Obras

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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

CONTRADICÇÃO

Quando publiquei os textos em que o Sr. Däniken foi alvo da crítica, não esperava que o tema fosse prosperar, mas, graças àquele leitor atento e de boa cultura que enviou uma tréplica, me vi estimulado a prosseguir. De saída, admito que os exemplos dados ao discordar sobre a demanda não foram felizes, embora eu tenha entendido o seu pensamento. Ele tem total razão: entre bandidos e vítimas, só estas ficam no prejuízo; entre gurus e devotos, todos ganham (sem entrar no mérito de quem ganha o quê) porque um procura pelo outro, um precisa do outro. O que está em pauta agora é a outra ponta deste arco, justamente os admiradores, os fanáticos, os devotos. Tenho escrito sobre isso por vários ângulos, diversas abordagens, trazendo obras e autores da melhor qualidade. Mas sempre fica uma brecha a ser explorada. Vejamos o que temos hoje.

O leitor começa citando um trecho de Simona Argentieri em Ambiguidade (Rocco, 2011): "Cada ser humano, na verdade, tem uma profunda necessidade de pertencer a alguém e a alguma coisa (uma nação, uma raça, um clube de futebol, um partido, uma igreja...)". Eu sigo a partir das reticências - ...uma tribo, um grupo de whatsapp, uma rede - qualquer coisa com que possa se identificar. A autora prossegue: "(...) e apesar das declarações oficiais de desejo de liberdade, nos níveis mais profundos, temos ainda a necessidade oposta de obedecer a um líder, a um chefe que tranquilize as nossas partes infantis e dependentes". Eu poderia indicar vários posts nessa mesma linha de raciocínio - A dor da liberdade é um deles. Simona , 78 anos, é psicanalista italiana, autora de várias  obras além da citada.

Aqui ela é direta: "Em situações extremas e catastróficas (...), regredir à ambiguidade constitui uma formidável defesa a serviço da vida, que permite uma espécie de "confiança perversa" no próprio carcereiro, uma aceitação interior paradoxal, não conflitual, de uma realidade externa intolerável". 

O anjo sorridente de face rosada da fantasia afaga o coração e conforta o espírito, enquanto a Quimera da realidade sangra os olhos e lacera a carne, porque é cruelmente mais verdadeira e convincente. Para evitar o conflito com essa "realidade externa intolerável", o indivíduo recorta a parte que não lhe convém e coloca outra em seu lugar - a sua realidade - idealizada, só imaginariamente realizável.

Ambiguidade, do latim ambiguitas - equívoco, incerteza, duplicidade, mas pode chamá-la também de contradição, hipocrisia, cinismo, mentira, falsidade, incoerência e, como mostra o título, contradicção - dizer uma coisa e fazer outra. Isso explica o comportamento nas duas pontas: de um lado, figuras como Däniken que mentem e enganam dissimulando suas reais intenções, e de outro, o fiel que deposita confiança perversa para se desviar da realidade intolerável a que vive submetido.

É como o espiritualista de ocasião que repudia o materialismo e o ceticismo da patuleia até o ponto em que, diante de uma "situação extrema" como enfermidade grave, por exemplo, substitui de imediato os tratamentos alternativos (curas espirituais, medicina ayurvédica, homeopatia, naturopatia, terapia holística, terapia quântica, florais, chás, infusões...) pela medicina tradicional materialista com seu arsenal de bisturis, drogas, enxertos, agulhas, tubos, cateteres, próteses, transplantes e terapias químicas. Depois, são e salvo, agradece aos mentores espirituais por guiarem a mão do cirurgião, que, por sinal, era de Câncer cm ascendente em Touro, budista e vegano! Alguma dúvida que estamos diante de um ser fragmentado, dividido, assombrado, incerto e vagueante?

Ainda não li o livro (pretendo fazê-lo), mas considerando que Simona segue a linha freudiana, seu discurso dialoga também com Melanie Klein, que nivela a infância (do latim in fans - incapaz de falar) no mesmo patamar em que se inscreve o homem primitivo, fazendo coro com Freud: "Compreendemos como o homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal (...) Um homem dos dias posteriores comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem apoio de seu deus". E Freud segue dizendo que "A questão da angústia constitui um ponto no qual convergem os mais diversos e importantes problemas e um enigma cuja solução irá projetar mais luz sobre toda nossa vida psíquica".

Para finalizar, reiterando que o amigo leitor tem razão, repito uma frase que já escrevi e falei muitas vezes: Sempre haverá espetáculos medíocres enquanto houver plateias medíocres a lhes aplaudir. Ainda há muita demanda, de fato. Respeito o direito de cada um acreditar em quem quiser e no que quiser - bruxas e milagres, aliens e anjos, astros e pedras. A este blog cumpre informar, esclarecer, alertar, prevenir sobre aqueles não só iludem a boa-fé como prostituem-na com farsas, patifarias e parlapatices. Como o Sr. Däniken e similares. O mundo padece de adultos infantilizados e carece de gente responsável. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

ENTERREM SEUS MORTOS, DEUSES!

Bronze, s/n s/d
Cortesia Matteo Pugliese

A postagem anterior sobre deuses "ressuscitados" gerou o comentário interessante de um leitor. Na verdade, ele se refere ao personagem da matéria, o pseudo tudo Erich von Däniken, "um picareta de sucesso internacional", segundo ele. Acho que vale a pena continuar o assunto.

O leitor tem razão ao dizer que Däniken teve tempo e espaço para para divulgar suas bobagens "apenas para os sinceros de coração", ou seja, somente para pessoas desinformadas, crédulas, ingênuas, predispostas a aceitar os fatos sem questionamento.
E ele concorda também que "ainda teremos que aturar toda uma chusma de vendedores
e evacuadores de mitos e enganos por muito tempo". Você tem razão, caro leitor, mas, se eu não estiver errado - penso que não estou - essa credulidade inocente vem decrescendo, paulatinamente, mas vem. A malha de informação, a facilidade de acesso ao conhecimento, o desmascaramento de patifes tornou-se prática corrente, e não estou falando só de políticos, celebridades, "mestres", religiosos e outras figuras.

