em crenças tolas sobre criaturas fantásticas, terras fictícias, eventos mágicos. Para Umberto Eco, tudo isto são cenários inventados que, agora ou no passado, criaram quimeras, utopias e ilusões porque muita gente acreditou que realmente existissem ou tivessem existido em alguma parte, ou ainda, lugares mitológicos em torno dos quais surgiram lendas que afirmaram, durante séculos, sua existência real. A Atlântida e o Graal são os melhores e mais fabulosos exemplos da inventividade humana. Inegavelmente, somos insaciáveis caçadores e adoradores de mistérios.

Mas há mistérios e "mistérios". Enquanto uns vão sendo paulatinamente desvendados, outros permanecem insondáveis, alguns foram ou serão inventados e novos surgirão. O mistério é belo, nos move e nos comove, nos encanta, impulsiona o intelecto. Se a vida não tivesse mistérios ela seria monótona, vazia, e não teríamos chegado até aqui. O desconhecido nos faz sentir vivos e pensantes, e nos leva a dimensões imaginárias jamais sonhadas.

Há um aspecto interessante para reflexão: meu interlocutor é formado em engenharia e atua no jornalismo, ou seja, tem a mente bastante analítica, racional, seletiva e pragmática. Para ele, as fontes devem ser confiáveis e os cálculos precisos para que os resultados sejam sólidos. Não obstante, ele revela seu fascínio pelo mistério, pelo impenetrável que a vida oferece, pelas coisas que a ciência ainda não responde, justificando seu interesse pelo fenômeno Óvni. Nenhum problema quanto a essa aparente incompatibilidade de visão de mundo, porque faz parte da complexidade humana. A razão do debate está exatamente em buscar outras vias do conhecimento, colocando em 'xeque' tudo o que sabe com aquilo que não sabe. Perfeito. Veio ao lugar certo.

Um amigo muito querido já falecido era matemático, engenheiro, físico e astrônomo. Na outra metade do dia, cabalista, astrólogo, budista e sei lá mais o quê. Um sujeito brilhante, que defendia suas ideias com argumentos difíceis - mas não impossíveis - de serem rebatidos. Já outro amigo de convívio diário é físico e um dos melhores profissionais em computação de ponta. Conhece os caminhos da lógica como poucos e, em paralelo, adepto da doutrina espírita. Último exemplo, amigo historiador, ateu, leitor voraz, culto e extremamente racional, que em seu cotidiano cumpre regularmente as liturgias de sua Igreja Melquita.

Alguma contradição ou incoerência? Nenhuma. Indícios de conflito existencial? Absolutamente não. Choque de conduta entre as crenças e os saberes? Nada consta. E por que não? Porque, além das características em comum, há neles uma virtude que talvez seja a mais importante, a de serem excelentes ouvintes, jamais encerrados em verdades intocáveis e imutáveis. Para encarar pessoas desse porte, precisa-se de capital do mesmo calibre. Essa turma não delira, não repete mantras sebosos, não faz ciência de botequim nem tropeça no discurso.

Para o filósofo Gustave Thibon, "O mistério não é uma muralha na qual a inteligência esbarra, mas um oceano onde ela mergulha". Eu diria também que o mistério não é uma montanha inexpugnável, pois sempre haverá um caminho que a contorne levando ao cume. A origem do mistério não está nele, mas em nossa ignorância sobre ele, até o momento em que possamos galgar níveis maiores de compreensão, quando o véu é descerrado. Até um véu de pedra revela belezas inesperadas. O 'mistério' que o leitor crê haver no fenômeno Óvni - um dos pontos nevrálgicos do debate (supondo que hajam outros) - não existe. O mistério somos nós. 


