Obras

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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O ABRAÇO DA QUIMERA

Trauma original. Mito fundador da narrativa ficcional. Essa frase, desde a penúltima parte da série sobre vida no universo, me fez pensar por vários dias. Pode não representar muito para você, pode soar banal, mas é a pedra lapidada de um estudo que atravessa três décadas. Para ser justo e exato, tudo começou lá pelo final dos anos 1980, quando trocava ideias com o colega e amigo Ubirajara Rodrigues. Em dado momento, ele mencionou algo que foi imediatamente capturada por mim, mas aquietado sem que voltássemos ao assunto: "A premissa maior é a comprovação de vida inteligente no universo". Sei que hoje isso é óbvio demais, mas no contexto da época e daquele momento em particular, posterguei o estudo da questão, muito embora, e isso também é verdade, eu já começava a apontar o nariz para outra direção - mitologia -, onde as estruturas narrativas com a ufologia pareciam se encontrar, e onde a origem da vida - mitos de criação - era um dos tópicos. Criação, origem, início de tudo, vida no universo. Tudo se encaixa.

Vida inteligente abundante no universo, civilizações que nos visitam e nos guardam. Como tais não existem, e não mesmo, irrompe o imaginário, e a peça de ficção segue o roteiro clássico dos "irmãos cósmicos protetores", e o teatro ufológico se organiza com cenário, figurino, atores, figurantes, bilheteria, plateia e adereços característicos da tragicomédia pastelão. Quando desconstruímos esse mito e lançamos as bases para uma reflexão sobre a mitopoética, sabíamos, de algum modo, que a nau das ilusões não tardaria a zarpar. O mito fundador aí está, a narrativa ficcional aí está, as causas e as implicações aí estão. A solidão e o silêncio acompanharão essa barca em sua longa travessia levando a bordo a palavra de Baudelaire: 
As ilusões talvez sejam em tão grande número quanto as relações dos homens entre si e entre as coisas. E, quando a ilusão desaparece, quando vemos o ser ou o fato tal como existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, metade dele complicada pela lágrima da fantasia desaparecida, metade pela surpresa agradável diante da novidade, diante do fato real.
Nestes últimos quatro anos você me acompanha nessa cruzada (da qual nem os amigos são poupados de umas espetadas), sabe o que penso, sabe como me posiciono e sabe porque escrevo o que escrevo do jeito que escrevo. Não sei e não tenho como saber o quanto meus textos influenciam suas reflexões, nem se influenciam ou se têm algum efeito posterior. Não importa como você me lê, importa o que faz com a leitura que faz. Então, tomo como meu o conselho de Dante: "Abre tua mente ao que te revelo e retém bem o que te digo, porque não é ciência ouvir sem guardar o que se escuta". Não esqueça que cada postagem não acaba nela mesma, nem peça de quebra-cabeças nem folha morta, são como pratos cheios do  alimento prometeico - o fogo dos deuses, o conhecimento histórico e filosófico trazido da fonte mais pura.

Ufotopia, a utopia dos Ufos, a fantasia, a fábula, a farsa, a falácia, autêntica Quimera -  a criatura mítica híbrida medonha que devora a consciência dos homens. Não entre nessa fossa lúgubre guardada por gárgulas, homúnculos e faunos, uma vez lá só se encontra a saída com muita vigilância, dedicação coragem. Lembra disso? Tenho feito o possível - quase sempre esbravejando - para evitar que você caia nos braços pegajosos dessa coisa nefasta e decrépita e tentáculos traiçoeiros das crendices paridas do pensamento mágico inoculado pelas letras do realismo fantástico, ou maravilhoso, insólito, extranatural, suprarrenal,  das manifestações meta-empíricas¹.

Essa escola literária surgiu nas primeiras décadas do século passado, ganhando força no final dos anos 1950 na América hispânica, mas principalmente na América Latina, juntamente com as novelas de ficção científica e, não por coincidência, o surgimento dos movimentos milenaristas, do messianismo e da filosofia oriental, da cultura do "transcendental", do esoterismo e da New Age numa miscelânea esdrúxula Não vou entrar no quadro histórico do pano de fundo, nos ensaios psicológicos, simbolismos e metáforas nem na massa autoral, que ficam para outro momento.