Mas o leitor há de me permitir discordar em um ponto, embora entenda o sentido de sua colocação. Diz ele: "Penso que o personagem em tela (e seus similares) é refém da demanda, o que atenua seu dolo". Não sei se concordo, por uma questão de lógica: Se as pessoas que circulam pelas praças são potenciais vítimas de assalto, o bandido que as assalta terá sua pena atenuada por elas estarem lá? O trombadinha que rouba o motorista no sinal deve ter sentença branda porque a vítima deveria andar com o vidro do carro levantado? O Sr. Däniken et caterva não são reféns da demanda, agem porque são intrinsecamente inescrupulosos, planejam so modus operandi com total clareza dos atos em todas as etapas, da falsa pesquisa à "venda" do produto. O Sr. Däniken nunca pesquisou nada e se aventurou pelo mundo "evacuando" bravatas com a maior desfaçatez, divertindo-se às mossas custas. Refém da demanda? O problema todo é que as pessoas acreditam a mentira, evitam a verdade, ignoram o certo e valorizam o errado. Não pode dar certo. 

Tenho reiteradamente escrito aqui sobre questões de ética, moral e responsabilidade, requisitos que obviamente inexistem em Däniken e "similares". A propósito, e não é propaganda porque ainda é muito cedo para isso, estamos preparando um artigo que trata justamente dessa questão, muito oportuna, diga-se, sobre deuses e simulacros como representações para uma realidade imaginária. Simulacros? No foco do estudo, gurus, médiuns e astrólogos, mas vale também para guias, profetas, xamãs, ayatollah, rabino, mulá, curandeiros, mestres, líderes espirituais, videntes, "contatados", clérigos, pastor, ministroenfim, todos aqueles que, de alguma forma, com discursos tão vazios quanto suas cabeças, exercem um oportunista e narcísico poder de sedução sobre pessoas por si só fragilizadas e vulneráveis, como "mediadores" entre o divino e  o humano, ou, se preferir, entre o sagrado e o profano.

Agradeço ao leitor pela oportunidade de estender algumas linhas sobre o tema. Volto a dizer que desconheço o alcance deste blog, seu poder de penetração nas redes, se gera alguma conversa em roda de bar, em reunião de amigos ou na mesa de jantar. Tudo o que sei é que faço a minha parte da melhor forma possível, do jeito que sei fazer. Se você, leitor, repercute as ideias aqui trabalhadas com seus amigos, colegas e familiares, então posso pressupor - e desejar - que uma "força-tarefa" invisível se forme para além das paredes que me cercam e para dentro do universo infinito que há por trás da tela à minha frente. Se assim for, então, um dia, não haverá demanda alguma que faça o Sr. Däniken e seus asseclas ressuscitarem novamente. Os deuses que os enterrem.

sábado, 15 de dezembro de 2018


OS DEUSES NÃO ESTAVAM MORTOS?

Acho que você percebeu a referência irônica com a famosa frase de Nietzsche "Deus está morto". Neste caso, estou falando dos deuses mesmo, aqueles, inventados lá pelos anos 1970 com a expressão que ficou célebre: "Deuses astronautas". E não é que foram ressuscitados? Voltou a circular por terras brasileiras o "escritor" Erich von Däniken, principal divulgador da fantasiosa teoria de antigas civilizações alienígenas no nosso planeta em tempos remotos. Fantasiosa e falaciosa, para dizer o mínimo. Däniken foi agora ressuscitado pela mídia, participando de colóquios e outros eventos. A história é mesmo cíclica e parece que não aprende com os erros do passado.


A febre dos deuses astronautas contagiou o mundo há quase cinco décadas. Dezenas de obras foram escritas, seminários, congressos, documentários, entrevistas, autores surgiram da noite para o dia, todos "descobrindo" alguma coisa nova como nunca antes. Então houve uma avalanche de "Pedras de Ica", "Lousa de Palenque", artefatos, desenhos, ruínas, monumentos, templos, pirâmides, instrumentos, pinturas, sítios arqueológicos, naves, textos "decodificados", uma quantidade de baboseiras sem fim, tanto quanto os flibusteiros que inauguravam a linha da "ufoarqueologia" - estudos voltados à pré-história que sugeriam a presença de seres extraterrestres no passado. 

Nunca houve visitantes ou civilizações alienígenas "avançadíssimas" no passado ou em qualquer outra época no curso da história. Tudo não passa de delírio, desvario, invenções fabulosas e imaginação fértil daqueles que carecem de leitura, saber científico, sobriedade, responsabilidade e senso crítico.  O que estes "pesquisadores" fizeram foram inferências totalmente anacrônicas, interpretando os fatos dentro da realidade da sua época, e não da realidade do período das respectivas obras. É mais fácil, se não podem ser provadas, também não podem ser desmentidas. Ou não podiam. Com tantos deuses na vitrine, esqueceram-se do "deus das lacunas", ou "argumento da ignorância", uma falha discursiva que ocorre quando uma questão é respondida com explicações que não podem ser verificadas, assentando-se na irracionalidade, na mística, na falácia ou no sobrenatural, supostamente incompreensíveis ao leigo. Ou seja, você pode "ler" os sinais do jeito que bem entender que ninguém vai contrapor. Os tempos mudaram, mas eles petrificaram como as pedras que pesquisam. Para concluir, sem meias palavras, trata-se de má-fé e sensacionalismo barato em nome de interesses escusos.

Alguns desses autores formaram uma linha de frente - Zecharia Sitchin, Robert Charroux, Peter Kolosimo, W. Raymond Drake, além de Däniken, que jogou gasolina na fogueira dos egos com o best-seller "Eram os deuses astronautas?", e as labaredas desse inferno torram a nossa paciência até hoje. O que antes era um debate polêmico plausível hoje virou sinônimo de insanidade. Mas voltemos ao ponto.

Os deuses nunca foram astronautas assim como Däniken nunca foi pesquisador de raiz. Ele nunca teve preparo científico para sustentar suas posições mirabolantes, nunca teve refinamento crítico para questionar as fontes primárias nem inteligência suficiente para perceber as besteiras que diz. Simplesmente aproveitou um filão pouco explorado, enfileirou ideias, empilhou aqui e ali algumas peças, coletou dados sem filtros prévios e se pôs a publicar livros e sair por aí vendendo suas teorias delirantes. Comercialmente foi um achado, encheu as burras de dinheiro e se deu bem. Toda essa patuscada cabia no bonde da história naquela época. Aliás, cabia de tudo. E constato, com pesar e sem surpresa, que colegas continuem incensando o Sr. Däniken mesmo mumificado como seus deuses.

