Obras

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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

FAZER OU FICAR
Toda janela é um recorte do mundo.

Se você tem prestado atenção ao que tenho escrito aqui todo esse tempo usando a ufotopia como pano de fundo, e, principalmente, se tem lido nas entrelinhas com olhar profundo  e espero que sim , então terá entendido que o que estou pedindo é que saia da zona de conforto das velhas convicções e velhos conceitos, e pare de ver o mundo pela janela embaçada que mostra sempre a mesma paisagem. Sei, entretanto, que não é fácil fazer isso, é preciso tempo e muita, muita coragem. Não sei se você tem as duas coisas. Provavelmente uma delas não.

Este talvez seja o post mais importante já escrito aqui. Tenho me repetido em vários momentos com a intenção clara de dizer o mesmo de modos diferentes, com outras palavras, outros exemplos, outra linguagem. A ufotopia é só o eixo por onde rodopiam os argumentos e as ideias que realmente interessam. Crer ou não em “disco voador” e outras abstrações é o que menos importa. Importa é saber que existem outros caminhos para crer ou não crer a partir das linhas de reflexão que ofereço, e só posso oferecer o meu patrimônio, lapidado em quase cinco décadas pelos ensinamentos, experiências e vivências daqueles investidos da autoridade de direito. Ainda que esse saber esteja sujeito a revisões, ele é sólido, honesto, tem peso e o mérito de jogar luzes onde antes nem sombra havia. Sim, eu sei, é a minha trajetória, não a sua, e é isso que me impele retransmitir essas luzes. Você fará uso delas se e como lhe convier. Essa caminhada não tem descanso nem janelas, só largos horizontes, que compartilho com quem vem na mesma trilha, e esses são poucos.

Parece que a pergunta final da edição anterior incomodou algumas pessoas. Um jovem leitor ensaiou um debate, mas só ensaiou. Toda divergência de opinião é saudável desde que o interlocutor sustente o contraditório em bases firmes, com conhecimento e experiência, o que não foi o caso, o que aliás ocorre com enfadonha frequência. Todo debate só prospera quando há equilíbrio de forças, mas se a parte com menor repertório tenta fazer prevalecer sua posição, observa-se um nítido desnível de conteúdo. Nota-se também uma indisfarçada impaciência, que aborta o diálogo antes de começar. 

Exemplo: Se você discorda de algum ponto da argumentação de Freud, Einstein ou Spinoza, você só pode manifestar sua visão contrária se somar experiência, prática e estudo no mesmo nível deles, ou esse encontro será pobre, pequeno, triste, amador, inoportuno, inútil e pouco inteligente. Um estudante de Direito não deve divergir de um decano da Corte de forma leviana, assim como um médico recém formado não tem a mesma estatura de um catedrático da área. É fundamental preparo e rigor intelectual, senso crítico e solidez discursiva que façam frente à envergadura oposta. Agir de modo diferente pode ser entendido como uma afronta imperdoável.

É preciso haver um limite entre discordar de uma ideia, pura e simplesmente, e emitir a opinião discordante sem o devido lastro. Lembrou-me o colega Ubirajara Rodrigues a alegoria do bule de chá do filósofo e matemático Bertrand Russell para debater a existência de Deus. Perfeitamente cabível aqui, é usada com frequência em discussões metafísicas. Carl Sagan aproveitou a ideia e escreveu em uma de suas obras que havia um dragão em sua garagem. Diz Russell:
Muitos indivíduos ortodoxos dão a entender que é papel dos céticos refutar os dogmas apresentados  em vez dos dogmáticos terem de prová-los. Essa ideia, obviamente, é um erro. Eu poderia sugerir que entre a Terra e Marte há um bule de chá chinês girando em torno do Sol em uma órbita elíptica, e ninguém seria capaz de refutar minha asserção, tendo em vista que teria o cuidado de acrescentar que o bule é pequeno demais para ser observado mesmo pelos nossos telescópios mais poderosos. Mas, se afirmasse que, devido à minha asserção não poder ser refutada, seria uma presunção intolerável da razão humana duvidar dela, com razão pensariam que estou falando uma tolice. Entretanto, se a existência de tal pote de chá fosse afirmada em livros antigos, ensinada como a verdade sagrada todo domingo e instilada nas mentes das crianças na escola, a hesitação de crer em sua existência seria sinal de excentricidade e levaria o cético às atenções de um psiquiatra, numa época esclarecida, ou de um inquisidor, numa época passada.
O jovem leitor, refém de suas crenças, domesticado e condicionado como tantos outros iguais a ele, e outros nem tão jovens, questiona um saber contrário imaginando que a sua experiência seja superior à competência do outro  no caso, a minha. Não é. Essa assimetria de pensamento é estrutural. Se lhe falta a malícia do raciocínio lógico formal, a prudência e o crivo sensível da demanda, sobram ingenuidade, inabilidade e aderência ao absurdo  o Absurdismo, a coerência da incoerência, característica da espécie humana: o dilema de buscar o sentido da vida quando não há sentido algum, o conflito entre o mundo real e o ideal, a difícil escolha entre o físico e o metafísico –fé e razão.