Ambas as correntes literárias - ficção científica e realismo mágico - unem o mundo fantástico do imaginário ao real do cotidiano em um contexto de verossimilhança: O incomum, o absurdo e o non sense - levitação, entes sobrenaturais, dragões, animais falantes, viagens no espaço-tempo, batalhas interestelares, encontros com civilizações galácticas e todo um repertório de inegáveis representações sócio-culturais que incluem feitiços, milagres, bruxarias, superstições e magia. Acho que você notou parentesco com o universo ufológico.

Não se deixe mais enganar com tanta bobagem disseminada mundo afora por um bando de incompetentes, nem com a mídia popularesca e a internet infestadas de material embusteiro sobre Óvnis e extraterrestres, perpetrado por gente com elevado déficit cognitivo e intelecto empobrecido. Apesar do que diz Santo Agostinho, "Não sacia a fome quem lambe pão pintado", os caçadores de homenzinhos verdes persistem em sua vã perseguição, assim como aqueles que se ajoelham endeusando caricaturas grotescas de 'mestres', 'líderes', 'professores' e 'gurus', de caráter duvidoso, ególatras, raciocínio de batráquio e cultura de mula, vítimas e personagens decadentes de seu próprio analfabetismo espiritualDessa gente eu tenho visceral repugnância e do resto, pena.

É vista como impostura intelectual quando a estupidez (ou desonestidade, ou ambas) vem investida de uma suposta legitimidade conferida por uma pretensa autoridade, e crime de lesa-consciência* quando tal autoridade é notório farsante ou apresenta reais sintomas de psicopatia. Por isso, cuide da sua inteligência e sanidade ficando por aqui, onde estará sempre em companhia dos melhores autores, pensadores e eruditos que enriquecem nosso saber. Fuja do pensamento mágico, do realismo fantástico e outras feitiçarias que não levam a lugar algum, retardam o crescimento e emparedam o intelecto. Fique a bordo desta minha barca para não se afogar nas águas da burrice que aumentam a cada dia (é fato comprovado, está crescendo mesmo!).

* Expressão minha, a meu ver bem adequada.


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¹ FURTADO, F. A Construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa, 1980.
TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo. 2008.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O PESCADOR D
E ILUSÕES

Muitos enfraquecem para que um se fortaleça.
Étienne de la Boétie
Discurso da Servidão Voluntária



Semana passada uma revista de circulação nacional deu destaque de capa matéria sobre Sri Prem Baba*, codinome "espiritual" de Janderson de Oliveira, o guru sob holofotes no palco do ezoterismo tupiniquim (z demarca a farsa). O vilão da vez não vingaria não fosse o incenso barato dos desvalidos e dos tontos de sempre - políticos, artistas, "intelectuais", celebridades... Fumacê rima com namastê, e o dano cerebral é o mesmo.

Estou constantemente apontando os farsantes que usam e abusam da fé alheia com suas atividades duvidosas, sempre prontos como ratos à espera o melhor momento de fincar os dentes sujos no pescoço alheio. Nada impede de pensarmos estar diante de um "endoterismo" caviloso. Justamente sobre este assunto, aliás, posso adiantar que um texto pronto - O abraço da Quimera - que deu lugar a este pela matéria da revista que veio a calhar. "O abraço..." virá na semana seguinte. Babacas babam pelo Baba não é de hoje. Ao disparar minhas críticas fora da ufotopia (astrologia, espiritismo, profetas, canalizações, terapia quântica, vidas passadas, anjos, viagem astral, oráculos em geral e místicos de fundo de quintal), alguns se arrepiam, outros pedem cautela, mas a maioria se indigna por ver maculado o santo nome de seus mentores Não vou me omitir nem me esconder na hora de marcar a ferro quente essa turma de velhacos.

Esse é o estereótipo do 'mestre', com pequenas variações: oratória caprichada, simpático, afável, sorriso largo, voz pausada em tom baixo; aspecto respeitável quase paternal, gestos estudados, barba e cabelos longos grisalhos cuidadosamente cultivados sugerindo 'bagagem existencial', túnica longa despojada; exalam aromas e exercem uma liturgia cênica de impacto. Tudo calculado. De forma bem dissimulada, sobram empáfia e vaidade sob a aparência de humildade, arrogância sob as vestes de uma pretensa sabedoria, incisiva sedução sob o verniz de uma retórica fluente e amaciante. Quero lembrar a etimologia de sedução: do latim seducoseducio, seducere - afastar, separar. apartar do caminho, enganar através de um jogo de aparências. Toda sedução contém laivos de magia, que só terá efeito se o seduzido estiver inserido no tecido social - a rede simbólica ao qual pertence. Lévi-Strauss dizia que a eficácia da magia implica na crença da magia.