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Umberto Eco, História de Terras e Lugares Lendários. Record, 2013.
Alberto Manguel; Gianni Guadalupi. Dicionário de Lugares Imaginários. Tinta da China, Lisboa, 2013.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017




Inicialmente eu havia pensando no título "Desatando o nó" para tratar do mistério que meu amigo debatedor acredita envolver o fenômeno Óvni, mas não ia ficar legal porque, ao desatar um nó, as pontas se soltam, e não quero pontas soltas nesse assunto. Apesar de concordar comigo em quase tudo, o que está pegando é que ele entende haver algo por trás do fenômeno, alguma coisa que "controla e dita as regras do jogo" (as aspas são minhas). E o que seria esse "algo"? Seria "alguém"? Quem? Ao final você entenderá o título, mas certamente já intuiu a razão da mudança. De qualquer modo, um tem a ver com o outro...

Meu leitor tem como ponto de partida o pensamento de Jacques Vallée, citado aqui várias vezes. Em uma entrevista que fizemos com ele há alguns anos, afirmou: "É difícil não ficar impressionado com o fato de que o fenômeno tem tomado várias formas através da história, desde os navios voadores de Magonia no século IX na França às naves voadoras de 1897 e os foguetes-fantasmas em 1947 na Escandinávia. As características físicas básicas são as mesmas, porém o fenômeno foi captado de maneira diferente em cada cultura. Uma parte disto se deve simplesmente ao contexto social, mas parece também existir algum tipo de interação entre o fenômeno e as testemunhas. É por esta razão que eu propus a ideia que isso representava um sistema de controle".

Abro parênteses. O que interessa a Vallée não é o "filme" - o evento - mas quem está na "cabine de projeção" - a sua origem. Metáfora bonitinha. Sem sombra de dúvida temos aqui uma estrutura religiosa de pensamento - 'alguém' comanda o espetáculo. Já falei sobre isso aqui, mas vou repetir porque sou chato - isso é transferência de responsabilidade: o ser humano não quer assumir culpas, se exime de qualquer compromisso com a vida, está sempre fugindo da realidade porque é fraco e covarde. Tem que bater no fígado para o sujeito sentir na boca o gosto amargo dessa realidade. Assisto a esse filme há anos e não vejo mais nenhum mistério. Fecho parênteses.



A síntese de pensamento de Vallée é a de que o fenômeno opera através de uma “consciência não humana”, fazendo parte de um domínio ainda não explorado da natureza. Seria, portanto, uma expressão carregada de simbolismo de “uma outra inteligência”. O que isso significa exatamente? Vallée responde: "Meu amigo Aimé Michel pensava que nós já estávamos na verdade em uma rua sem saída. Eu discordo, porque ainda é muito cedo para se chegar a esta conclusão, uma vez que a Ciência ainda não se aplicou ao estudo do fenômeno. Teoricamente é possível que a forma de consciência envolvida (seja extraterrestre ou não) é tão avançada ou tão estranha a nós que a questão de interação seja realmente insolúvel. Afinal, nós sabemos que algumas questões matemáticas não têm respostas, de forma que esta não é uma situação nova na Ciência".

Com todo respeito, discordo totalmente quando diz que "a Ciência ainda não se aplicou ao estudo". Talvez ele esteja se referindo às ciências naturais por ter livre trânsito nessa área, mas não pode desconhecer que as ciências sociais têm muito a dizer. Ele também não pode ignorar o fato de que o objeto da pesquisa nunca foi levado ao laboratório para ser examinado. Vamos dissecar sua resposta. Não fica claro a que tipo de interação ele se refere, e deduz que essa seria a razão para propor um "sistema de controle" de uma consciência não humana. Consciência não humana? Existe tal coisa? Resposta evasiva sem o mínimo fundamento. Depois ele admite que teoricamente possa ser humana, mas tão avançada ou estranha que se torna um problema insolúvel. Tergiversou de novo: É óbvio que tudo que seja estranho possa não ter resposta. "Pode ser humana ou extraterrestre". Haveria uma terceira opção? Vallée parece colocar uma eventual explicação nas mãos do imponderável quando diz "consciência avançada não humana". Minha discordância agora é absoluta.