O risco de se entregar cega e docilmente ao carcereiro é tornar-se escravo dele. O outro risco, mais sutil e mais danoso, é o de não perceber que caiu na armadilha. A dinâmica do sistema de crenças dominante na ufologia segue a cartilha estereotipada pela ficção e irrigada pela religião. De certa forma, a ufologia, sendo um sistema vicioso de crença, opera como uma espécie de auto-ajuda para o adepto. Trocando em miúdos, os mais culturalmente subnutridos seguem acreditando que é o rabo que abana o cachorro, ou que o Sol nasce quando o galo canta. Assim, como Sísifos modernos, essa gente, ao desafiar e contestar a lógica dos fatos, é condenada pelos deuses a carregar inutilmente nas costas o fardo do absurdo. 

Mitologias à parte, a filosofia do absurdo adotada neste caso é a de que, não havendo provas da não existência de algo, prova que esse algo existe: Como não se pode provar que o unicórnio cor-de-rosa invisível não existe, prova que o unicórnio cor-de-rosa invisível existe! E assim continuam rolando pedras montanha acima, mesmo que elas rolem montanha abaixo depois. Evocar Sócrates com Só sei que nada sei” pressupõe, no mais das vezes, um ato de fuga ao debate. Se fosse levada à letra, o mundo continuaria mergulhado na ignorância. Há muita sabedoria no ar, mas só chega a ela quem não se detém na janela. Até onde vai seu horizonte?

Aos futuros candidatos a debate, jovens ou não, recomendo enfaticamente: Imersão total e absoluta na matéria pelo tempo que for necessário; Senso crítico apurado e autocrítica rigorosa; Estudar as disciplinas envolvidas e as que acharem que não estão, porque estão; Não colecionar revistinhas temáticas, recortes de jornal, documentários sofríveis, filmecos e fotos borradas, entrevistas e falas de celebridades como agentes da verdade; Amadurecer as reflexões, que pode demorar muito; Vivenciar e conhecer intensamente o outro lado da questão, que também pode demorar alguns bons anos; Ouvir o contradito de maneira ética, flexível e imparcial; Ignorar a massa do senso comum, inclusive e principalmente as redes sociais; Ter em mente que o conhecimento não cai no colo e não sai de graça, sabendo escolher fontes confiáveis e de excelência; Não pular nenhuma destas práticas sob qualquer pretexto. Nenhum aprendizado se faz espiando por cima dos ombros de alguém. Conhecimento é suor, não aventura.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019


O JOGO NÃO PODE PARAR



Você deve estar se perguntando de que jogo estou falando, qual jogo não pode parar se todo jogo deve ter um fim. Nem todos. Não se trata de um jogo comum, de um entretenimento qualquer, embora este tenha, como todo jogo, um prazer embutido. Um jogo de cartas marcadas? Talvez, mas só para uma das partes. Os contendores são muito, muito diferentes entre si  diferentes mas complementares , e só um lado está em larga desvantagem. Um jogo de interesses, de poder e por Poder, sem vencedor, apenas um jogo... jogado. E que diabos os três patetas estão fazendo aí em cima? Só lendo para saber.