Däniken, um hoteleiro suíço com veia aventuresca, foi desmentido inúmeras vezes sobre as suas descobertas e expedições, que ele mesmo confessou tê-las inventado para "ilustrar" e "motivar" a leitura de suas obras. Ele nunca esteve nos lugares que alegou ter estado, nunca pesquisou tumbas e ruínas que descreve em seus livros, nunca esteve com os cientistas que disse ter estado. Ou seja, nunca chegou nem perto de ser arqueólogo. Foi condenado e cumpriu prisão em três oportunidades, acusado de vários crimes: fraude, peculato, falsificação, falsidade ideológica e furto. No julgamento, o laudo da avaliação psiquiátrica apontou que o réu era mentiroso contumaz e um psicopata criminal. Däniken admitiu ter recorrido ao que chamou de "efeitos dramáticos" para defender seus argumentos por julgar "atos lícitos para um escritor".

Que ironia, os "viajantes do passado" desmascarando o "viajante" do presente. A Senhora Verdade, quando posta a nu, não poupa castigar os penitentes. Quando Carl Sagan declara "Não conheço livros recentes tão cheios de erros lógicos e factuais como os trabalhos de von Däniken"¹, é caso para se pensar. Lamento pelos colegas que o bajulam, mas eu não posso condescender com velhacos.

Às portas de entrar na terceira década do século 21, o mundo já não venera os deuses do passado, muito menos os deuses astronautas. O mundo rejeita o Sr. Däniken e seu sequioso séquito. Se ele precisa de dinheiro para sobreviver e pagar suas contas, que vá vender miniaturas Páscoa, reproduções das pinturas rupestres em toalhinhas de café, réplicas de alienígenas para decoração, pedras de Ica como peso de papel. Temos coisas mais importantes a fazer do que dar ouvidos a vigarices de quinta contadas por gente de segunda. Alguém precisa avisar o cidadão que seus deuses estão mortos antes que ele lhes faça companhia.

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https://www.amazon.com/The-Space-Gods-Revealed-Theories-Daniken/dp/0064650928/ acessado em 14/12/2018
¹ "I know of no recent books so riddled  with logical and factual  errors as the works of von Daniken" In STORY, Ronald. The Space-gods Revealed. Harper & Brothers Pub., 1977.
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sexta-feira, 7 de dezembro de 2018


A VERDADE NUA
La vérité qui sort de ton puits*
Jean-Léon Gérôme
Óleo s/tela, France, 1896

O texto que trago hoje é uma parábola judaica de autoria desconhecida, do século 19. É um bom momento para se refletir sobre os artifícios de sedução da Mentira, em contraste com o estado puro da Verdade.


~•~
Conta-se que um dia, a Mentira e a Verdade se conheceram. A Mentira era uma mulher belíssima, sedutora, afável, de sorriso fácil e voz suave, pele alva e macia. A Verdade, por sua vez, também tinha um belo rosto, maduro, de traços mais rudes marcados pelo tempo, voz serena e firme e olhos negros profundos.
Nesse encontro, A Mentira disse à Verdade:
– Bom dia, dona Verdade, que dia lindo, que luz maravilhosa!
Desconfiada, ciosa de seu caráter, a Verdade foi conferir; olhou para o alto e viu que o Sol reinava absoluto num céu azul sem nuvens. e que vários pássaros cantavam numa algaravia sem fim. Tendo se assegurado de que era realmente um dia esplendoroso, respondeu à Mentira:
– Bom dia, senhora Mentira, tem razão, temos um belo dia a desfrutar!
– E está muito calor também, não acha?, indagou a Mentira.
E a Verdade concordou, vendo que a Mentira estava sendo sincera.
A Mentira, então, num gesto de amizade, convidou a Verdade a banharem-se no poço do jardim. Tirou a roupa, pulou na água e disse:
– Venha, dona Verdade, a água está uma delícia.
Sentindo-se convencida diante de um convite tão gentil, a Verdade despiu-se e entrou no poço, constatando que de fato a água estava limpa e refrescante. Pouco depois, a Mentira saiu e rapidamente vestiu-se com as roupas da Verdade, fugindo sorrateiramente. Surpresa e indignada, a Verdade tentou alcançá-la mas já era tarde, ela desaparecera na floresta. Recusando-se a usar as roupas da Mentira para não manchar a sua reputação, e como não tinha do que se envergonhar, decidiu andar desnuda pelas ruas.
Porém, ao depararem com a Verdade nua, as pessoas não a encararam, desviando olhar com raiva e desprezo. Enquanto isso, a Mentira, vestida como Verdade, desfilava cheia de graça, cortejada e seguida por toda a gente, a todos enfeitiçando com seus sortilégios. A Verdade, sentindo-se preterida e ignorada, voltou ao poço para esconder-se e de lá só sair só quando fosse preciso.
É mais fácil aceitar a Mentira com ares de Verdade do que encontrar a Verdade nua.
A Verdade sai do poço armada de seu chicote para punir a humanidade.

La Vérité sortant du puits armée de son martinet pour châtier l'humanité

sexta-feira, 23 de novembro de 2018


PENSAR PARA MUDAR, MUDAR PARA CRESCER

O Bobo ao Rei Lear: Pobre Rei, envelheceu antes de ficar sábio!

O título de hoje parece conselho de auto-ajuda, mas está longe disso. Ao longo de uma vida nós passamos por várias e graduais mudanças de toda natureza - física, mental, emocional, intelectual, mas nem sempre as últimas acompanham a primeira. De acordo com estudos sobre psicologia comportamental, está acontecendo exatamente isso - o homem agindo cada vez mais como bebê chorão, mimado e carente, e não há nada mais melancólico que um adulto infantilizado, deslocado no tempo, retardado nas atitudes. Se você tem prestado atenção ao que vem sendo escrito aqui, sabe que tenho tocado nesse ponto com incansável insistência, porque a idiotia está crescendo em escala mundial em todos os estratos sociais ocupando todos os espaços Se a estupidez é uma enfermidade coletiva contagiosa, a inteligência é uma virtude pessoal intransferível.

