Obras

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sexta-feira, 25 de maio de 2018

VOZES , ECO & SILÊNCIO
A espiral do silêncio

Encerrada a série com a transcrição do artigo sobre opinião pública, bolha epistêmica e outros temas, o post de hoje é complementar e fundamental, baseado na obra A Espiral do Silêncio. Opinião pública: nosso tecido social, de 1995da socióloga e cientista política alemã Elisabeth Nöelle-Neumann (1916-2010). Caso você não tenha lido as edições anteriores, recomendo que faça para que a compreensão da matéria seja plena.

Se formos buscar a gênese de toda a discussão trazida aqui nos últimos posts, teremos que remontar a Platão. A coisa toda começou quatro séculos antes da Era Cristã. Você se lembra de que iniciamos a série falando da "doxa", prática corrente nas ágoras da Grécia antiga, quando os atenienses - somente eles - se reuniam para debater questões de interesse geral. Para o filósofo grego, doxa era justamente a opinião dominante resultante daqueles encontros, uma opinião politicamente forte porque representava o pensamento da maioria, porém, filosoficamente frágil. Como é, dominante e frágil?! perguntará você. É sobre isso que vamos discorrer muito resumidamente, através da teoria da espiral do silêncio, que não é assunto novo, diga-se. 

Para uma opinião prevalecer sobre as demais, ela precisa do maior número de "votos", ou seja, da maioria de pessoas concordando com ela. Contudo, essa maioria é, invariavelmente, intelectual e filosoficamente fraca porque facilmente sugestionável, manipulável, controlável e ordenável. Tenha sempre em mente que o alarido da turba irresponsável ensurdece, emudece e emburrece. Platão dizia que uma sociedade que aprova e fortalece uma decisão política em prejuízo da complexidade da busca da verdade, é uma sociedade que cava sua própria sepultura. Bauman chama de sociedade líquida, Lipovetsky de surto de apatia de massa; diagnósticos de Baudrillard, Adorno, Morin, Eco e outros denotam uma certeza cruel, porque real: geração de surdos, nova desordem mundial, 
multidão de solitários, diluição das identidades, fim das utopias, era das incertezas, individualismo exacerbado, império do efêmero, e, o pior de todos, ascensão dos idiotas. Um quadro terrivelmente verdadeiro do nosso tempo.

A teoria da espiral começou a ganhar forma fins dos anos 1960 e início dos 70, quando a socióloga passou a estudar os mecanismos da comunicação de massa e seus efeitos nas sociedades, em especial nas campanhas eleitorais do seu país naquele período. Ela notou que o resultado era um "Processo em espiral que impelia os indivíduos a perceber as mudanças de opinião e segui-las até que uma se firmasse como prevalente, enquanto as demais [opiniões] eram rejeitadas ou descartadas". Esse estudo chama-se ddemoscopia. A 
espiral do silêncio, portanto, nada mais é que a atitude de algumas pessoas em permanecer caladas quando supõem, intuem ou ficam com a falsa sensação de que suas opiniões e filosofias, visão de mundo, cosmovisão e concepções de vida estão em desacordo com a maioria, ou seja, estão em minoria. "Espiral" devido ao efeito proporcional decrescente das opiniões que silenciam das que alcançam maior visibilidade e crédito. Trocando em miúdos, quanto mais crescem estas, mais decaem aquelas.

O modelo da espiral se estabelece a partir de três premissas, segundo a autora: a) Mesmo sem acesso direto às pesquisas, enquetes, sondagens e estatísticas, a população, de modo geral, tem uma apurada percepção das tendências de opinião acerca de um dado assunto; b) Há um m medo oculto de que ocorra um isolamento social caso sua opinião seja divergente da "maioria intuída", com consequências imprevisíveis; c) Quanto maior a distância entre a opinião pública dominante e a opinião pessoal contrária, maior será a probabilidade de essa última manter-se reservada, silenciosa e isolada.