De um lado da mesa, os Tolos, que se julgam espertos, e os espertalhões, todos patéticos. Tem de tudo: os que conversam com estrelas, pedras, números, plantas, conchas, cartas e até com o sobrenatural. Acreditam saber sobre tudo, física quântica hiperespaço, portais dimensionais, universos paralelos, viagens interestelares, teletransporte, propulsão iônica ou antigravitacional, vórtices energéticos, antimatéria, contatos com seres de outras galáxias, bases secretas alienígenasteoria das cordas, dos buracos de minhoca” e dos buracos negros, transcomunicação multidimensional e até sobre o “combustível dos discos voadores unumpêntio – o elemento 115 da tabela periódica¹... Para tudo há uma explicação lógica que só os iniciados” compreendem através dos cursos, vídeos, livros, palestras e fóruns proferidos pelos nada modestos professores. Um desses eventos foi comentado aqui na semana passada.

Obviamente, os “argumentos” dessa turma se apoiam em sólidas bases científicas”, o que é uma falácia grosseira, prepotência, obscenidade intelectual, insulto, um lixo de pseudociência. A narrativa dos homenzinhos verdes do planeta vermelho ganhou uma versão contemporânea mais tecnológica.  Obviamente, você percebeu o nível de paranoia. Obviamente não há aqui o menor sinal de lucidez, equilíbrio, estrutura psicológica, por isso estão sempre no subsolo menos iluminado da racionalidade. Obviamente, você percebeu também serem Quijotes vivendo numa bolha povoada de moinhos de vento. O excesso de aspas é uma exigência do texto e vem mais por aí.

Do outro lado da mesa estão os, digamos, Agentes da Desinformação”  autoridades, especialistas, cientistas, doutores, astrônomos, pilotos, militares e técnicos, todos muito qualificados em suas áreas mas que, para os Tolos, não entendem nada da matéria. Essa militância dura denuncia-os por negarem, sonegarem e manipularem informações e por guardarem segredos invioláveis sob a tarja de confidencialaltamente sigilososegurança nacional”, top secret e coisas do tipo. Suspeitam de manterem ligações com altas patentes de civilizações extraterrestres para troca de tecnologia (troca?), de conservarem corpos e destroços de naves alienígenas em prédios militares secretos (secretos?) e outros disparates. Nem Varginha escapou dessa conspirata. Obviamente, você percebeu o nível de paranoia aqui também.

A verdade é que, acredite, ambos os lados fazem o jogo que precisam fazer. Uns, como crianças brincando de pega-pega, correndo obcecados atrás da cenoura só pelo cheiro; os outros, como crianças brincando de esconde-esconde, fingindo que a possuem. Uns achando terem informações ultrassecretas que só eles sabem, os outros sabem que não as têm. Uns se sentem excluídos pelo Sistema, os outros pensam que são o Sistema. Uns e outros não sabem nada do assunto porque não se pode saber coisa alguma de alguma coisa que é só imaginação. Existem dois tipos de pessoas que confundem realidade e imaginação: crianças e esquizofrênicos. Eu acrescento os tolos. Os arquivos privados e os confidenciais não trazem nada que já não se saiba: milhares de relatos inconclusivos, fotografias, filmes e outros registros que nada esclarecem, marcas físicas incomprováveis, transtornos psíquicos de causas prováveis... ou seja, vazio, fumaça, ventania. Uns se iludem penando ter nas mãos uma sequência real de copas, os outros, mesmo não tendo nada, seguem no jogo  é a arte do blefe.

O jogo não pode parar porque um depende do outro para continuar jogando. Os Tolos excitados em vã perseguição a borrões indistinguíveis, balões e luzes boiando no céu, buracos e desenhos bizarros na terra; procuram por homúnculos paridos da ficção, da fantasia e dos delírios, se extasiam na presença de uma “intrigante topografia lunar, marciana, venusiana ou onde mais o imaginário criar. Comportando-se como há 20 mil anos faziam os povos caçadores-coletores, as tribos de hoje caçam espaçonaves e coletam histórias com uma miopia ou falência cognitiva assombrosa. Na verdade, não surpreende. Por sua vez, os astutos Agentes, com o glamour de um poste, blefam para manter o statu de detentores do grande segredo”. Então, se conhecimento é poder, esses jogadores duelam para ver quem é o mais imaturo e o mais patético.

Agora me responda, quem você acha que é o terceiro pateta nessa história?

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Na tabela periódica, o elemento 115 é oficialmente denominado Moscovium (Mc), sintetizado em 2014 por cientistas russos e americanos. 