Lembro-me, porque vi de perto, quando, no início dos anos 1990, um postulante a guru meio enrustido anunciava seu projeto mirabolante de sociedade alternativa em comunidades rurais conhecido como Projeto Alvorada. Dado o fracasso, renomeou Projeto Aurora. Com perfil talhado para a 'missão', envolveu muitos com propostas de uma vida pautada na "nova era"- agricultura familiar atóxica, alimentação natural, terapias alternativas, energia sustentável, meditação, medicina homeopática e derivadas e todo aquele combo plasmado na Era de Aquário. Fundou sua própria doutrina, Amasofia, a "cosmovisão holística" e, obedecendo a cartilha, também adotou um nome espiritual porque "pega bem" e combina com o figurino, Ben Daijih. O detalhe é que Luiz "Ben Daijih" Gonzaga divulga seus ensinamentos, 'revelações', mensagens e livros sob orientação mediúnica de... extraterrestres!

Muitos conhecem outros célebres gurus forjados no caldeirão esotérico da New Age como Sai Baba, Ravi Shankar e Rajneesh, por exemplo. Alguns levam os adjetivos yogi, mestre, líder espiritual, venerável, sua santidade e outros, para dar uma aura (sem ironia) de 'pureza' e elevação moral, quando não passam de "espiritualistas carnívoros". Não entendeu? Explico: Exortam o "Eu Maior", pregam amor e o "cainho do coração", mas estão de olho é na carne do baixo ventre e em outros 'filés' - sexo, luxo, ouro, ostentação, carros, jóias, terras, imóveis e grana, muita grana em bancos oficiais e não oficiais.

Quando desmascarados ou acusados de conduta amoral ou improbidade, sem perder a serenidade se dizem "vítimas" de inveja, deslealdade, incompreensão e rancor daqueles que julgavam devotos. Foi exatamente esse o teor da mensagem** gravada pelo guru brasileiro, "filho do universo, irmão das estrelas", "em meio à floresta que é a minha raiz" (forçou a barra o paulistano da periferia). Embora diga que ficou "vários dias em silêncio, meditando, fragilizado, mergulhado na escuridão para entender o que estava acontecendo", a gravação foi feita no mesmo dia em que a revista chegou às bancas, o que faz supor ter sido feita logo após uma reunião com sua assessoria de comunicação. Discurso vazio e evasivo, com obviedades, tergiversação, linguagem banal e raciocínio precário, redundante, entonação ensaiada, palavras escolhidas, performance pífia nada condizente para um 'líder espiritual'; transbordam hipocrisia e falsidade; falacioso, sem compromisso com a verdade, sem credibilidade. Limitou-se a acusar seus acusadores,  embromou, enrolou, não explicou e piorou o que já estava ruim. Não se esperaria outra coisa de alguém tão fraco, primário, limitado, imaturo, inseguro e vulnerável.


Ilustração: Angeli

Só na Índia, que concentra o maior número de líderes espirituais per capita, a roda da fortuna dos gurus movimenta uma máquina de poder extensiva e expansiva milionária, da ordem de centenas de milhões de dólares anualmente, moldando um portentoso império: Ashram, a casa dos gurus hindus, costuma ser construída em um terreno com centenas de hectares; escolas, unidades médicas, emissoras de rádio e TV; grandes lojas (nada de modéstia) atendem milhares de fiéis diariamente com um portfólio de produtos impressionante, de sabonetes a livros, roupas, acessórios, decoração, tudo o que você pensar. Espiritualidade custa caro, por isso são "sábios".