Vamos supor uma "inteligência superior humana". Improvável, mas só para reflexão: Quem poderia ser, um colegiado invisível de mentes brilhantes e finalidades sombrias? Um comitê dominante multidisciplinar global? Uma organização secreta das superpotências? O sistema mundial de comunicação de massa? Ou algum organismo oculto tecnologicamente avançado operando nos porões? Ou ainda uma poderosa e milenar ordem militar-religiosa? Convenhamos, isso é de uma extravagância ficcional hollywoodiana com pendores de surto alucinatório-psicótico. 

A segunda ideia, uma "consciência não humana". De quem estamos falando, Deus? Entidades interdimensionais ou sobrenaturais? Sendo mais direto, estamos falando de seres extraterrestres? Você acha mesmo que alienígenas estão por aí controlando a humanidade? Espero sinceramente que esta não seja a sua crença. Posso estar errado, mas fico com a impressão de que Vallée confia demais no depoimento humano. Sei do seu apuro ao avaliar a veracidade dos relatos, em passar um filtro nos dados e de ser muito criterioso no julgamento, mas em nenhum momento parece considerar a possibilidade de sermos nós mesmos o agente causador e fomentador do fenômeno. É descabido pensar nisso? Pois é muito mais sensato que suas respostas. Discutirei isso semana que vem.

Eu não vejo nenhum problema insolúvel. Para Vallée, o desafio está em explorar novas hipóteses. Falou o óbvio. Então, se todas as explicações anteriores falharam, proponho enfaticamente pensar por que a resposta não pode estar em... nós? Por que não podemos estar no olho do furacão - ou ser o próprio, em outras palavras, ser os mentores dessa encrenca? É muito mais racional e obedece aos princípios da lógica mais elementar. Seguramente, é a resposta procurada pelo leitor, por Vallée e por aqueles realmente comprometidos com a verdade. Poucos, diga-se de passagem. O meu diagnóstico é que não há nenhum sistema de controle inteligente - de qualquer natureza - por trás do fenômeno. Ele só existe porque nós o criamos.

Admitir que inventamos o 'disco voador' porque precisamos dele é sinal de maturidade e inteligência. Insisto: Crer na existência de alienígenas pilotando naves voadoras por aí é viver em permanente estado de devaneio, de irrealidade. Acreditar que algo ou alguém controla os bastidores da vida implica reconhecer que somos marionetes de uma contingência incontrolável, o intangível,  que tudo já está determinado, são cartas marcadas, ou seja, somos pobres esboços de humano, sem nenhum valor existencial, incapazes de amarrar o próprio sapato. Triste dependência. Tristes marionetes.

E não me venham esotéricos, místicos, "sensitivos" e ocultistas bradarem que se trata de uma dimensão desconhecida pelos homens. Falácia, conversa vadia de quem não tem o que dizer ou pior, não sabe o que diz, típico de cabeças desviadas da realidade. Quer crescer de verdade? Deixe essa história de invasores e salvadores das estrelas, os "irmãos cósmicos", para os tolinhos, os fremitosos sonhadores, os quiméricos e os embusteiros, e para os escritores de ficção científica, que sempre fazem bom uso dela. Semana que vem vamos falar mais sobre 'mistérios'.
carlosalbertoreis51@gmail.com

sábado, 14 de janeiro de 2017


Só pensar não basta, pensar diferente é fundamental


Seguindo com a conversa sobre transdisciplinaridade iniciada semana passada, adotar múltiplos pontos de vista significa mudar de paradigma. A ideia remonta aos anos 80 com o nome de holismo, que pregava a "percepção do todo", enquanto a 'trans' requer saberes integrados, entrelaçados. Por que mudar de paradigma? Perdoe pela obviedade quase grosseira da resposta, mas mudar o ponto de vista é ter outra perspectiva, uma visão panorâmica do mundo. Um enfoque transdisciplinar multiplica esse ponto. Mas não é assim tão simples. Nós temos o que se poderia chamar de "vício de origem" quando, a partir do momento em que a Filosofia foi banida da formação educacional e da vida pública, desaprendemos a fazer uma reflexão filosófica sobre o conhecimento em razão da sobrecarga de informação sem a imprescindível análise crítica. É justificável o quanto simplifiquei porque tudo é muito complexo.