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

CONSCIÊNCIA COM CIÊNCIA
Um exército de cervos liderado por um leão

é muito mais assustador que um exército
de leões comandado por um cervo.
Plutarco (46 d.C. - 120)

Há pouco mais de dez anos, mais exatamente em agosto de 2009, lançávamos nosso A Desconstrução de um Mito, cujo subtítulo, proposto pelo coautor Rodrigues, Porque os discos voadores podem não existir, denotava postura cautelosa, deixando em aberto a possibilidade de estarmos errados. Rodrigues mantém a crença de que um irrisório percentual de fenômenos possa ter uma explicação dessa natureza, enquanto que, no meu entender, se houver alguma resposta, ela virá de outras fontes. Por que estou tocando messe assunto? Porque, passada uma década, a obra ainda incomoda o leitor, fazendo-o balançar em suas crenças na pluralidade de mundos habitados, visitantes extraterrestres e todas as ilusões que integram o universo supranatural. Naturalmente, Desconstrução desperta o repúdio dos ufólogos.

Sobre isso, recentemente um leitor manifestou-se a Rodrigues deveras perturbado com a leitura da obra. Em mensagem pessoal, escreveu: O livro é muito bom, mas dá uma sensação terrível de que estivemos perdendo tempo nos dedicando a algo que só existe em nossas mentes. Sensação terrível é emblemático, por mostrar que este leitor tem consciência da magnitude do problema, e que está inclinado a reorganizar sua visão sobre o tema. Daí o post ter a participação do colega, e foi necessário ser um pouco mais extenso que o habitual; pedimos compreensão, pois sua leitura é fundamental.


Quando colocamos na mesa o que possa ser contrário às nossas crenças e preferências, estamos usando um método eficaz para combate de nosso viés de confirmação. Um viés de confirmação é preferir, durante décadas, com afinco e de maneira heroica, a hipótese de que Óvnis sejam, necessariamente, “naves extraterrestres”, e quando se analisa e discute casos ufológicos, faz-se de tudo para que a crença seja confirmada. Neste caso, não se busca o que realmente possa se aproximar da verdade, mas sim, luta-se pela verdade desejada, – a autoverdade.

Foi este nosso objetivo na obra: O que pode ser contrário à existência do próprio fenômeno, o sentido inverso daquilo em que ufólogos  acreditam e a incipiente ideia de sua origem, tudo exemplificado pelo comportamento dos próprios pesquisadores. Ou seja, apresentamos o contraditório para que houvesse um mínimo de seriedade, bom senso e imparcialidade. Se não for assim, não se faz ciência, ainda mais em um ambiente onde imperam e proliferam delírios, falácias, exotismos, fantasia, farsa, fabulações, fanatismo e conspiranoias”, e onde também não se faz o menor esforço para acabar coma a pecha de pseudo ciência. Um exemplo disso vem a seguir.

Dias atrás, certo ufólogo desandou a promover palestras falsamente científicas anunciando “surpreendentes revelações” sobre Marte, a partir da sua interpretação das fotos obtidas pela NASA: fósseis alienígenas, formações rochosas insinuando ruínas de alguma civilização tecnologicamente avançada(?). Quem leu os posts Fanatismo doentio e Fanatismo de pedra perceberá que o sujeito se encaixa em um destes estágios, quiçá no segundo. E mais, o texto abaixo (na íntegra e com os erros originais) é parte da divulgação dos eventos anunciados (sublinhado nosso):
Mas as grandes revelações desse evento, mais uma vez documentadas nas fotos oficiais da agência espacial, que serão mostradas estão associadas as descobertas feitas pelo conferencista sobre o que esta acontecendo nesse momento no Planeta Vermelho, e o que foi descoberto sobre a vida no planeta na atualidade!!!
O palestrante está a par do que ocorre em Marte neste momento! O palestrante acusa (desde sempre) governos e instituições de acobertamento e conspirações de silêncio e desinformação e outros desvarios. O palestrante tira conclusões totalmente descabidas sem o menor pudor e sem conhecimento técnico sobre qualquer coisa. O palestrante faz ilações estapafúrdias e desconexas, ligando a possível existência de vida microbiana há bilhões de anos a “civilizações avançadas”. O palestrante deve ter ficado exposto a altas doses de Arquivo X” e outras ficções, e agora vive um permanente transtorno dissociativo da realidade. Enfim, o palestrante é só mais um aventureiro, desinformado e despreparado, incapaz de apreender as questões mais complexas que vão muito além do seu precário perímetro intelectual.