Pensadores de primeira grandeza e de vários matizes estão preocupados com esta situação e alertam para o naufrágio social. Enquanto eles estão numa ilha de lucidez e sabedoria, nós afundamos num oceano de loucura e ignorância. Bauman diz que a nossa sociedade se liquefaz - eu diria vaporiza -, outros falam em avanço da mediocridade, cultura em declínio e assim por diante. Há quase um século Freud acendia sua lamparina para nos avisar que teríamos turbulência pela frente se não aprendêssemos a reconhecer nossas fraquezas e limitações. Optamos por focar na escuridão. Depois dele, outros soltaram a voz, gastaram tintas, tocaram trombetas. Em vão. Não ouvimos ninguém, não vemos nada, não falamos com coerência, esquecemos tudo o que aprendemos, quando aprendemos. Continuamos tolos incuráveis. 
Se pensar dói, como dizia Fernando Pessoa, pensar em mudar torna-se um martírio insuportável, mesmo que represente crescer, amadurecer. Ele dizia também que, ao compreender o pensamento do outro, eu me torno ele, e só assim posso concordar ou discordar de mimDe qualquer modo será, sempre, um aprendizado. Pensar não é uma opção, é dever, é saber, e saber é poder, Não ignore o poder do saber, o poder de mudar. Não pensar é manter a mente em permanente estado de suspensão. A discussão toda vai a patamares muito além de um simples olhar psicológico ou antropológico. Começa pelo fato de estarmos inegavelmente sozinhos no cosmo, solidão essa que amedronta e angustia, como afirma o antropólogo Ernest Becker:
A necessidade de significância cósmica é um dado antropológico estrutural diretamente ligado ao temor da aniquilação pela morte. Não queremos admitir que estamos sozinhos e que sempre nos apoiamos em algo que nos transcende, um sistema de ideias e poderes que nos sustenta e no qual estamos mergulhados.

Erich Fromm ratifica esse diagnóstico ao enfatizar que o homem não pode prescindir da ilusão de um deus protetor que o ampara nessa solitude cósmica, por sentir-se como a criança distante da casa paterna. Isso é tão profundamente verdadeiro que ele mesmo dá a chave para a mudança: O verdadeiro sentido do desenvolvimento humano consiste em sobrepujar essa fixação infantil. Mais direto impossível.

Você sabe que poderíamos ficar horas escrevendo sobre o tema, mas devo me restringir a poucos autores, o suficiente para dar um norte na reflexão. Parece que estamos presenciando um diálogo ao vivo quando Lacan corrobora Fromm: Para que a criança atinja o nível da realidadeela deve deixar o modo imaginário da visão de si e dos outros, e utilizar o modo simbólico. Outro direto no queixo. Como falamos recentemente sobre o papel dos contos de fadas na construção do imaginário infantil, e a representação do pensamento mágico influente na formação do adulto, fico por aqui. Junte tudo e o circuito se fecha.

Se reunirmos muito do que já foi escrito a respeito, a convergência vem de todas as direções. O homem vive na infância (cósmica e terrena) e não sairá dela, não haverá tempo para amadurecer. Faz parte do universo infantil o doce e encantado mundo da magia, da ilusão, da fantasia e da falta de comprometimento e responsabilidade com a vida, e o homem se apega a ela à margem do real, negando-o permanentemente de todas as formas: Quando projeta um futuro imaginário - utopia; quando se fixa no passado idealizado - retrotopia; quando crê na proteção de entes sobrenaturais - ufotopia. Ele ignora que o real é insubstituível e que em algum momento vai bater de cara com ele. Poderá ser tarde, e vai doer. 

O anjo de face rosada da fantasia afaga o coração e conforta o espírito, mas a Quimera da realidade faz sangrar o coração e rasga a carne , por isso é cruelmente mais verdadeira e convincente.

Tocqueville disse em algum momento que quando as velhas gerações se vão, as novas herdam seus vícios. O avô dos meus filhos, um homem de bastante leitura, dizia a mesma coisa, a seu modo e com peculiar sotaque: No satisfechos con nuestros errores, los ampliamos y los transmitimos a nuestros hijos. Quando o homem vive dentro de uma ficção, ele não a reconhece com tal, como na fábula dos dois peixinhos que já contei aqui. Ficção? O que é isso?

Mudar é uma atitude sempre surpreendentemente engrandecedora, renova o ar, troca a zona de conforto por horizontes sem fim, extermina ranços. Optar pela realidade áspera da vida é um desafio para gente grande, não para fracos e covardes. Não mudar é estar pronto para o desmanche e ser atropelado pelo ritmo incontrolável e inapelável das transformações. Mudar pode doer, não mudar mata. Essa reforma íntima só vale para quem está pronto. Para ajudar nessa reflexão, encerro com um extrato do pensamento do filósofo Clóvis de Barros Filho, conciso e cirúrgico:


Reinventar-se para se manter vivo. A reinvenção de si deve respeitar as características individuais e as exigências específicas do cenário em que se vive, um processo que gera uma equação de grande complexidade, que zomba de qualquer fórmula pronta. Com certeza, se a vida tem alguma chance de dar certo, é só com quem vive no comando. Terceirizar as decisões da vida, entregar as escolhas da própria trajetória a quem quer que seja - profetas ou gurus -não dá certo, a não ser para os profetas e os gurus. Terceirizar a vida é uma forma de escravidão. Tendo essa lucidez, não estando empalhado no mundo, o sujeito tem a oportunidade de diagnosticar as condições ideais da própria reinvenção. O risco é de permanecer, e permanecer acreditando ser num mundo que deixa de ser a cada segundo, é proporcionar para si as condições de um distanciamento progressivo da realidade, portanto, de uma desvalorização inapelável de si mesmo.


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FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Penguim Companhia, 2011.
BAUMAN, S. Retrotopia. Vozes, 2017.
_________. O Mal-estar da Pós-modernidade.  Zahar, 1999.
DALRYMPOLE, T. Podres de Mimados. É Realizações, 2015.
BECKER, E. A Negação da Morte. Record, 2008.
FROMM, E. Psicanálise e Religião. Livro Ibero Americano, 1966.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018


VOCÊ ESTÁ QUANDO?

Não, a pergunta não está errada, é um arranjo: Você está quando? Novamente me inspiro na excelente série Westworld devido à complexidade da trama, tecida pelos fios das ciências sociais e da psicologia do comportamento. O humano em xeque. Você está quando? é uma variação da pergunta da personagem que perde a noção de qual tempo está vivendo - Eu estou quando? Uma indagação instigante. A narrativa não transcorre num tempo único linear, mas em várias timelines simultâneas e entrelaçadas. Para ilustrar, imagine-se percorrendo um labirinto de espelhos onde cada imagem sua refletida o coloca em tempos existenciais diferentes! Múltiplos "você" num só lugar ao mesmo tempo, mas em épocas distintas. É nesse enredamento espaço-temporal que Westworld desenvolve sua história. É por onde vamos caminhar agora.