Paradigma é 'modelo', padrão', um sistema de regras e preceitos que se assume como balizador para as ações, pensamentos e decisões. Mas eles não são perpétuos, não são definitivos nem imutáveis. Ao contrário, são substituídos, sepultados, deterioram, desaparecem. As fronteiras paradigmáticas estão cada vez mais tênues e voláteis, no ritmo em que o mundo se modifica - e ele tem sido célere e voraz nisso. O historiador israelense Yuval Harari vê o mundo como um foguete enlouquecido indo cada vez mais rápido a lugar nenhum, e o perigo está na sociedade entrar em colapso por não acompanhar o passo. No momento em que redijo estas linhas, qualquer coisa que leve o rótulo de "novo" já não o será quando você estiver aqui lendo.

Nós não estamos dando conta da velocidade das mudanças.

E por não dar conta, é mais seguro e confortável ficar sob as cobertas, andar na trilha, seguir a doxa - o conjunto de juízos que uma sociedade constrói em um momento histórico específico, acreditando tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas que, para a Filosofia, é apenas uma crença ingênua, uma cegueira abrumadora. A mentalidade de uma época é o vetor resultante da interação das práticas sociais e da ideologia estabelecida. Haverá mesmo mais segurança e conforto? Sei não, o mundo anda muito estranho...

Com exaustiva frequência tenho dito aqui que a dúvida é o motor do conhecimento. Mais recentemente, que a inovação é o motor do mundo. A liberdade de escolha, a intelecção é o movente do nosso desenvolvimento e o de uma sociedade, com toda a gama de erros e acertos. Pensei em trazer uma série de paradigmas que mudaram através do tempo, mas a lista vai ao infinito e você sabe do que estou falando. Terra plana e geocentrismo são exemplos de paradigmas que viraram pó. O mundo hoje não é nem de longe o mesmo de 50 anos atrás. E nem preciso recuar tanto. Você acha que pode querer ser o mesmo sem pagar um tributo por isso? A complexidade do mundo é inconciliável com o pensar simples.

Mas há outro tipo de paradigma, o 'setorizado'. Estou falando da especialização do conhecimento em todas as áreas: medicina, direito, engenharia, ciências, todas. Em cada uma delas surge o especialista naquele segmento, naquela área específica, o que traz vantagens, mas, em contrapartida, torna limitante a ação e estabelece conceitos "parciais". O cientista, por exemplo, tende ver o mundo sob um prisma marcadamente científico, e se as respostas que procura não estiverem no seu campo de saber, ele insistirá obstinadamente até encontrar, ou se frustrará e fará uma inflexão de 180 graus na direção oposta, ao transcendente, ao inefável.  As críticas sobre a especialização são duras e não são poucas.

O que estou querendo dizer? Vamos recapitular e radiografar a situação:

1) Não estamos dando conta da velocidade acelerada das mudanças;
2) Inovação é o que movimenta o mundo;
3) Paradigmas não são sagrados nem pétreos, precisam seguir as transformações de cada época;
4) Não negligenciar a malha de conhecimento crescente, aguçando o olhar crítico sobre todas as coisas e sobre a realidade dos fatos.

Descolar-se dos condicionamentos, dos pré-conceitos, das estruturas arcaicas defasadas é desafio permanente, um ato de inteligência e coragem. Sem dúvida o código para entender o mundo, ser parte dele e de sua transfiguração. Não se deve temer a mudança. Não se deve temer acatar um novo modo de pensar. A mudança é inexorável. A única coisa que não muda é a mudança das coisas, dizem os filósofos, e os estoicos completam: "Você pode se insurgir diante do inevitável, mas ele virá independente da sua vontade, ou pode seguir o curso da história". 