Um procedimento totalmente equivocado é o de interpretar de forma deturpada as declarações dos homens de ciência para atender interesses escusos. Há poucos dias, um site de ufologia noticiou que o físico Michio Kaku teria dado declarações em favor da hipótese extraterrestre dos Óvnis. Quando, no entanto, se comparam trechos da sua manifestação, evidentemente pinçados de maneira tendenciosa, a notícia passa a ser visivelmente contraditória, e chega a ser incrível que seu redator não tenha percebido o absurdo do raciocínio, a lógica inversa do cientista: “É dos militares provar que os UFOS não são dronesÉ quase certo que sua consciência sem ciência  –  a do redator – não tenha percebido mesmo.

Só a partir dos dados coletados pelas experiências individuais e coletivas é que podemos inferir outras possibilidades. Nesse sentido, Edgar Morin, em Ciência com Consciência, propõe alguns imperativos que podem ajudar aos leitores a refletirem sobre um novo modelo de pensamento: Conhecer para conhecer, que deve triunfar, para o conhecimento, sobre todas as proibições e tabus que o limitam. Ademais, os princípios clássicos de explicação indicam que a complexidade dos fenômenos se esclarece a partir de preceitos simples  separação, redução – retirando o observador da observação. A experiência deve ser objetiva, independente do observador. Ao observar um objeto, o sujeito se insere na linguagem deste objeto, passando a fazer parte dele como sua extensão.

Se o nosso conhecimento sobre este objeto é nulo, nossa interpretação será subjetiva, portanto, igualmente nula. É o caso citado acima, uma consciência sem ciência que traz consequência: O sujeito fala sem ter a mundivisão do problema, a visão crítica do mundo, o olhar grande angular na análise profunda em busca da verdade pelo conhecimento e do conhecimento pela verdade.  Ainda Morin:
Vemos que o próprio progresso do conhecimento científico exige que o observador se inclua em sua observação, o que concebe, em sua concepção, que o sujeito se reintroduza de forma autocrítica e autorreflexiva em seu conhecimento dos objetos.
Com raríssimas exceções, autocrítica e autorreflexão inexistem. Ainda que a ciência tenha um lado positivo e um negativo, essa dicotomia deve acabar para dar lugar à compreensão da ambivalência e da complexidade que se situam no cene da ciência. Os pesquisadores do passado eram amadores, simultaneamente filósofos e cientistas. Hoje, a exigência do saber se concentra na transdisciplinaridade. O problema supõe não só a reforma das estruturas do próprio conhecimento como também da consciência. De nada adianta a ciência avançar em várias frentes se a consciência estanca onde lhe é confortável e conveniente. Uma consciência parada no passado não tem como alcançar o presente.

Nesse aspecto nós jamais nos acomodamos com o saber adquirido porque buscamos, incansavelmente, chegar ao âmago das questões até onde é possível chegar ou nossas aptidões permitirem. Seria cômodo fincar nosso discurso em algum pedaço de terra à sombra e não ter de passar pela sensação terrível de reformular todo o pensamento à revelia. Preferimos acompanhar a correnteza do mundo a beber de águas paradas. Mesmo sendo clichê, o conhecimento é inegociável. E a frase de Marx vem sob medida nesse contexto: “Se a aparência e a essência fossem a mesma coisa, a Ciência seria inútil”. Alguma dúvida?

Quais são os limites da nossa consciência, do conhecimento, da racionalidade? Até onde podemos chegar? Jamais saberemos se não tentarmos avançar mais e mais. Todo o esforço do saber só terá utilidade se pudermos abarcar os fenômenos e os objetos em sua integralidade e complexidade. Um desafio colossal sem garantia de êxito. Nenhuma resposta simplista será satisfatória. Como dar conta da do mundo e da vida ambivalente seguindo por uma única via? O que é certo hoje poderá não sê-lo amanhã. Só há dois caminhos possíveis: Ou afundamos no lodaçal da obscuridade e ignorância ou nos conduzimos pelas luzes da razão. Já passou da hora de olharmos para o que não está lá e enxergar o que está aqui.