Nöelle-Neumann diz ainda que para entender o funcionamento da espiral é necessário conhecer os mecanismos pelos quais a mídia influencia a sociedade (não vou comentar o papel da publicidade nesse processo): 1) Superexposição de um assunto específico; 2) Noticiário "padronizado", produzido e divulgado pelas agências e veículos de comunicação; 3) Presença maciça, ou onipresença, da mídia em todos os setores da vida social. Ela afirma também que "Hoje pode ser demonstrado que, embora as pessoas vejam claramente que algo não é correto, permanecerão em silêncio se a opinião pública (aquela que possa ser exibida sem medo do isolamento) e, portanto, o consenso sobre o que constitui bom gosto e opinião moralmente correta, manifestar-se-ão contra".

Nöelle-Neumann discorre sobre a natureza social dos indivíduos, onde personagens devem despontar como "formadores de opinião". Ela afirma que uma sociedade sem natureza social ou sem medo de isolamento é obviamente impossível. E diz mais, afirmando que, buscando informações sobre a opinião pública, percebeu que o assunto nunca apareceu como "fenômeno principal de investigação", mas como comentários marginais. Ela vê a opinião pública como um fenômeno de interesse para filósofos e cientistas sociais desde o século 19, talvez até antes. De acordo com sua teoria, quando as pessoas buscam formar um juízo sobre determinado assunto,  elas observam quais são as opiniões dominantes ou hegemônicas antes de se manifestarem. A tendência é as pessoas guardarem silêncio, a não expressarem opiniões diferentes das que estão prevalecendo nos meios de comunicação. As opiniões percebidas - as da maioria - pela mass media serão aquelas abraçadas pela sociedade.

Há uma evidente desconexão entre opinião pública e privada, uma vez que os indivíduos, no desejo de fazer parte de um grupo, uma "tribo", emitem suas opiniões e as ajustam aos critérios que julguem serem majoritários, isto é, o medo do isolamento contribuiria para o indivíduo adaptar sua opinião àquela sustentada pela maioria para evitar atritos. Ainda que existam diferenças significativas entre as culturas e as sociedades, Nöelle-Neumann assinala que em todas elas existe uma "pressão para a conformidade", isto é, a luta pela opinião pública se concentra nos meios de comunicação, que funcionam como instrumentos de controle. O 'silêncio' poderia ser interpretado como um sinal de conformidade, o que não corresponde necessariamente à verdade.

A espiral do silêncio atua dentro de um sistema dinâmico no qual a mídia exerce total domínio. Ela pega uma opinião majoritária e repetidamente coloca-a no centro de um universo social, estabelecendo-a como statu quo, colocando a si mesma no topo dessa escada imaginária. Essa opinião se torna predominante não apenas porque é repetida à exaustão, mas porque as pessoas só podem compreender o mundo por intermédio de sua consciência, que é, em grande parte, criada (e manipulada) pela mídia. Elas interpretam como real aquilo que veem como real, e essa realidade é previamente determinada pela mídia. E esta é apenas uma das vertentes do estudo. E olhe que nem falei das redes sociais e as consequências nefastas para a opinião privada, afinal, como dizia Umberto Eco, a internet deu voz a uma legião de imbecis. Legião? Um exército!

A autora observa que vários autores têm tocado no tema de modo superficial, incluindo Tocqueville, que em 1856 escreveu: "Os que seguiam crendo nas doutrinas da Igreja tinham medo de ficarem sozinhos em sua crença, e temendo mais a solidão que os erros, declaravam compartir as opiniões da maioria. Então, o que era apenas a opinião de uma parte (...) da nação passou a ser considerada a vontade de todos".

Chegamos, por fim, para onde tudo converge. Vem comigo.

Ao costurarmos os "retalhos temáticos" trazidos para análise não só do objeto que nos move, mas também da sociedade, o que surge é um painel bastante elucidativo das condutas individuais e coletivas. Voltamos, portanto, ao ponto inicial, as opiniões. Para isso, é preciso rever algumas passagens. Considerando que a massa da população não tem o grau de conhecimento necessário para opinar sobre um determinado assunto. Por exemplo, para os discos voadores, o conjunto das opiniões será constituído pelo "acho que", "ouvi dizer", pela combinação ficção científica-imaginário alien, pela espetáculo midiático de ocasião, pela espiritualidade de bolso, pelas interpretações religiosas toscas e pelas crenças de fundo coletivo. É de se concluir, portanto, que tal "opinião pública" não pode e não deve, em absoluto, ser tomada como resultado de uma convicção consensual solidamente formadaÉ, sem dúvida, uma doxa: Sistema ou conjunto de juízos que uma sociedade elabora em um determinado momento histórico supondo tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas que não passa de uma crença ingênua.