Já vai longe o dia em que o beatle George Harrison deu fama planetária a outro guru, Maharishi Mahesh Yogi, que gerou um apostolado gigantesco, servidores e professores de 'meditação transcendental' por dezenas de países. Todos estão muito bem amparados por astutas assessorias de comunicação, marketing, financeira e jurídica e um graúdo contingente de funcionários. Sobre a ação desses 'veneráveis',  escreve Magnani:
Só se sustentam com base num público consumidor sem capacidade de discriminação e por isso mesmo sujeito ao fascínio das soluções rápidas - a possibilidade de alguma experiência espiritual indizível depois de umas poucas sessões de meditação, ou a tão sonhada harmonia interior após o encontro, sem maiores sobressaltos, com o “eu mais profundo”...
O cientista social Gad Saad engrossa o coro dos analistas:
Os "mercadores de esperança" são excepcionalmente bem-sucedidos porque atendem a nossas inseguranças fundamentais baseadas no darwinismo. A religião nos concede "imortalidade", os curandeiros médicos "resolvem" provações de saúde intratáveis e os gurus da auto-ajuda nos oferecem "prescrições" para todos os desafios inimagináveis da vida.
O sociólogo Dipankar Gupta há muito acompanha a trajetória dos gurus e afirma que uma das razões da crescente influência dos gurus é que eles preenchem o vazio deixado pelas instituições, oferecendo assistência social, educação e atendimento médico à população, carente ou não. Gupta acentua que opulência não coaduna com o caráter espiritual. Por outro lado, verdade seja dita, há coerência nesse ramo porque as espécies se reconhecem e se encontram. Quem, nos dias de hoje, ainda se deixa iludir ou é fisgado pelos pescadores de túnica branca, não aprendeu a lição porque tem mentalidade muito aquém da mediana. É inadmissível tamanha ignorância quando a informação está disponível na ponta dos dedos. Não se trata mais de um ciclo cultural histórico ou modismo atemporal de um sistema de crenças e fé pessoal, e sim de um processo sócio antropológico mais complexo. Gupta e Saad tocam na ferida quando dizem que os "mercadores de esperança atendem a nossas inseguranças fundamentais"..."porque preenchem o vazio deixado pelas instituições." Não é isso que você lê o tempo todo aqui?

Para Leila Amaral, a Nova Era mostra a emergência de uma "cultura religiosa errante", porosa, performática, festiva, efêmera, sem rígidos marcos doutrinários; padece de uma linguagem teológica, retirando o sagrado do seu território e esvaziando-o de sua substância. Tudo não passa de uma "religiosidade caleidoscópica", um "sincretismo heterodoxo". Encerro com Magnani e sua visão da missa esotérica e seus devotos:
Não se pode generalizar. Há quem participe no universo do neo-esoterismo apenas por acreditar em duendes, consultar esporadicamente as cartas do tarô e apreciar a fragrância de um incenso; são diferentes os graus de adesão porque são inúmeras as possibilidades de arranjos, a partir das narrativas de base desse universo. (...) Tem-se a impressão - e algumas análises carregam nessa linha - de que se está diante de um segmento do famoso “mercado de bens simbólicos”, aberto a arranjos absolutamente individualizados, em que cada qual compõe seu próprio estojo pós-moderno de primeiros socorros espiritual.
Cada qual compõe seu próprio estojo pós-moderno de primeiros socorros espiritual.

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* https://epoca.globo.com/a-ciranda-de-sexo-dinheiro-mentiras-de-prem-baba-23066393
** https://www.youtube.com/watch?v=dXsH26uJg-I
SAAD, Gad. The Consuming Instinct: What juicy burgers, Ferraris, pornography and gift giving reveals about human nature. Prometheus Books, 2011.
AMARAL, L. Carnaval da Alma: Comunidade, essência e sincretismo na NoaEra. Vozes, 2000.
MAGNANI, José G.C. Mystica Urbe. Studio Nobel, 1999.
REIS, C,; RODRIGUES, U. A Desconstrução de um Mito. LPBooks, 2009.


sexta-feira, 14 de setembro de 2018


ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA

- Por que meus olhos doem?
- Porque você nunca os usou.
(Neo e Morfeu, Matrix)


Episódio 1: Experiente fotógrafo da imprensa nos informa ter flagrado estranho objeto luminescente, ao entardecer, em São Paulo. Durante um mês, mossa equipe analisa cuidadosamente as circunstâncias da foto. A conclusão é que se tratou de um por-do-sol sob condições climáticas incomuns, produzindo um efeito brilhante  extraordinário. Desnecessário dizer que o profissional recebeu esse resultado cuspindo marimbondos.