Em outra obra, Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro, Morin expõe toda a sua experiência nesse campo ao afirmar que o conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão, seu calcanhar de Aquiles: “O maior erro é subestimar o problema do erro; a maior ilusão é subestimar o problema da ilusão. Reconhecer ambos é ainda mais difícil, porque ambos parasitam a mente e não se reconhecem como tais”. Ideal seria transcrever toda essa obra dado o volume de conceitos e proposições que o autor consegue trazer em tão poucas páginas. Não é à toa que o núcleo do seu pensamento repousa na complexidade - do mundo, da vida, do homem.  Talvez uma frase sua possa sintetizar o coração do problema: “A projeção de nossos desejos ou de nossos medos e as perturbações mentais trazidas por nossas emoções multiplicam os riscos dos erros e das ilusões”.

Eis o ponto cardeal na análise de qualquer tema: reconhecer o erro e a ilusão, adotar o senso crítico e o espírito cético como balizadores de um conduta maura pautada pela sobriedade dentro da própria definição de ciência: conhecimento. Firmar posturas inflexíveis não é inteligente. Crítica e ceticismo são princípios imprescindíveis no pensamento científico. Quando um dos lados se coloca irredutível nas suas crenças, portanto subjetividades, não há entendimento, só debate estéril em tom de polêmica.

Quem tem conhecimento tem autonomia, projeto, norte, ética, critérios, estímulos, atitude, repertório, respostas, ideias. Quem não tem vagueia pelo limbo. Quem tem o saber tem guarda-chuva, quem não tem fica molhado. Quem tem conteúdo produz, transforma, liberta, renova, encanta, multiplica, mas incomoda, quando provoca sensações terríveis.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

SER, OU NADA SER
Wotan jazia adormecido nas montanhas
até que os corvos anunciaram o nascer do dia.³

Como prometido, no curso da série sobre barbárie, no post Civilizarbárie um leitor destacou uma frase¹ e indagou: “Algo como um apocalipse mítico?” Respondo agora. Não, não se trata de um apocalipse mítico. A dúvida procede, mas primeiro é preciso entender o que ele quis dizer com “apocalipse mítico”. Me parece claro que ele traduz apocalipse por “fim do mundo” como, aliás, é entendido na cultura popular, porém, seu real sentido é revelação”, do grego apo kalyptó  descobrir o que está oculto, conhecer, desmascarar, revelar, desvendar. O que está oculto?

Nós herdamos a cultura apocalíptica desde a Idade Média e nunca mais nos livramos dela pela força do cristianismo. Ao longo da história, temos nos embriagado pelas imagens demoníacas,  abismos terrenos, dragões, monstros, espadas flamejantes, hydras, medusas e gente expurgada ardendo nas labaredas infernais. Com estética refinada, estas imagens transformaram o que era medonho em beleza sedutora, dando certa dignidade no contexto da criação. É dessa forma que, segundo nos diz Umberto Eco, tais figuras são ao mesmo tempo temidas e amadas, belas e horrendas, sagradas e profanas  “simbólico-diabólicas”*, mantidas não muito distantes pelo fascínio que exercem, pelo mistério de sua deformidade exuberante. Haveria nelas uma espécie de identificação velada, um reconhecer-se” dissimulado? Quem habita a sua pele?

O que está oculto? O que pode ser tão devastador que prenuncie o fim do mundo?Quem revelará o quê? Sem dúvida, a conotação intrinsicamente religiosa está presente na questão se nos remetermos ao Apocalipse de São João, um dos últimos e mais influentes livros do cânone bíblico. Para alguns reformadores da Igreja, como Lutero, a obra é mítica pela sua narrativa simbólica. Ela teria que ser escrita para que as anteriores tivessem algum sentido. 
Apocalipse traz uma representação na qual nenhum detalhe é poupado, o que permitiu que o imaginário ligado a esse livro bíblico, principalmente aquele que faz referencia ao Juízo Final e ao Inferno, proliferasse nas abadias românicas e nas catedrais góticas, nas iluminuras e nos afrescos durante toda a Idade Média. Essa representação recordava ao fiel, dia após dia, as penas que esperavam pelos pecadores no pós morte.²
Como adendo, numa breve digressão, outro campo que explora à exaustão o desastre final são as obras distópicas da ficção científica. Junte os dois  ficção e religião, a escatologia e a salvação  e eis a fagulha que incendeia os movimentos milenaristas. A ficção se apropria dos antigos mitos e os reveste de uma exterioridade tecnológica que os torna oportunos e palatáveis para uma época como a nossa, plena de tecnicismo e grandes inquietações, exercendo forte influência no psiquismo, no simbólico e no imaginário. A partir destes sublinhados, pode-se inferir qualquer coisa sobre o apocalipse –Juízo Final, acerto de contas, hecatombe planetária, vinda do anticristo e dos quatro cavaleiros ceifadores.