De sua parte, os ufólogos, aninhados na zona de conforto de sua bolha epistêmica, alimentam-se autofágica e viciosamente do próprio viés de confirmação e da câmara de eco - que 
funcionam como uma espécie de paralisia social -, ignorando os saberes externos por viverem na ilusão de profundidade explicativa, uma espécie de ensaio geral obre a cegueira. Vale dizer, néscios funcionais. Não obstante, são especialistas, formadores de opinião, com retórica anacrônica porém persuasiva, sedutora e sagaz, ao gosto da cultura de massa e do que pede o público cativoTudo é tão claro quanto óbvio. Assim, enquanto esse vozerio todo sobe por um lado da espiral, de outro declina a ação daqueles investigadores imersos no estudo transdisciplinar na autêntica procura pela verdade. A espiral amplia o vácuo entre estes dois mundos: Signos contrários, caminhos inversos, discursos excludentes, choque de linguagens, sinapses distintas e distantes, diálogos crispados.

E por que essa minoria se cala? Por que não reage, não vai à luta? Imagino que você possa estar se perguntando.

Entre tantas respostas possíveis, uma me parece a mais sensata e verdadeira, não por ser a minha em particular - é a de outros também, mas pela realidade dos fatos à luz de um olhar ensejado pela lógica, pelas circunstâncias e pela experiência: Não sou porta-voz de ninguém, mas não temos - no plural - a menor intenção de impor ou convencer com nosso saber 
compartilhado e magnificadoIncipiente sim, mas progressivo e irrestritoNão somos doutossó não somos tabula rasa. A leitura combate a miséria intelectual. Não estamos silentes, só não estamos expostos. Nem sempre silêncio é omissão, cumplicidade, conivência ou covardia, é estratégia também, a Psicanálise e a Filosofia que o digam. Por outro ângulo, silêncio é coragem, coragem de nadar contra a correnteza do 'senso comum' ao falar com a própria voz. É sabido que o silêncio leva à reflexão, à análise, ao entendimento. Não estamos inativos, só não somos reativos. Não somos apáticos, só não temos pressa, a pressa induz ao erro. Não temos soberba, só não somos estúpidos, e estes estão por toda parte, como os unicórnios, muito mais que a legião de Eco. O orgulho cega o caminho e a certeza aborta o debate.

O que você quer, uma opinião saída do cérebro ou do intestino? Um parecer calcado na pesquisa de longo curso referendada por uma literatura eclética consagrada, ou em explicações descuradas, prematuras e improváveis? O que você quer, análise crítica madura dos fatos ou embromação fermentada pelas fantasias, pelas crenças ou as de conveniência, ou seja, a doxa? O que você quer? Quer ser adestrado a se juntar ao rebanho de padrão cognitivo raso, ou receber conteúdo de excelência para pensar com os próprios neurônios? Você quer um saber constituído ou seguir crendo em feitiçarias? Lembre-se, você é resultado das suas escolhas, você é os valores que escolhe e que espelham suas atitudes, você é aquilo que pensa. O cenário mudou, e você, mudou? O que você quer? Quais são seus critérios, seus imperativos e sua lógica de escolha?

Espero que esta série tenha sido tão luminosa para você quanto foi para mim. Espero que tenha percebido nas entrelinhas a semelhança da bolha epistêmica com a caverna platônica - nosso útero primordial, algo tão profundo que inspirou os próximos textos. Para retribuir sua grata presença, Fernando Pessoa, um epílogo em forma de poesia.
É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios.
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber se encontrar.
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração. 