Mudar é mais fácil para os jovens porque mais ajustados à mutabilidade do mundo, mas isso tem um preço. Os mais velhos preferem se apegar às certezas de outrora, que lhe dão segurança psíquica e estabilidade emocional. Isso também tem um preço. Mudar é difícil, mas não mudar é fatal. Mudar é multiplicador, não mudar é redutor. Mudar enriquece, não mudar empobrece. Mudar é iluminador, não mudar é obscurantismo. Mudar é revolução cognitiva, mão mudar é estagnação punitiva. Mudar é ter história de vida, não mudar é página em branco. Mudar é estar na ponta, não mudar é ficar para trás. Mudar é liberdade, não mudar é servidão. Servidão voluntária. Mudar é questão de competência e sabedoria.

Para o tema que te traz aqui toda semana, a mensagem não poderia ser mais explícita: O que mudou na ufologia nos últimos 70 anos? Nada, rigorosamente nada. Quem entrou nessa ciranda continua girando em falso. Quem assiste a roda girar não aguenta mais o mesmo cenário, o mesmo script, o mesmo refrão. Não importa de que lado você está, que tal ao menos pensar na mudança? 
É um começo. Que tal sair do círculo vicioso e entrar no círculo virtuoso? Que tal educar seus ouvidos para outros sons, conjugar outros verbos, abrir espaço para outras searas? Garanto que você vai se surpreender. Experimente. Se não gostar, volte para o seu canto e fique por lá, o mundo não notará.

Deixo aqui algumas sugestões com tons de recomendação: Releia o título e não jogue fora minhas palavras. Invista na mudança, crie uma reserva mental só sua e não encaminhe as decisões de sua vida pela linguagem de gurus, mestres, profetas e avatares. Mudar é navegar por um oceano virginal luminoso de largos horizontes. Saia da massa indistinta, essa substância flutuante de espectros catatônicos. É um processo demorado, de longo prazo, contínuo e irreversível. Tenha a Filosofia como seu prisma multifacetado de aprendizado e saber. Cante Raul Seixas: Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Quem não tem colírio que use óculos escuros.


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Baudrillard, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas. Brasiliense, 1985.

sábado, 7 de janeiro de 2017


Como a transdisciplinaridade pode mudar a sua vida

carlosalbertoreis51@gmail.com


O conhecimento científico adquirido nas últimas três décadas é muito maior daquele obtido no último milênio, e  isso tem feito com que pensadores, filósofos, educadores como Castoriadis, Durand, Habermas, Morin e a comunidade científica de modo geral, se mobilizassem em torno de uma reflexão filosófica crítica sobre o processo de conhecimento gerado pela ciência moderna, dentro de um campo bastante restrito de racionalidade. A 'proposta' final consensual é a de que somente a transdisciplinaridade pode assumir o papel de engendrar um conhecimento mais amplo. "É uma justaposição de conhecimentos, é o estudo do ponto de vista de múltiplas disciplinas", diz Basarab Nicolescu, um dos signatários da "Carta da Transdisciplinaridade", de 1994. Ponto de vista diferente significa perspectiva diferente, e perspectiva diferente significa ver o objeto e o mundo com outros olhos e outro pensamento.

O que pode parecer um 'sacrilégio', uma disciplina invadindo o território de outra é, na verdade, a construção de pontes que permitam estudar fenômenos que se acham fora  e além da esfera de cada uma. É Nicolescu quem afirma: "A Transdisciplinaridade é complementar da aproximação disciplinar; ela faz emergir da confrontação das disciplinas novos dados que as articulam entre si e que nos dão uma nova visão da natureza e da realidade".

Outro importante nome que elaborou a Carta, Edgar Morin, defende que "A reforma do pensamento é uma necessidade-chave da sociedade. É a reforma do pensamento que permitirá o pleno emprego da inteligência, de forma que os indivíduos possam realmente entender e enfrentar os problemas contemporâneos". Ele também afirma que "O sistema educacional vigente não produz apenas conhecimento e elucidação, produz também ignorância e cegueira. A educação dominante troca o todo pela parte, separa os objetos do conhecimento de seu contexto, fragmentando o mundo, fracionando os problemas, impedindo as pessoas que tenham uma compreensão melhor da realidade".