Eu sei que você responderá que vive no seu tempo, ligado nos acontecimentos, no jogo político, na agitação urbana e mundial, etc., mas não é disso que estou falando. O ponto é outro. Todos nós vivemos em duas linhas do tempo: a do corpo físico, do cotidiano, do trabalho, do lazer, do relógio, enfim... e a outra, a mental, aquela que orienta a escolha dos valores, que indica as ações nas quais acreditamos, o sentido das crenças, a visão de mundo e muito mais. É essa que me interessa.

Já vai longe o tempo das fadas, magos e bruxas; astrólogos, cartomantes, profetas, gurus e oráculos são tão anacrônicos quanto lobisomem, sereias, sílfides, faunos, anhos, zumbis e vampiros, uma constelação de personagens que ou pertencem ao folclore ou inspiram o cinema, assim como alienígenas, monstros e super-heróis são um rico filão para a ficção científica. Cristais e pirâmides viraram objetos de decoração; superstições, simpatias, rezas e mandingas alimentam crédulos, inseguros, carentes e a próspera indústria de quinquilharias e penduricalhos.

Não guarde sementes de romã na carteira, elas secam e não atraem dinheiro algum. Trabalhar e poupar são mais eficazes. Não se pode mais correr atrás de utopias e plantar delírios; não reze para seu filho ir bem nas provas - faça-o estudar! Não espere que os deuses acabem com os problemas do mundo - quem os criou que os resolva. É triste constatar que tanta gente esclarecida ainda caia nessa esparrela de inferno astral, comunicação com espíritos, anjos da guarda, energias cósmicas e todas essas coias que habitam a esfera do pensamento mágico. Deixe os devaneios para artistas, escritores e poetas.

Crendices, fantasmas e presságios povoaram a vida dos nossos avós - dos nossos avós, mas o tempo agora é outro. O saber e a informação estão disponíveis em todos os lugares a qualquer hora, um clique e o mundo é todo seu. A ciência derruba preconceitos, desvenda mistérios, vai à raiz em busca de conhecimento para entregá-lo em bandeja de prata a você. Não há mais lugar para a ignorância, o retrocesso e o obscurantismo. Não se pode mais viver fechado em cárceres mentais alienantes. O real que bate à nossa porta o faz com a força de um furacão, mas não enfrentá-lo e esconder-se atrás de entidades abstratas é sinal claro de frouxidão e imaturidade. Crianças podem não querer crescer mas adultos precisam crescer. Os sonhos de infância dormem aconchegados num recanto da memória e da história, e lá devem ficar. 

Refugiar-se no passado é negar o agora, é encontrar-se em perpétuo deslocamento, fora do tempo - acronia, portanto, entrevado no marco zero da existência - atopia. Pendurar-se nos fios imaginários de uma dimensão supra-real é expor, a um só tempo fraqueza estrutural, insegurança psíquica, embotamento da análise crítica, miopia intelectiva, heteronomia, resignação, desorientação, covardia e apequenamento do espírito. Não é essa a essência genuína do Ser, mas é a do sujeitoaquele que se sujeita, se curva, ajoelha, obedece, conforma.

Não pense antiquado, não viva conceitos ultrapassados, não se desconecte com a autêntica experiência de viver o presente. Quem caminha por mundos paralelos - o real e o imaginário, o concreto e o fictício - não caminha por nenhum, não sai do lugar. Quem não se projeta no mundo real se perde nos ventos de um mundo inexistente. Agora que você entendeu tudo, a pergunta é mais direta: O tempo mental no qual você vive está no compasso do mundo à sua frente? Acho que deu para perceber que por trás dessa pergunta e nas entrelinhas do texto há um convite à reflexão. Você está quando?

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

ORAÇÃO À DIGNIDADE DO HOMEM

Com os contornos poéticos de um louvor em Oratio Hominis Dignitate (Florença, 1486), Giovanni Pico della Mirandola desenvolve um diálogo entre Deus e Adão, peça que se tornou uma obra-prima do humanismo renascentista e pérola do moderno. É a introdução de "Conclusões Filosóficas, Cabalísticas e Teológicas" em 900 teses a serem debatidas em público com intelectuais de toda a Europa diante da Cúria Romana. 

Desconheço outro texto que, com tanto lirismo, tão bem pudesse oferecer o mais claro entendimento sobre liberdade e responsabilidade, duas das vias arteriais por onde flui a seiva deste blog e pautas das últimas edições - ou de quase todas. Uma belíssima e profunda reflexão, um denso tratado sobre a autonomia intrínseca do Ser. Todo o texto fala direto ao coração, mas chamo a atenção para os parágrafos finais, sem desmerecimento os demais. Leia, portanto, com vagar e em silêncio, como se estivesse mesmo a orar. 

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Eu li, ó veneráveis Pais, nas fontes árabes, que Abdala, o sarraceno, interrogado sobre o que, nesta espécie de teatro que é o mundo, despertava a máxima admiração, respondeu que não via nada mais maravilhoso do que o homem. E com as suas palavras concordam as de Hermes Trismegisto: “Grande milagre, ó Asclépio, é o homem!”

De minha parte, quando indagava o sentido de tais ideias, não me satisfaziam as diversas coisas que muitos afirmam sobre a excelência da natureza humana: que o homem é o vínculo de comunicação entre todas as criaturas, familiar às superiores e soberano sobre as inferiores; que pela perspicácia dos seus sentidos, pela investigação da sua razão e pela lucidez de sua inteligência, ele é o intérprete da natureza; que é o intermediário entre a realidade eterna e o fluxo do tempo, e, como dizem os persas, a união, ou antes, o hino matrimonial do mundo, pouco inferior, segundo o testemunho de Davi, aos anjos.

Grandes coisas estas, mas não as mais importantes, não a ponto de se arrogarem a bom direito o privilégio da nossa máxima admiração. De fato, por que não admirar ainda mais os anjos e os beatíssimos coros do céu? Mas, finalmente, creio ter compreendido porque o homem é de todos os seres vivos o mais abençoado e portanto o mais digno de admiração, e também qual é a condição que por sorte lhe toca na ordem universal, invejável não somente para os animais, mas também para os astros e os espíritos ultramundanos.

Coisa incrível e maravilhosa! E como seria diferente, se é precisamente por causa dela que o homem é estimado e proclamado um grande milagre e um ser extraordinário! Mas que coisa é esta? Escutai, ó Pais, com ouvidos benignos, e, por vossa humanidade, sede indulgentes para com esta minha exposição. O Pai supremo, Deus arquiteto, já havia plasmado esta morada do mundo tal como a vemos, templo augustíssimo da divindade, segundo as leis de sua arcana sabedoria. Decorara as regiões supra-celestes com as inteligências espirituais; povoara as esferas etéreas com as almas eternas; preenchera as partes torpes e abjetas do mundo com uma multidão de animais de toda espécie.