Episódio 2: Empresário filma por razoável tempo vários objetos luminosos fazendo evoluções em torno de uma "nave-mãe", até tudo se apagar em meio à neblina noturna. Acionado, nosso grupo investigou durante semanas até concluir que era um balão carregando uma armação (cangalha) repleta de lanternas feitas com velas formando uma figura, velas que iam se soltando pelo vento e apagando pelo consumo. O resultado era um gracioso bailado de pontos tremeluzentes qual pirilampos  rodopiando em volta da "mecha-mãe". Desnecessário dizer que o executivo recebeu essa informação cuspindo marimbondos.

Episódio 3: Jovem envia pelo whatsapp uma foto tirada à tarde dizendo tratar-se de "três pontos luminosos como estrelas deslocando-se a uma velocidade impressionante". A imagem não é nítida e mal se identifica qualquer coisa. Após algumas perguntas básicas de praxe, ficou claro que ele não presenciou o movimento das "luzes": ele bateu a foto, olhou para o chão pois descia por uma calçada íngreme, com degraus, e ao olhar novamente para os "objetos", eles não estavam mais lá, o que não configura deslocamento. Sem mais elementos, disse-lhe que não havia como esclarecer e que poderia ter sido o reflexo de uma aeronave a grande altitude, ou uma ilusão ótica momentânea. Sua resposta foi um lacônico OK, dando a conversa por encerrada, talvez com certo desdém. Não sei se cuspiu marimbondos. 

Eu poderia descrever dezenas de casos semelhantes que acontecem o tempo todo. Os exemplos mostram a grande frustração dos personagens, pois estavam certos de que a palavra de um "especialista" daria aval às suas expectativas. Todos eles, e todos os que já passaram por situações semelhantes, esperavam que suas experiências fossem o que eles queriam que elas fossem: testemunhas da presença de um "disco voador". Como a chancela não aconteceu, e nem poderia, a frustração deu lugar ao inconformismo. Não só não aceitaram o veredicto como seguiram suas vidas acreditando firmemente terem filmado e fotografado um disco voador. Em se tratando de leigos, é natural e compreensível, afinal eles precisam acreditar em algo seja lá o que for. Todos querem sinceridade, a verdade.  mas recusam-na quando ela aparece.

Porém, constato com pesar que, entre os colegas, e falo de gente bem informada, tarimbada, experiente, há uma notória resistência em acolher dados irrefutáveis à luz dos múltiplos saberes envolvidos. Não basta só informação, é preciso conhecimento; enquanto aquela é cumulativa, este é seletivo; enquanto aquela é ferramenta, este é resultado, enquanto aquela é esquecível, este é perene. Eu arriscaria dizer, mais que resistência, relutância ou rejeição, subjaz um medo em reavaliar e reposicionar conceitos e valores em relação ao tema, e vou além, vejo também um profundo desconforto em assumir uma mudança de postura. Parece haver uma acomodação ou desinteresse em procurar o saber fora da ufologia, em explorar novos caminhos, debater ideias, discutir o contraditório. É o chamado viés de confirmação - girar o conhecimento num único eixo de modo a sempre ratificar suas convicções. Pergunto: É acomodação ou algo mais grave como preguiça, renúncia ou covardia?

Tenho a sensação de que a maioria segue o lema do "deixa como está para ver como é que fica". Poucos estão razoavelmente alinhados com os novos tempos. Não seria errado afirmar que a vaidade e o narcisismo estariam por trás deste comportamento, uma vez que muitos não recusam convites a entrevistas e reportagens para falar o que a mídia e o público querem ouvir, mas não para o que precisam ouvir. Há, também, diga-se, o desejo e a necessidade de preservar a imagem de pesquisador "sério", e, reforçando o que já foi dito aqui, de manter, através da ufologia a sua referência identitária, sem a qual não conseguem se encontrar e encontrar o seu lugar no mundo. É preciso muita coragem para despir-se desse fardão puído e descolorido. São, todos, Senhor Alferes Jacobina do conto machadiano., já mencionado aqui.