A ciência evolui através da elaboração de hipóteses, da experimentação, ponderação e divulgação de resultados, isto é, compartilhando e produzindo um conhecimento que mereça aceitação pela comunidade científica. Para que tal se consolide, ela precisa ser racional, ou a pesquisa científica não terá qualquer valor e significado, abrindo oportunidades aos flibusteiros. Desse modo, a ciência moderna estabelece uma ruptura definitiva com a tradição do pensamento clássico e enciclopédico,  que separa teoria e prática, sujeito e objeto, local e global, indivíduo e sociedade, objetivo e subjetivo, fragmentando, pulverizando e isolando o conhecimento de sua finalidade primordial - seu caráter científico.

Essa introdução é necessária para dar a exata noção de que o conhecimento não está mais circunscrito a um determinado campo. No caso do nosso métier, a ufologia é impossível de ser 'explicada' exclusivamente a partir de uma disciplina ou campo do saber. Não são as Ciências Humanas ou as Ciências Naturais que se proporiam a dar respostas, mas ambas. O que a transdisciplinaridade faz é mais do que unir, em certo sentido ela as excede, amplifica o espectro da análise, ultrapassa os muros da mera formalidade conceitual. Está na Carta: "Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Ela deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar revaloriza o papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos". 

Quando escrevemos o subtítulo de Naus - "Uma análise transdisciplinar sobre a crença em discos voadores" -, a intenção não poderia ser mais explícita. Não bastaria colocar como suporte discursivo esta ou aquela matéria e dela inferir conclusões. Foi preciso ir além para não ficar vulnerável. Quer exemplos? Alteridade se discute em qual campo, Antropologia, Sociologia, Psicologia ou Psicanálise? E narcisismo? E morte? Vida extraterrestre diz respeito somente à Astrobiologia? Crenças se submete à Religião, Psicologia ou Sociologia? Ficção científica se insere na Literatura, na História, na Cultura ou, de novo, na Sociologia? Para gerir tanta complexidade é necessário, antes de tudo, clareza e cautela na montagem dos elementos. A trama da malha é espessa, ou, como está no Prefácio, uma verdadeira "tapeçaria persa'.

Mas há um aspecto importante nesse quadro que parece não estar ainda muito claro. Enquanto a maioria absoluta das pessoas parte da premissa de que disco voador existe e formula suas questões esperando que minhas respostas satisfaçam essa convicção, eu parto do princípio inverso - disco voador não existe. Como tenho o conhecimento e a experiência na área, minhas explanações contrariam as expectativas e o desejo de uma confirmação, e o inconformismo é inevitável. A transdisciplinaridade é a ferramenta mais eficaz, a chave sólida que abre as portas para entendimento maior das coisas do mundo. Estamos burilando a educação transdisciplinar, um caminho sem volta, e o que isso significa na sua vida você saberá na próxima semana. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017


Realismo fantástico ou irrealismo cotidiano?


Começamos 2017 de modo auspicioso. Nos últimos dias de 2016 foi publicada a revista eletrônica ConsCiências'5, editada pelo CTEC - Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, da Universidade Fernando Pessoa, do Porto, Portugal, uma edição comemorativa dos 40 anos da Revista Insólito. Foi com surpresa e evidente alegria que recebemos a notícia de texto nosso no corpo de artigos especialmente escolhidos para a ocasião. Todos os autores são pátrios, vários deles graduados nas áreas de História, Antropologia, Sociologia, Psicologia e Filosofia. Eu sou o único forasteiro do grupo. A satisfação não se restringe ao privilégio da seleção, mas também pelo seu conteúdo, que espelha idêntico percurso investigativo e de reflexão com a nossa trajetória.