Mas, consumado o trabalho, o artífice quis que houvesse alguém capaz de apreciar o significado de tamanha obra, que soubesse amar sua beleza e admirar sua imensidão. Por isto, terminadas todas as coisas, como atestam Moisés e Timeu, ele pensou finalmente em criar o homem. Entre os arquétipos, contudo, não havia mais nenhum com que pudesse modelar a nova progenitura, não havia em seus tesouros nada que pudesse adicionar à herança do novo filho, nem havia dentre as moradas do mundo nenhuma na qual pudesse habitar aquele que haveria de contemplar o universo.

Tudo estava completo; todas as coisas distribuídas entre as ordens superiores, as intermediárias, e as ínfimas. Mas seria indigno da potência paterna fracassar em sua derradeira criação, como se fosse incapaz de gerar; indigno de sua sabedoria vacilar por falta de conselho em algo tão necessário; indigno do seu amor benevolente que aquele ser destinado a louvar a divina generosidade em todas as coisas fosse, ao olhar para si mesmo, obrigado a condená-la.

Finalmente, o Supremo Artífice estabeleceu que aquele a quem não pudera dar nada de propriamente seu, haveria de ter em comum tudo o que pertencesse a cada um dos outros seres. Assim ele tomou o homem, criatura de imagem indefinida, e, posicionando-o no centro do mundo, disse:

Não te dei, ó Adão, uma morada fixa, nem feições próprias, nem dons particulares, a fim de que seja lá qual for a morada, a feição ou o dom pelos quais vieres a optar, tu, através de teus próprios juízos e decisões, os conquistes e possuas. A natureza dos outros seres, uma vez definida, é constrangida entre os limites prescritos pela nossa lei. Tu porém não és constrangido por nenhum limite, a fim de que através de teu livre arbítrio, nas mãos do qual te pus, tu mesmo o definas. Coloquei-te no centro do mundo, para que possas observar mais facilmente tudo o que existe no universo. Nem celeste nem terreno, nem mortal nem imortal te criamos, a fim de que possas, como um livre e extraordinário escultor de ti mesmo, plasmar a tua própria forma tal como a preferires. Poderás degenerar-te nas formas inferiores, que são animalescas; poderás, segundo a tua decisão, regenerar-te nas formas superiores, que são divinas.

Ó suprema liberalidade de Deus Pai, suprema e admirável felicidade do homem! A ele foi dado ter o que desejar, ser o que bem entender. Os animais, logo que nascem, diz Lucílio, trazem consigo do útero de sua mãe tudo aquilo que possuirão. Os espíritos superiores se tornaram, desde o princípio ou logo depois, aquilo que serão nas eternidades perpétuas. Mas ao nascer o homem, o Pai lhe infundiu todos os tipos de sementes e germes de todas as espécies vivas. E elas hão de crescer naquele que as tiver cultivado e nele darão seus frutos. Se forem vegetais, tornar-se-á uma planta; se sensuais, se animalizará; se racionais, se transformará num animal celeste; se intelectuais, será um anjo e filho de Deus. E se, não contente com o destino de nenhuma criatura, ele se recolher no centro da sua unidade, poderá se tornar um só espírito com Deus, na escuridão solitária do Pai que está além de tudo, transcendendo assim a todas as criaturas.

Quem não se admirará com este nosso camaleão? Ou melhor, quem haverá de se admirar mais com qualquer outra coisa? Não sem razão o Asclépio o ateniense disse nos rituais secretos que o homem é simbolizado por Proteu, por causa de sua natureza mutante e metamórfica. Daí as metamorfoses tão celebradas entre os hebreus e os pitagóricos. De fato, a mais secreta teologia dos hebreus ora transforma o santo Enoc em anjo da divindade, que chamam Metatron ora em outros espíritos numinosos.

E para os pitagóricos os homens celerados são deformados em bestas e, a se crer em Empédocles, também em plantas. Imitando-os, Maomé repetia frequentemente e com razão que quem se afasta da lei divina se torna um animal. E estava certo, pois não é a casca que faz da árvore o que ela é, mas sim a sua natureza entorpecida, incapaz de sentir; não é o couro que faz o jumento, mas sua alma bruta e sensual; não é corpo circular que faz o céu, mas a reta razão; não é a separação do corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual.

Se virdes algum servo do seu próprio ventre, rastejando pela terra, não é um homem que vedes, mas uma planta; se virdes alguém que vive em vãs fantasias da imaginação, como que cegado por Calipso, e que, sucumbindo às seduções deste encanto, é escravizado por seus sentidos, é uma besta que vedes, não um homem. Se virdes um filósofo que discerne todas as coisas com a reta razão, venerai-o, é um animal celeste, não terreno. Se virdes um puro contemplativo, indiferente ao corpo, imerso nas profundidades de sua mente, então não é um animal terreno nem celeste que vedes, mas sim um espírito superior revestido de carne humana.

Quem então não se admirará com o homem? Ele que, não sem motivo, é nomeado nas sagradas escrituras mosaicas e cristãs ora com o nome de todos os seres de carne, ora com o de todas as criaturas, uma vez que ele mesmo plasma, modela e transforma seu próprio aspecto naquele de todos os seres de carne, e sua própria mente naquela de toda criatura. Por este motivo o persa Evante, ao explicar a teologia caldeia, escreve que o homem não possui nenhuma imagem inata, mas muitas exteriores e adventícias. Daí o dito dos caldeus de que o homem é um animal de natureza variada, multiforme e inconstante.

Mas a que serve tudo isso? Serve para que compreendamos que, uma vez nascidos com a potencialidade de sermos o que quisermos, devemos tomar o máximo cuidado, a fim de que depois não digam que, tendo recebido a honra, não nos apercebemos e nos reduzimos a nós mesmos a bestas e estúpidos jumentos. Antes, lembremo-nos daquele dito do profeta Asaf: “Sois deuses e filhos do Altíssimo”, e não abusemos da indulgentíssima liberalidade do Pai, tornando deletéria a salutar liberdade de escolha que ele nos deu.