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Elisabeth Nöelle-Neumann, A Espiral do Silêncio. Opinião pública: nosso tecido social. Estudos Nacionais, 2017.
Clóvis de Barros Filho, Comunicação na Polis. Vozes, 2002.
Zygmunt Bauman, A Cultura no Mundo Líquido Moderno. Zahar, 2011.

sábado, 19 de maio de 2018


VOZES, ECO & SILÊNCIO
A ilusão de conhecimento

O maior inimigo do conhecimento
não é a ignorância, mas a ilusão de conhecimento.
Daniel Boorstin

Chegamos agora à terceira e última parte do artigo de Thi Nguyen. Mesmo sendo um pouco longo, reitero que é um profundo estudo sócio antropológico e filosófico de grande valor para nossas vidas. Vale a pena dedicar um tempo na leitura. Os 
destaques enfatizam os pontos relevantes. Chamo sua atenção também para o pensamento de Descartes no final. Lembro ainda que uma quarta parte trará um estudo diferente, adicional e suplementar ao universo de discussões que embasam esta série.

Vamos lá, não perca o fio!

Uma vez que uma câmara de eco começa a prender uma pessoa, seus mecanismos se reforçam Em uma vida epistemicamente saudável, a variedade de nossas fontes informativas colocará um limite máximo para o quanto estamos dispostos a confiar em qualquer pessoa. Todo mundo é falível; uma rede informacional sadia tende a descobrir os erros das pessoas e apontá-los. Isso estabelece uma fronteira em quanto você pode confiar até mesmo no seu líder mais amado. Em uma câmara de eco, esse limite inexiste.

Ser pego numa câmara de eco nem sempre é resultado de preguiça ou má-fé. Imagine, por exemplo, que alguém foi criado e educado inteiramente dentro de uma câmara de eco. Essa criança aprendeu as crenças, a confiar nos canais de TV e sites que reforçam essas mesmas crenças. Deve ser razoável supor que uma criança confie naqueles que a criam. Assim, quando ela cresce e entra no universo adulto, a visão de mundo na câmara de eco está firmemente estabelecida. Aquele adolescente desconfiará de todas as fontes fora de sua câmara e terá chegado lá seguindo os procedimentos normais de confiança e aprendizado.

Certamente parece que nosso adolescente está se comportando razoavelmente. Ele pode cuidar de sua vida intelectual em perfeita ordem. Ele pode ser intelectualmente voraz, procurando novas opiniões, investigando-as e avaliando-as usando o que já sabe, mas não está confiando cegamente; ele está ponderando proativamente a credibilidade de outras fontes, usando seu próprio corpo de crenças de fundo. A preocupação é que ele está intelectualmente preso. Suas sinceras tentativas de investigação intelectual são desencaminhadas por sua criação e pela estrutura social na qual está inserido.

Para aqueles que não foram criados dentro de uma câmara de eco, talvez seja necessário algum vício intelectual significativo para entrar em uma - talvez a preguiça intelectual ou a preferência pela segurança sobre a verdade. Mas, mesmo assim, uma vez que o sistema de crenças da câmara de eco esteja no lugar, seu comportamento futuro poderia ser razoável e eles ainda continuariam presos. As câmaras de eco podem funcionar como um vício, sob certos aspectos. Pode ser irracional se ficar dependente, mas tudo que é necessário é um lapso momentâneo - uma vez que você está viciado, sua paisagem interna é convenientemente rearranjada de tal forma que é racional continuar com seu vício. Da mesma forma, tudo o que é preciso para entrar em uma câmara de eco é um lapso momentâneo de vigilância intelectual. Quando você entra, os sistemas de crenças da câmara funcionam como uma armadilha.

Há pelo menos uma rota de fuga possível, no entanto. Veja que a lógica da câmara de eco depende da ordem em que encontramos a evidência. Uma câmara de eco pode levar nosso adolescente a desacreditar crenças externas precisamente porque ela encontrou primeiro as alegações da câmara de eco. Imagine uma contrapartida para nosso adolescente que foi criado fora da câmara de eco e exposto a uma ampla gama de crenças. Nossa contraparte de alcance livre, quando ela encontrar essa mesma câmara de eco, provavelmente constatará suas inúmeras falhas. No final, ambos os adolescentes podem eventualmente ficar expostos a todas as mesmas provas e argumentos. Mas chegam a conclusões completamente diferentes por causa da ordem em que receberam essa evidência. Uma vez que o nosso adolescente na câmara de eco encontrou as crenças da câmara primeiro, essas crenças irão influenciar como ele interpretará todas as evidências futuras. Mas algo parece muito suspeito sobre tudo isso. Por que a ordem deveria importar tanto?