Quero deixar bem claro que não estou fazendo críticas nem impondo a minha opinião, porque respeito todas. Um ponto de vista é a vista a partir de um ponto (Boff). O que faço é trazer vários destes pontos para compor um painel coerente e sustentável, à semelhança do passatempo de "unir os pontos"para formar uma figura. Temos aqui as duas faces da mesma moeda: De um lado, os leigos, de quem não se pode querer que conheçam o assunto, que saibam distinguir os fatos e não se iludam com as aparências. Neste caso, meu papel é apenas o de esclarecer com base na minha experiência, pouco importando se a resposta agrada ou não.

Do outro lado da moeda, os amigos pesquisadores, a quem desejo sinceramente que tenham  lucidez para entender que o cenário mudou, que a leitura e a interpretação do mundo mudaram e que eles não podem continuar sendo os mesmos, na contramão das transformações. Adquirir novos conhecimentos não é só uma prioridade, um desafio, virtude, esforço ou querer, é, acima de tudo, chave para melhor compreensão de si e dos outros. Neste caso, sendo o blog um divulgador de saberes, muito modestamente seu papel é parecido ao de uma curadoria, do latim cur - zelar, manter a vitalidade; um curso - caminho, direção, norte; e curioso - observar, ou seja, estudar, selecionar e oferecer o que há de melhor e mais importante a ser transmitido. Abrir os olhos pode doer, não abrir é mortal.

Para justificar e valorizar a escolha do título, referência à obra de Saramago, junte-se as ideias do autor com as de Bauman e agora, também, de Theodore Dalrympole. "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara" (Saramago). Obviamente, 'repara' é preste atenção, observe novamente, note bem, mas podemos interpretar também como restaure, refaça, recupere. Restaure o bom senso onde ele não está, recupere a clareza onde existe a obscuridade, refaça o caminho, se desviado. Eis a nossa responsabilidade, "a de ter olhos  quando outros os perderam". Bauman não cansava de criticar a liquidez das nossas relações sociais, agora mais que nunca sócio-virtuais, ancoradas na insensibilidade e no narcisismo. As respostas de curto prazo inibem as de longo prazo, marcadas pelas crises educacional e informacional, pela falta de critérios e pela urgência no preenchimento de uma existência esvaziada de sentido de uma sociedade emocionalmente desequilibrada:
Não se trata mais do sonho do grande Giovanni Pico della Mirandola, de um indivíduo humano capaz de moldar a si mesmo. O paradoxo é que agora o indivíduo é moldado pela globalização e suas forças anônimas (Bauman).
Já o psiquiatra e crítico social britânico Theodore Dalrympole desfila - e destila - em tom sóbrio a sua percepção do mundo, onde os títulos de seus livros mostram a que veio, como, por exemplo, Nossa cultura... ou o que restou dela, Podres de Mimados  e Qualquer Coisa Serve (Este título, no original, é um direto no queixo: Anything Goes: the death of honesty - Vale Tudo: A morte da honestidade)No conjunto da obra, Dalrympole denuncia a falta de parâmetros morais, éticos e estéticos como resultado de uma total penúria intelectual, do "sentimentalismo tóxico", do infantilismo, da ruína da cultura e da irresponsabilidade com os deveres. Não é pouca coisa. É um chavão, eu sei, mas seu olhar é cirúrgico, a crítica pega na veia e ele não se preocupa em estancar a hemorragia. Você vai sangrar até absorver a concretude da sua experiência e o amargor do diagnóstico. Um autor indispensável e uma obra não escrita para fracos.

Já escrevi demais por hoje. Para resumir, este autor reforça o pensamento geral de que, dada a volatilidade do mundo contemporâneo, a vulnerabilidade e efemeridade das relações e voracidade das respostas, "qualquer coisa serve". Para quem não vê, logo, não repara, qualquer coisa serve. São tantas as perguntas que qualquer resposta será melhor que nenhuma. "É a verdade que nos liberta e não um mito conveniente". Não se cura câncer com analgésico, água benta ou florais de Bach. A vida não é qualquer coisa. 

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BAUMAN, Z; DONSKIS, L. Cegueira Moral. Zahar, 2014.
DALRYMPOLE, T. Qualquer Coisa Serve. É Realizações, 2017.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

SOLIDÃO QUE NOS HABITA
Final

Chegamos ao fim da série "Terra rara, vida rara", reprodução integral do capítulo homônimo da obra de Marcelo Gleiser, Criação Imperfeita,, mas não ficamos só nela. Muitos autores engrossam o coro, transformando a questão levantada por Brownlee e Ward em uma afirmação quase definitiva - estamos sós no universo em se tratando de vida extraterrestre complexa e/ou inteligente.