O título de hoje tomei emprestado do artigo de José Soares Martins, que faz uma análise nostálgica e histórica do 'princípio da pesquisa do incomum', que me parece lícito fazer uma releitura no atual contexto. Tomei a liberdade de interferir com itálico no que julguei ponto-chave: "Moscovici¹, por sua vez, mostrou que a inovação é o motor fundamental da sociedade e da história. Mas essa inovação faz-se paradoxalmente à custa do desvio, ou seja, das minorias activas ou nómicas capazes de engendrar um conflicto com a maioria até a conversão desta última, caso o Zeitgeist seja favorável. Neste sentido, a história dos homens tem sido marcada por esta dinâmica moscoviciana: normalização, conformidade, inovação, que de certa forma nos faz lembrar a fórmula hegeliana: tese, antítese, síntese…." O termo latino utilizado por Martins na sua explanação remete a Naus da Ilusão. Coincidência? Não.

Em "Os Outros na Ficção Científica Portuguesa", Álvaro Holstein traz um painel da literatura sci-fi e sua influência de acordo com as faixas etárias, tema também tratado em Naus de modo separado - ficção científica e alteridade - que se imbricam em algum momento. Coincidência? Não.

João J. M. Maia traz um estudo interessante sobre linguagem em "A comunicação na interpretação fenomenológica da singularidade". O estudo lida com a aparição de Fátima em 1917 no contexto sócio-religioso da época; o "Milagre do Sol", as aparições marianas de modo geral e as ocorrências Óvni em interação com humanos. Ao longo do trabalho, Maia declara que "Há assim uma clara incongruência da linguagem com experiências que, de acordo com os investigadores, introduzem nas pessoas estados modificados da consciência. É verdade que o próprio indivíduo, sujeito da experiência, assume códigos linguísticos socialmente instituídos como forma a mediar e a comunicar a sua vivência. No entanto, essa codificação adultera e amputa aquilo que foi a idiossincrasia da experiência". 

Com o subtítulo "A comunicação de massa e a construção de uma nova mitologia", o autor afirma: "Deste modo, os meta-acontecimentos que irrompem na cobertura jornalística dão-se como acontecimentos inseridos numa ordem discursiva e numa representação cénica regidas pelo mundo simbólico e pelo mundo da enunciação. Existe um devir de discurso espetacular que faz parte do próprio caráter apelativo e atrativo imposto pela ordem mediática." Naus, de novo, dedica amplo espaço à questão da linguagem, da comunicação de massa, do 'diálogo no silêncio' e do 'teatro coletivo'. Coincidência? Não.

Por fim, assino "A Ressurgência do Mito", um rescaldo de Reflexões e os primeiros esboços que dariam ensejo a Naus. Isso talvez explique a consonância com a maioria dos textos de ConsCiências'5 não ser mesmo coincidência, mas afinidade e clara sintonia de todos com a consciência crítica identificada com os dias atuais. Não escondo discreto orgulho por pertencer a este qualificado elenco.

Devo registrar ainda, para valorizar nossos autores, a obra recém-lançada de Rodolpho Gautiher - A Invenção dos Discos Voadores, sua dissertação de mestrado em Filosofia e Ciências Humanas pela Unicamp. Mais que um mero registro, sua obra reforça o exposto aqui no seu emparelhamento com nosso trabalho, ainda que com viés mais restrito, ao abordar a ficção científica, cultura de massa, imaginário, alteridade, história... Coincidência, de novo?

Termino com as mesmas palavras com que encerrei Ressurgência: "Assumimos, incondicionalmente, desde sempre como princípio fundamental da prática investigativa e norte de conduta, o preceito de não misturar busca da verdade com necessidade de acreditar, empenhados em estreitar e concretizar um permanente, fecundo e cooperativo intercâmbio com os agentes do saber - bússola confiável na rota do conhecimento, de forma a legitimar um campo de estudo escasso de credibilidade".

ConsCiências'5 (e-book) à venda nos sites www.wook.pt e www.bertrand.pt



Stultifera Navis - Navio dos tolos (tradução livre), 1494, Hieronymus Bosch. Também conhecida por Narrenschiff - Nave dos insensatos (tradução livre), obra de Sebastian Brant, mesmo período. Para saber mais, ver Michel Foucault, A História da Loucura na Idade Clássica, Perspectiva, 2014.
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¹ Serge Moscovici (1928-2014), psicólogo social romeno.

carlosalbertoreis51@gmail.com