O imaginário popular atira para todos os lados na tentativa de descobrir o que é afinal o apocalipse: O terceiro segredo de Fátima traria essa desafortunada revelação do fim da Igreja; as viradas dos milênios prefigurariam grandes tragédias, segundo os profetas de ocasião. As duas grandes guerras também alimentaram a desesperança de que o fim estava próximo, e até aos discos voadores foram atribuídos sinais do céus anunciadores do fim dos tempos. Bobagens intermináveis.

Não foram poucos os autores que se empenharam ao exame do Apocalipse sob todos as perspectivas  religião, psicanálise, simbolismos, mitos, antropologia, sociologia. De certa forma, todos desembocam no mesmo ponto de origem  o homem! Surpreso? Esperava algo diferente? O apocalipse seria o humano? Por que não? Se você ainda tem dúvida depois de tudo o que leu, principalmente nas últimas semanas, então vamos pensar juntos.

Estou fortemente propenso a pensar que Dante não descreveu o ser humano em sua inteireza na Commedia. Não. Ele concebeu seu Inferno em covas escalonadas e lá despejou toda sorte de malfeitores com suas mazelas, ignomínias e expiações sim, mas creio que impôs limites à sua própria criação, consciente ou não. Commedia não só é a melhor descrição do inferno como também, e principalmente, pela lógica,  da nossa terrível natureza. Talvez ele soubesse que o ser humano é muito pior do que aparenta, e preferiu abrandar sua narrativa a arrepende-se por ir tão mais longe. Ou tão mais fundo. Sabíamos das punições, agora sabemos a razão delas: O apocalipse somos nós, cada um de nós. Repito a frase do post anterior: Depende do que você quer ser. Eis a questão: O que você quer ser?

A revelação está em nós, o encontro com a Besta é o encontro consigo próprio. É quando as máscaras caem, as armaduras se rompem, os escudos se quebram. Quem revela o quê? O homem revela o homem, e só ele pode fazer isso. Não é pela forma das sombras que se encontra a origem da luz? E, quando você pensar que chegou ao mais negro de si mesmo, acredite, não terá chegado nem à metade! Peguei pesado? Diga isso a Freud (sublinhado meu):
Os instintos não se deixam reprimir; e seria ingênuo pensar que, caso sejam reprimidos, deixem de existir. A única coisa que se pode conseguir é fazê-los retroceder do plano consciente ao inconsciente; porém, neste caso, eles se acumulam perigosamente deformados no fundo do espírito, e em sua constante fermentação, dão origem a inquietações nervosas, perturbações e doenças.
Acho que não preciso traduzir “inquietações nervosasperturbações e doenças, preciso? Você tem noção disso. mas quanto de ciência há em sua consciência? Como o título do post foi inspirado em Shakespeare, é com ele que encerro sobre Esta consciência, que faz de todos nós, covardes”. A conversa não termina aqui, vem mais nas próximas semanas, no mesmo tom.


Nota: Sobre o caso do figurão do governo que tentou matar um juiz relatado na edição passada, apesar de nada ser, o sujeito fez escola! Agora foi a vez de um procurador da Fazenda atentar contra a vida de uma juíza que sequer conhecia, atingindo-a de raspão. Aos brados, enalteceu o tal procurador da República como “exemplo a ser seguido”. Se essa é a lógica da insanidade, então há algo de muito podre no reino da mente. Os ventos gelados da tempestade estão soprando forte, mas você só vai senti-la realmente quando respingar em sua vida.