Nossa singularidade nos faz refletir cada vez mais em nossa responsabilidade, não apenas em relação ao nosso amadurecimento como também, e principalmente, ao outro - nosso espelho. Reitero e enfatizo o dito no post anterior para o qual - insisto - peço a sua atenção por se tratar do coração do problema: O desejo de companhia cósmica que nos tire desta solidão e silêncio angustiantes é o trauma original, o mito fundador da ufologia a partir do qual se construiu toda uma narrativa ficcional, e que, de modo conveniente, se consolidou como (falsa) verdade. Fazendo referência ao pai da Psicanálise, penso a ufologia como uma espécie de "interpretação dos sonhos" da humanidade. Por isso"ufotopia".

-o0o-

Em 1960, o radioastrônomo Frank Drake propôs uma fórmula para avaliar quantitativamente a probabilidade de existir vida inteligente na nossa galáxia. A equação ficou conhecida como Equação de Drake: uma simples multiplicação dos fatores essenciais para que vida inteligente existisse num sistema estelar. A vantagem da equação e suas várias versões (como a proposta no livro Sós no Universo?) é que nos ajuda a compreender os obstáculos para o surgimento de vida inteligente num planeta.



A desvantagem é que não sabemos como avaliar seus vários termos com precisão e nem mesmo quais deles incluir. Por exemplo, embora saibamos o número de estrelas na Via Láctea com boa precisão (entre 200 e 400 bilhões), não sabemos qual fração delas tem planetas na zona habitável, quais destes têm vida, a fração destes que tem vida complexa ou ainda quais destes abriga vida inteligente. Temos, também, que decidir quais fatores devem ser incluídos. Será que incluímos termos quantificando a fração de planetas com luas grandes, com movimento de placas tectônicas, com campos magnéticos capazes de proteger sua superfície da radiação cósmica? A escolha de quais termos devem participar da equação de Drake nos diz muito das intenções de quem os está incluindo. Na década de 1970, Carl Sagan, um entusiasta da busca por inteligência extraterrestre, estimou que existem em torno de um milhão de civilizações na galáxia capazes de se comunicar através do rádio. Outros afirmam que o número é um: nós.

O fato é que, mesmo que "eles" existam em algum canto do cosmo, muito possivelmente jamais saberemos. Até que tenhamos alguma forma de evidência conclusiva - e isso pode demorar muito, muito tempo - na prática estamos sós na vastidão cósmica. Entender isso, e o que nos diz sobre quem somos e qual a nossa missão, deveria ser suficiente para mudar o rumo da nossa história, redefinindo o nosso futuro e o do nosso planeta.


...Fim...

Gleiser resume classificando o surgimento da vida em 4 etapas: Do Big Bang às primeiras estrelas, destas aos planetas, dos planetas à vida e da vida complexa à inteligente. Tudo no espaço de bilhões de anos! Considerando que a Terra é o único planeta conhecido com vida e compreendendo as condições que favorecem a sua existência, os cientistas fizeram uma extrapolação desses factores para outros corpos planetários. As características que fazem de um planeta um sistema com vida são:

 Órbita circular, com distância constante relativamente à sua estrela;
 Existência de uma porção mínima de elementos metálicos, mais pesados que o hidrogênio ou hélio, pois é neles que se baseia a vida (carbono, azoto e oxigênio);
 Abundância de elementos percursores de moléculas orgânicas - hidrogênio, hélio, oxigênio, carbono, nitrogênio;
 Abundância de água, que é um bom solvente, estável num determinado intervalo de temperaturas e importante para a formação de atmosfera;
 Abundância de hidrogênio. A sua perda e sua posterior união a outros elementos levarão à criação de uma atmosfera redutora, permitindo o aparecimento de vida;
 Existência de um substrato rochoso, que permita a fixação de organismos.