O filósofo Thomas Kelly argumenta que não deveria, justamente porque tornaria essa polarização radical racionalmente inevitável. Aqui está a verdadeira matriz de irracionalidade nos membros da câmara de eco ao longo da vida - e isso acaba sendo incrivelmente sutil: 
Aqueles pegos em uma câmara de eco estão dando muito peso à evidência que encontram primeiro, só porque é a primeira. Racionalmente, eles deveriam reconsiderar suas crenças sem essa preferência arbitrária. Mas como se impõe tal historicidade informacional?

Pense no nosso adolescente na câmara de eco. Cada parte de seu sistema de crenças está sintonizada para rejeitar o testemunho contrário de pessoas de fora. Ele tem um motivo, em cada encontro, para descartar qualquer evidência contrária recebidaAlém do mais, se ele decidisse suspender qualquer uma de suas crenças particulares e reconsiderar por conta própria, então todas as suas crenças de fundo provavelmente apenas restabeleceriam a crença problemática. Nosso adolescente teria que fazer algo muito mais radical do que simplesmente reconsiderar suas crenças uma por uma. Ele teria que suspender todas as crenças de uma só vez e reiniciar o processo de coleta de conhecimento, tratando todas as feeds como igualmente confiáveis. Este é um empreendimento colossal; talvez seja mais do que poderíamos razoavelmente esperar de alguém. Pode também, para o filosoficamente inclinado, soar terrivelmente familiar.

Descartes sugeriu que imaginássemos um demônio maligno nos enganando sobre tudo. Ele explica o significado por trás da metodologia nas linhas iniciais das Meditações sobre a Primeira Filosofia (1641). Ele percebera que muitas das crenças que adquirira no começo de sua vida eram falsas. Mas as crenças iniciais levaram a todo tipo de outras crenças, e qualquer mentira inicial que ele aceitasse certamente infectara o resto de seu sistema de crenças. Ele temia que, se descartasse qualquer crença particular, a infecção contida no restante de suas crenças simplesmente restabelecesse mais crenças falsas. A única solução, pensou Descartes, era jogar fora todas as suas crenças e recomeçar do zero.

Então, o demônio maligno era apenas um pouco de heurística - um experimento mental que o ajudaria a jogar fora todas as suas crenças. Ele podia começar de novo, não confiando em nada e em ninguém além daquelas coisas de que pudesse estar inteiramente certo, e eliminando aquelas falsidades sorrateiras de uma vez por todas. Vamos chamar isso de reinicialização epistêmica cartesiana. Observe como o problema de Descartes está próximo do nosso adolescente desafortunado e quão útil a solução pode ser. Nosso garoto, como Descartes, tem crenças problemáticas adquiridas na primeira infância. Essas crenças foram contaminadas pelo exterior, infestando todo esse sistema de crenças do adolescente. Ele também precisa jogar tudo fora e começar tudo de novo.

O método de Descartes foi abandonado pela maioria dos filósofos contemporâneos, já que, na verdade, não podemos começar do nada: precisamos começar assumindo algo e confiando em alguém. Mas para nós, a parte útil é o reinício em si, onde jogamos tudo fora e começamos de novo. A parte problemática acontece depois, quando nós re-adotamos somente aquelas crenças das quais estamos totalmente certos, enquanto procedemos apenas pelo raciocínio independente e solitário.
Vamos chamar a versão modernizada da metodologia de Descartes, a reinicialização social-epistêmica. A fim de desfazer os efeitos de uma câmara de eco, o membro deve suspender temporariamente todas as suas crenças - em particular quem e o que ela confia - e começar do zero. Mas quando ele começa do zero, não exigimos que confie apenas no que ele está absolutamente certo, nem vamos exigir que vá sozinho. Para a reinicialização social, ele pode prosseguir, depois de jogar tudo fora, de uma maneira totalmente mundana - confiando em seus sentidos, confiando nos outros. Mas ele deve começar de novo socialmente- devendo reconsiderar todas as possíveis fontes de informação com um olho presuntivamente equânime. E deve assumir a postura de um "recém-nascido cognitivo", aberto e igualmente confiante em todas as fontes externas. De certo modo, ele esteve aqui antes. Na reinicialização social, não estamos pedindo às pessoas que mudem seus métodos básicos para aprender sobre o mundo. Eles podem confiar e confiar livremente. Mas após o recomeço social, essa confiança não será estreitamente confinada e profundamente condicionada pelas pessoas que por acaso foram criadas.