Que uma santa ambição invada a nossa alma, de modo que, não contentes com as realidades medíocres, desejemos somente as superiores, e nos empenhemos com toda força para conquistá-las - pois podemos, se quisermos. Desdenhemos as coisas da terra, ignoremos as do céu e, recusando tudo o que é deste mundo, voemos rumo à corte ultramundana junto à divindade eminentíssima. Lá, como nos revelam os mistérios sagrados, os Serafins, os Querubins e os Tronos ocupam os primeiros lugares; e, relutantes em nos inclinarmos e incapazes de suportar o segundo lugar, emulemos a sua dignidade e glória. Não seremos inferiores a eles, se assim o quisermos.

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Giovanni Pico della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem. Fi, 2015.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A LUZ ESTÁ SE APAGANDO

É melhor reinar no inferno
do que servir no paraíso.
Paradise LostJohn Milton
Inglaterra, 1667

Estudos recentes realizados por pesquisadores americanos e europeus detectaram um quadro alarmante: A humanidade está emburrecendo. Sendo mais claro, os habitantes do planeta estão ficando cada vez mais burros! Um fato irreversível e irremediável ao considerarmos as causas desse flagelo são muitas - geográficas, culturais, históricas, que se acumulam há décadas e juntam-se às novas, não havendo nada que possamos fazer. Nada? Nada! Realidade cruel, algo como uma aluvião vindo em nossa direção e não ter por onde se proteger.

O desastre é inevitável. Vejo uma situação gravíssima a médio prazo e não confio que a humanidade encontrará uma saída porque ela é autora e executora da própria ruína, de um jeito ou de outro. A inteligência é pontual e singular, ao passo que a burrice é sistêmica, incendiária e pestilenta. Burrice é algo próprio de gente despreparada para o diálogo, incapaz de entender o mundo e imatura para a  vida. Um reinado quimérico se avizinha, a besta nem tão adormecida já despertou Perdoe por mais um texto longo, mas é impossível ser breve ante a seriedade do tema.

Um leitor, comentando o post da semana passada, sugeriu a leitura de uma crônica**do filósofo Luiz Felipe Pondé em cima da obra "Irmãos Karamazov", de Dostoiévski: "Se Deus não existe, tudo é permitido"? Tão apropriada que reproduzo um trecho:
A razão de Ivan Karamazov (muito próxima da que o ceticismo e a sofística conhecem) percebe a vacuidade de qualquer imperativo ético universal: O mundo é estilhaçado pela liberdade que a morte nos garante. Sem Deus, perde-se a forma absoluta do juízo moral: Estamos sós no universo como animais ferozes que babam enquanto vagam pelo deserto e contemplam a solidão dos elementos. A morte, que devolverá a humanidade ao pó, é o fundamento último do nosso direito cósmico ao gozo do mal.
Ao mesmo tempo em que o conhecimento explode no mundo, o homem o despreza porque está ficando burro, assim, sem meias palavras. As pesquisas revelam que os níveis de QI decrescem à taxa média de 3.5% a cada década em todo o mundo e em todos os setores da vida: educação, economia, esportes, direito, religião, política, cultura, ciência, tecnologia, comunicação... Um câncer que se alastra sem controle, embora, para alguns especialistas - e me inclino a concordar - é um processo induzido, isto é, há muito tempo as bases da educação, da formação e da informação têm sido solapadas para abrir espaço ao avanço corrosivo da estupidez. Comentando o post da Quimera, um leitor enviou uma frase de Nelson Rodrigues bem a propósito: "Os idiotas vão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade; eles são muitos", ao que eu completaria "e estão proliferando".

Já outra leitora (parece que conversa da semana passada deu resultado) citou a lenda grega do guerreiro Belerofonte que, montando Pégaso, destruiu a temível Quimera. Mas a lenda não conta que a besta é imortal; engana-se quem pensa tê-la vencido; paciente, mimética, mutante, não se esconde e quando menos se espera dá o bote, por vezes mortal. Pois aí está ela de novo e agora com enorme vantagem. Enquanto a inteligência está na serena inteireza da alma, a burrice na turbulenta cisão da mente. 

A vantagem, prenúncio de desastre iminente, é que ela se infiltrou e agora está astuta e estrategicamente incrustada em todas as camadas sociais, da professora ao ministro da suprema corte, do comunicador ao doutor, do taxista ao cientista, do bancário ao banqueiro, do atendente ao presidente, do capelão ao capitão. Nada escapa aos "braços pegajosos" do monstro que está solto e com apetite. Não demos ouvidos aos alertas da história e agora não há como detê-lo.

Para Mark Bauerlein, o olhar recai sobre a Era Digital e as implicações preocupantes no universo dos jovens e, em razão disso, no futuro: "O futuro intelectual dos Estados Unidos parece sombrio"*, declara o professor da Emory University. Ele tem razão. A pesquisa mostra que os candidatos à recente eleição americana e ex-presidentes fizeram pronunciamentos em um nível verbal equivalente a crianças de 7 a 11 anos, de modo a serem entendidos pelo grande público! Percebeu quão crítica é a situação? Serem entendidos pelo "grande público"!

A internet é algo ainda muito movo e difícil medir seu impacto sem incorrer em falhas de avaliação; ao lado dos inegáveis benefícios, há uma sombra malévola que não pode ser ignorada. "As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis" preconizou Umberto Eco. Ainda dentro do ambiente digital, a velocidade e a quantidade de informação (geralmente sem filtro) não dão tempo para sua reflexão e interpretação; Bauerlein chama de go-go-go (vamos, vamos, vamos) ou "gratificação instantânea", resultando numa "perda coletiva de contexto e história, uma negligência de ideias e conflitos duradouros". Jung disse a mesma coisa, na primeira metade do século passado: "Ao magnífico desenvolvimento científico e técnico de nossa época, corresponde uma assustadora carência de sabedoria e introspecção". Continua atual.

O estudo de Bauerlein é um recorte bastante identificado com os de outros países como Holanda, Dinamarca, China, Portugal, Espanha e Inglaterra, por exemplo, num total de 14 levantamentos independentes. Uma das conclusões é que os jovens americanos "perderam totalmente o respeito pelos livros e pela literatura". Os estudos indicam também que esse emburrecimento começou a ser demarcado a partir dos últimos 40 anos, acelerando seu crescimento no início deste século, período em que a internet ganhou força. A correlação não é subjetiva. 