É evidente que um único capítulo de um único livro não esgotaria a complexidade da vida. Ela não é uma coisa, não é mensurável, não cabe em palavras. A vida não é só um aglomerado de moléculas e elementos químicos que resolveram se reunir para povoar o planeta. Pensando nisso, para enriquecer um pouco mais a conversa, e, como no título do post anterior, estabelecer as fronteiras do imaginário, trago mais algumas considerações da obra "Sós no Universo?" 


Só a Astrobiologia seria suficiente para por um fim a essa paranoia desenfreada de visitantes alienígenas, mas é aí que entra o arranjo transdisciplinar com argumentação sólida e muito bem estruturada, fonte do embasamento deste blog. Sim, o problema é poliédrico, com várias faces e ângulos a serem considerados, mas a questão central não muda: Existe alguma prova a favor da tese de vida abundante no universo? Nenhuma!

Brownlee responde
Não podemos "provar” que a vida animal seja rara no Universo. Prova é algo raro em ciência. Nossos argumentos são post hoc, no seguinte sentido: Examinamos a história terrestre e procuramos chegar a generalizações a partir daquilo que vimos aqui. Nós manifestamos uma posição muito pouco adotada, mas cada vez mais aceita por muitos astrobiólogos. Formulamos uma hipótese zero face às ruidosas afirmações, quer por parte de muitos cientistas como pela mídia, de que a vida - quer de alta ou baixa inteligência - está por aí, ou mesmo que animais simples como vermes sejam frequentes por toda parte. Talvez, apesar das incontáveis estrelas, nós sejamos os únicos animais ou, pelo menos, estamos entre os poucos escolhidos.
Alguns conceitos filosóficos são discutidos na obra como a 'centralidade da Terra' e, por consequência, a do homem; depois a 'descentralidade' de ambos, sugerindo uma correlação com a qual os autores não concordam:
Se for correta, entretanto, a hipótese de "Sós no Universo?", reverteremos essa tendência de descentralização. O que dizer se a Terra, com sua carga de animais adiantados, for virtualmente única neste quadrante da galáxia - o planeta mais diverso num perímetro, digamos, de 10.000 anos-luz? O que dizer se ela for extremamente única - o único planeta com vida animal nesta galáxia e até no Universo visível, um bastião de animais num mar de mundos infestados de micróbios?
No início da obra os autores admitem a possibilidade de existir vida em outros planetas, mas vida de micróbios, capazes de enfrentar condições extremamente adversas como as que existem em lugares altamente inóspitos na Terra. Estas formas de vida nas galáxias, segundo eles poderiam ser muito frequentes, mas em relação à vida superior, a ideia é excluí-la.


Aqui retomo a palavra finalizando o post. Toda a discussão trazida nesta série é apenas o recorte de um processo bem mais profundo e intrincado. Os fatores que estabelecem a habitabilidade de um planeta são múltiplos e emaranhados: Não houvesse a Lua, não haveria vida; se o Sol fosse "um pouco" mais quente ou frio, não haveria vida; se a Terra estivesse "um pouco" mais ou menos distante dele, não haveria vida. A busca por "companhia" é instintivo e pulsional tanto no plano do cotidiano terreno quanto no âmbito cósmico, desde os primeiros núcleos tribais cruzando extensas áreas desconhecidas sem a menor ideia se iriam encontrar outras tribos. Depois vieram as grandes navegações, novos mundos, outras civilizações e culturas, o mundo sendo esquadrinhado. Percorridas todas as terras e todos os mares, restou o espaço.


Sem os instrumentos para ir além, o homem desenvolveu a imaginação, criou histórias, fabulou aventuras, inventou máquinas, viajou por mundos fantásticos sem abandonar o desejo de explorar o inexplorado, desbravar o desconhecido. E esse dia chegou. De um pequeno passo o salto gigantesco - a Lua -, e não parou mais. Não há limites, o infinito é o horizonte que o faz seguir adiante. Isso é ciência, é buscar o conhecimento através do potencial intelectivo. O resto são crenças vãs e delírios.

Acho que já passou da hora de se aceitar e acostumar, de uma vez por todas, com a realidade de sermos a única espécie inteligente nesse imenso e majestoso universo. Mesmo que na mais remota possibilidade existam outras espécies, jamais serão como nós. É seu direito continuar acreditando em discos voadores, seres alienígenas e toda uma infindável gamade representações mágicas, mas saiba que estará vivendo na mais absoluta ilusão, própria de mentes imaturas e fantasiosas.