A reinicialização social pode parecer bastante fantástica, mas não é tão irrealista. Uma limpeza profunda de todo o sistema de crenças de alguém parece ser o que é realmente necessário. Veja as muitas histórias de pessoas saindo de cultos e câmaras de eco. Tomemos, por exemplo, a história de Derek Black, na Flórida - criado por um pai neonazista e preparado desde a infância para ser um líder neonazista. Black deixou o movimento basicamente realizando uma reinicialização social. Ele abandonou completamente tudo em que acreditava e passou anos construindo um novo sistema de crenças a partir do zero. Ele mergulhou de maneira ampla e aberta em tudo o que perdeu - cultura pop, literatura árabe, a grande mídia, rap - tudo com uma atitude generalizada de generosidade e confiança. Foi o projeto de anos e um grande ato de auto-reconstrução,

Eis aí alguma coisa que podemos fazer, então, para ajudar um membro da câmara de eco para reiniciar? Já descobrimos que as táticas de assalto direto - bombardeando o membro da câmara com "evidências" - não funcionam. Os integrantes da câmara não são apenas protegidos de tais ataques, mas seus sistemas de crenças irão justificar tais ataques em um reforço adicional da visão de mundo da câmara. Em vez disso, precisamos atacar a raiz, os sistemas de descrédito, e restaurar a confiança em algumas vozes externas.

As histórias de fugas reais das câmaras de eco muitas vezes se voltam para encontros particulares - momentos em que o indivíduo de uma câmara começa a confiar em alguém do lado de fora. O preto é o caso em questão. No ensino médio, ele já era uma espécie de estrela na mídia neonazista, com seu próprio programa de rádio. Ele foi para a faculdade, abertamente neonazista, e foi evitado por quase todos os outros estudantes de sua faculdade comunitária. Mas então Matthew Stevenson, um estudante judeu de graduação, começou a convidar Black para os jantares de Shabat de Stevenson. Nas histórias de Black, Stevenson era infalivelmente gentil, aberto e generoso, e aos poucos conquistou a confiança de Black. Esta foi a semente, diz Black, que levou a uma enorme revolução intelectual - uma compreensão lenta das profundezas em que ele havia sido enganado. Black passou por uma transformação pessoal de anos, e agora é um porta-voz antinazista. Da mesma forma, os relatos de pessoas que saem da homofobia de câmara ecológica raramente os envolvem com algum fato institucionalmente relatado. Em vez disso, eles tendem a girar em torno de encontros pessoais - uma criança, um membro da família, um amigo próximo saindo. Esses encontros são importantes porque uma conexão pessoal vem com um armazenamento substancial de confiança.

Por que a confiança é tão importante? Annete Baier sugere uma faceta fundamental: a confiança é unificada. Nós não confiamos simplesmente em pessoas como especialistas em um campo - nós confiamos em sua boa vontade. E é por isso que a confiança, e não a mera confiabilidade, é o conceito-chave. A confiabilidade pode ser específica do domínio. O fato, por exemplo, de que alguém é um mecânico confiável não lança luz sobre se suas crenças políticas ou econômicas valem alguma coisa. Mas a boa vontade é uma característica geral do caráter de uma pessoa. Se eu demonstrar boa vontade em ação, então você tem alguma razão para pensar que eu também tenho boa vontade em questões de pensamento e conhecimento.