Não precisamos nem garimpar, há uma colônia de néscios e cretinos orbitando sôfregos e trôpegos à nossa volta, na política, no esporte, no escritório, nas redes, na reunião do condomínio, no supermercado, na academia.... Ânimos acirrados, nervos crispados, dentes rangentes, "punhos cerrados", opiniões impostas a ferros e berros; onde a inteligência não opera, porque parece ter perdido seu significado, a ignorância prevalece acompanhada de sua irmã, a força bruta. Nem sempre a palavra é necessária, basta o gesto, o olhar ou o esgar. O imbecil coletivo firmado por Olavo de Carvalho está nas praças, mostra a cara e assina embaixo. Minúsculas quimeras semoventes multiplicam-se contaminando o ar que respiramos, a terra que cultivamos, a aldeia que habitamos, sem trégua e sem limites.

Este blog, como qualquer outro, atua no espaço virtual, então você compreende o tamanho da minha responsabilidade e o cuidado que devo ter na hora de expor ideias, oferecendo sempre conteúdo com embasamento sólido bebido na fonte, checando informações, cruzando dados. Estamos falando das duas pontas do problema: as cavalgaduras, bestas ao cubo que aumentam o volume do alarido para serem - e são - ouvidas do outro lado pelos tolos nem tão incautos.

Não tenho dúvida alguma, os fatos mostram claramente que o atual momento da nossa civilização está escancarando o que talvez devamos reconhecer como nossa verdadeira natureza - estúpido, hostil, belicoso, sádico. Para Horkheimer, "a crise atual da razão consiste basicamente no fato de que, até certo ponto, o pensamento que se tornou incapaz de conceber tal objetividade em si, ou começou a negá-la como ilusão. O resultado isso é o desterro da razão". Em 1930, Freud já apontava tais sintomas e isso está se confirmando com força porque a máscara - a persona é a mesma que oculta a (verdadeira) face:

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.

Não tem como não ser repetitivo: A razão nos faz humanos, sua falta leva-nos ao limiar da bestialidade: Semi-humano, comportamento de manada seguindo a maioria ou o líder, mero viver instintivo de sobrevivência e procriação, irracionalidade à flor da pele. A consciência residual é o último bastião para não ultrapassar os limites da barbárie, mas até ela - a consciência -, ao que tudo indica, está se esvaindo.

As novas tecnologias dispensam esforços físicos e mentais; a memória perde feio para os googles da vida; a capacidade de ler, refletir e interpretar tornou-se monocromática e o diálogo, monossilábico; preenchemos nosso vazio com hiperatividade, múltiplas tarefas, poli-emprego, compulsão pelos smarts e agenda lotada; amigos antes presenciais são agora virtuais, as conversas, os abraços, olhares e toques viraram zaps, emoticons, selfies e likes. Semi-humanos em direção ao pós-humano ou ao sub-humano? Não é apenas o isolamento entre sujeitos, mas do sujeito com o mundo, com a realidade, com a consciência, com o ser. É o indivíduo em seu próprio vazio.

Vou deixar algumas questões no ar, ao mesmo tempo em que sutilmente me atrevo respondê-las: Haveria alguma conexão entre a 'digitalização' do mundo, a invasão das tecnologias como extensão acessória do corpo e a crescente infantilização do homem com o emburrecimento da humanidade? Seria a tecnologia o grande projeto narrativo ou a nova "utopia" para o século 21? Não é apenas uma crise da razão, mas de muitas crises - social, econômica, cultural, institucional, científica, formacional. Há uma tempestade em curso e não sei como vamos enfrentá-la.

Quem poderia e deveria tê-la evitado não fez porque não quis. Aplausos! É a mutilação da inteligência, das ideias, da criatividade, do pensamento, da linguagem, do bom senso, da dignidade, da ética e da moral, da civilidade e, acima de tudo, das responsabilidades. As vozes do  conhecimento abafadas pela ascensão  do  zurro  dos  orelhudos. Estão trancando as portas e jogando as chaves fora. É outra espiral do silêncio em formação? De volta a Nelson Rodrigues, arguto e cáustico observador do cotidiano, por isso mesmo indigesto: "Antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas". É o mesmo sentimento expresso por Luther King: "O que me preocupa não é a gritaria dos ruins, mas o silêncio dos bons".homo se tornando húmus? Mais que uma inversão de valores, é o colapso das estruturas formadoras do caráter humano. 

Somos todos responsáveis pelas nossas ações mais em relação ao outro, ao próximo, do que a nós mesmos, um imperativo kantiano reescrito por Jonas: "Agir de tal forma que os efeitos das nossas atitudes estejam em acordo com uma vida autenticamente humana". Um homem dentro si, o sujeito humano íntegro capaz de avaliar a real dimensão do seu gesto e a ressonância da sua voz, e de introspecção crítica e reflexiva não submetida a qualquer operador externo. Você sabe para quem é o recado. Para entender o "conjunto da obra", recomendo ler os post listados ao final.

Responsabilidade só é possível àqueles minimamente livres, com autonomia como regra de conduta consciente. Já falei aqui e reforço com veemência redobrada: A história tem seu preço e cobra caro, com juros! Convém levar a sério também a advertência de Dante: "Os lugares mais quentes do inferno são reservados aos que, em temos de crise, mantêm-se neutros". Leia a epígrafe de Milton com a ácida ironia do autor. Não tenho capacidade para  medir a escuridão dessa longa noite, a extensão do túnel e se haverá uma luz no fim e o inchaço dessa bolha não epistêmica. Também não sei se são as bestas do apocalipse. Em um futuro assombrado pela invasão dos novos "bárbaros urbanos", pelo esforço no combate às sandices recorrentes me permito reescrever o dito popular: O penúltimo a sair, por favor, acenda a luz novamente. Ou teremos que esperar alguém recomeçar tudo dizendo "Faça-se a luz!".



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Carl G. Jung. Psicologia e ReligiãoVozes, 1978.
Max Horkheimer, O Eclipse da Razão. Centauro, 2002. 
Sigmund Freud. O Mal-estar da Civilização. Obras completas v. 21. 
Mark Bauerlein. The Dumbest Generation. Tarcher/Penguim, 2017.
Hans Jonas. O Princípio da Responsabilidade. Contraponto, 2015.
* http://www.latimes.com/entertainment/la-et-book5-2008jul05-story.html
Edward Flynn,  The Negative Flynn Effect: A systematic literature review. Intelligence,  v. 59, nov/dec 2016, pp 163-169. http://www.gwern.net/docs/iq/2016-dutton.pdf  acessado em 01/10/2018. 
** http://forum.cifraclub.com.br/forum/11/152008/   acessado em 5/10/2018