Então, se alguém puder demonstrar boa vontade a um membro da câmara de eco - como Stevenson fez com Black - então talvez alguém possa começar a furar aquela câmara de eco. Tais intervenções de pessoas de confiança podem começar a ressocialização. Mas o caminho que estou descrevendo é sinuoso, estreito e frágil. Não há garantia de que tal confiança possa ser estabelecida e nenhum caminho claro para o seu estabelecimento sistemático. 

Aqui finda a série. O próximo capítulo - "A espiral do silêncio" - é fundamental para se compreender toda a questão. Não perca

Gravura: La mort de Socrate, 1787. Jacques-Louis David, Metropolitan Museum of Art, New York.
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acessado em 21/04/2018

sábado, 12 de maio de 2018


VOZES , ECO & SILÊNCIO
A câmara de eco 

Seguimos com a transcrição do artigo do professor de Filosofia da Utah Valley University, C. Thi Nguyen. Volto a pedir concentração na leitura, dada a importância do tema em tempos de polarização e radicalização de toda sorte.

Atenção agora!

Pode-se ficar tentado a pensar que a solução é apenas mais autonomia intelectual. As câmaras de eco surgem porque confiamos demais nos outros, então a saída é começar a pensar por nós mesmos. Mas esse tipo de autonomia intelectual radical é um delírio. Se o estudo filosófico do conhecimento nos ensinou alguma coisa no último meio século, é que somos irremediavelmente dependentes uns dos outros em quase todos os domínios do conhecimento. Pense em como confiamos nos outros em todos os aspectos de nossas vidas diárias: Dirigir um carro depende de confiar no trabalho de engenheiros e mecânicos; tomar remédio depende de confiar nas decisões de médicos, químicos e biólogos. Até os especialistas dependem de vastas redes de outros especialistas. Um cientista do clima analisando amostras do ar depende do técnico de laboratório que opera a máquina de extração de ar, dos peritos em estatística que desenvolveram metodologias subjacentes e assim por diante.

Elijah Millgram argumenta em The Great Endarkenment (2015), que o conhecimento moderno depende da confiança de extensas cadeias de experts. E nenhuma pessoa está em condições de verificar a confiabilidade de todos os membros dessa cadeia. Pergunte a si mesmo: Você poderia diferenciar um bom cientista de um incompetente? Um bom biólogo de um biólogo medíocre? Um bom engenheiro nuclear, um radiologista, um  macroeconomista, de um profissional incapaz? Qualquer leitor em particular pode, é claro, ser capaz de responder positivamente a uma ou duas dessas questões, mas ninguém pode realmente avaliar uma cadeia tão longa por si mesma. Em vez disso, dependemos de uma estrutura social de confiança muito complexa. Temos de confiar uns nos outros, mas, como a filósofa Annette Baier afirma, "Essa confiança nos torna vulneráveis". As câmaras de eco funcionam como uma espécie de parasita social sobre essa vulnerabilidade, aproveitando nossa condição epistêmica e dependência social.

A maioria dos exemplos dados, seguindo Jamieson e Cappella, foca na câmara conservadora de eco da mídia. Mas nada diz que esta é a única câmara lá fora; Eu também encontrei câmaras de eco sobre tópicos tão amplos como política, dieta (Paleo!), técnicas de exercícios (CrossFit!), amamentação, algumas tradições intelectuais acadêmicas e muito, muito mais. Eis o padrão: O sistema de crenças de uma comunidade enfraquece a confiabilidade de quaisquer pessoas de fora que não subscrevam seus dogmas centrais? Então provavelmente é uma câmara de eco.
No entanto, grande parte da análise recente colocou as bolhas epistêmicas junto com as câmaras de eco em um fenômeno unificado, mas é absolutamente crucial distinguir os dois. Bolhas epistêmicas são bastante desorganizadas; crescem com facilidade e da mesma forma desmoronam. As câmaras de eco são muito mais perniciosas e muito mais robustas. Elas podem começar a parecer quase como coisas vivas. Seus sistemas de crenças fornecem integridade estrutural, resiliência e respostas ativas a ataques externos. Certamente uma comunidade pode ser ambas ao mesmo tempo, mas os dois fenômenos também podem existir independentemente. E os eventos que mais nos preocupam são os efeitos de câmara de eco que realmente causam a maior parte do problema.

A análise de Jamieson e Cappella é, em grande parte, esquecida nos dias de hoje; o termo é entendido apenas como sinônimo de bolhas de filtro. Muitos dos pensadores mais proeminentes se concentram apenas nos efeitos do tipo bolha. Os relevantes tratamentos de Sunstein, por exemplo, diagnosticam a polarização política e a radicalização religiosa quase exclusivamente em termos de má exposição e má conectividade. Sua recomendação, em Republic, é criar mais fóruns públicos para o discurso, onde deparamos com opiniões contrárias com mais frequência. Mas se o que estamos tratando é primariamente uma câmara de eco, então esse esforço será inútil, na melhor das hipóteses, e poderá até fortalecer o controle dessa câmara.

Os novos dados parecem mostrar que as pessoas no facebook realmente veem postagens de opiniões contrárias, ou que as pessoas frequentemente visitam sites com afiliações políticas opostas. Se isso é certo, então as bolhas epistêmicas podem não ser uma ameaça tão séria. Mas nada disso pesa contra a existência de câmaras de eco. Não devemos descartar essa ameaça com base apenas em evidências sobre conectividade e exposição. Fundamentalmente, as câmaras de eco podem oferecer uma explicação útil da atual crise informacional de uma maneira que as bolhas epistêmicas não podem. Muitas pessoas afirmaram que entramos numa era de "pós-verdade". Não só algumas figuras políticas parecem falar com um descarado desrespeito pelos fatos, mas seus partidários parecem totalmente não-convencidos pelas evidências. Parece que, para alguns, a verdade não mais importa.

Esta é uma explicação em termos de irracionalidade total. Para aceitá-lo, você deve acreditar que um grande número de pessoas perdeu todo o interesse em evidências ou investigações e se afastou dos caminhos da razão. O fenômeno das câmaras de eco oferece uma explicação menos contundente e muito mais modesta. A aparente atitude de "pós-verdade" pode ser explicada como o resultado das manipulações de confiança forjadas pelas câmaras de eco. Não precisamos atribuir um desinteresse total por fatos, evidências ou motivos para explicar a atitude pós-verdade. Nós simplesmente temos que atribuir a certas comunidades um conjunto amplamente divergente de autoridades confiáveis.

Ouça o que realmente soa quando as pessoas rejeitam os fatos simples - não soa como irracionalidade bruta: Um lado aponta um dado econômico; o outro lado ignora esse dado rejeitando sua fonte. Eles acham que o jornal é tendencioso ou as elites acadêmicas que geram os dados são corruptas. Uma câmara de eco não destrói o interesse de seus membros pela verdade, apenas manipula quem eles confiam e muda quem eles aceitam como fontes e instituições confiáveis.

E, em muitos aspectos, os integrantes da câmara de eco estão seguindo procedimentos razoáveis ​​e racionais de investigação. Eles estão imbuídos de raciocínio crítico, estão questionando, avaliando fontes por si mesmos, estudando diferentes caminhos para a informação a partir do que já sabem sobre o mundo. Eles não são irracionais, mas sistematicamente mal informados sobre onde depositar sua confiança.

Observe como o que está acontecendo aqui é diferente, digamos, do discurso duplo orwelliano, uma linguagem deliberadamente ambígua e cheia de eufemismo, projetada para esconder a intenção do falante. Doublespeak não tem nenhum interesse em clareza, coerência ou verdade. É, de acordo com George Orwell, a linguagem de burocratas e políticos inúteis tentando passar pelas articulações da fala sem realmente se comprometer com quaisquer reivindicações substantivas reais. Mas as câmaras de eco não negociam pseudo fala vaga e ambígua. Devemos esperar que elas apresentem afirmações claras, objetivas e inequívocas sobre quem é confiável e quem não é. E isso, de acordo com Jamieson e Cappella, é exatamente o que encontramos nas câmaras de eco: Teorias de conspiração claramente arquitetadas e acusações de um mundo exterior repleto de indignidade e corrupção.

[continua]

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