* Do grego sym ballein – unir, ligar; dia ballein – separar, apartar.
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¹ (...) construindo uma civilização que, em algum momento, não se diferenciará mais da barbárie, será a civilizarbárie.
² Raquel F. Parmegiani, O apocalipse e o imaginário do medo nas iluminuras medievais. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo, julho 2011.
³ Wotan - Na mitologia germânica, o poderoso deus das tormentas, equivalente a Odin na mitologia escandinava e Zeus na grega.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

POÉTICA DO PESADELO-6


A taxonomia humana nos define como animais da classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, família dos hominídeos, gênero humano, espécie sapiens. Em alguns milhões de anos, o desenvolvimento natural da espécie processou ajustes e adaptações profundas e singulares que nos destacaram substancialmente dos demais seres: habilidade manual (polegar opositor flexível), equilíbrio esquelético e andar ereto são algumas delas, mas é no cérebro a magistral diferença, a estrutura mais impactante que fez com que saíssemos definitivamente das cavernas e da árvore genealógica dos primatas para construirmos o ramo independente da cultura – fala, linguagem, pensamento abstrato, numerosidade, lógica, altruísmo, etc.

Morin levanta questões aparentemente antitéticas: o homem não é constituído por camadas distintas, uma biomaterial e outra psicossocial, mas por uma totalidade biopsicossociológica. Ele rejeita a cisão entre biologia (ciência natural) e antropologia (ciência social), entendendo que a chave da cultura encontra-se na nossa natureza, e a chave da nossa natureza na cultura, ou seja, o homem, desde sempre, “reescreveu-se” continuamente como um ser profundamente original, mas sem um propósito definido: uma unidade na diversidade, a diversidade na unidade.

Se a biologia, com sua concepção “estreita e hermética”, e a antropologia com sua concepção “insular e sobrenatural” são em si insuficientes para descrever o ser, Morin propõe uma teoria aberta baseada na auto-organização e na lógica da complexidade, preferindo chamar de “homem insular”, porque suas conexões não eram consideradas, porém, ele deve ser visto como produto de um sistema que ele chama de policêntrico – nem só biológico nem só cultural, mas um sistema aberto, peninsular

O inventário dos arrazoados todos que foram trazidos até você, a despeito de uma produção gigantesca ter ficado de fora por razões óbvias, em conjunto com a observação atenta do momento atual em todas as esferas, permitem considerações críticas e objetivas, sem julgamentos. Minha visão de mundo depara com uma realidade que confere legitimidade ao proposto aqui e ao olhar dos autores citados, qual seja, o de um estado de natureza em erupção, fora do controle das instituições e sem qualquer perspectiva de uma normalidade minimamente aceitável. Estudos europeus e americanos¹ revelaram o diagnóstico alarmante de que a humanidade está se tornando menos inteligente, se preferir, mais burra, o que significa que uma aluvião de tragédias parece iminente e inevitável. A malha social está se rasgando. Em 1973, Horkheimer já demonstrava essa preocupação:
A razão jamais digeriu verdadeiramente a realidade social, mas hoje está tão completamente expurgada de quaisquer tendências ou preferências específicas que renunciou por fim, até mesmo a tarefa de julgar as ações e o modo de vida do homem. Entregou-se à sanção suprema aos interesses em conflito aos quais nosso mundo parece estar realmente abandonado. O resultado disso é o desterro da razão .
 Antes dele, em 1930, Freud apontava tais sintomas expressando seu temor:
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo.
O homem nunca soube quem ou o que é, e nunca saberá, porque ele é, literalmente, o desdobramento contínuo de uma complexidade sempre inacabada, de subjetividades e contradições internas. Não compreende o significado da vida e desconhece seu lugar e seu papel no jogo cósmico. A religião não lhe dá respostas por ser pura ilusão, e a ciência, quando faz, levanta novas indagações. Entre rezar e pensar, entre ilusão e real, o que você acha que ele prefere? O que você prefere?

O homem não suporta e não consegue sublimar a orfandade, o desamparo e a angustiante miséria existencial. Suas muitas marcas de nascença se transformaram em chagas profundas que nunca cicatrizaram, determinando os traços constitutivos do ser: idiossincrático, heterônomo, amoral e aético; irreflexivo, perverso, covarde, infantil e ressentido. Desejante, fraturado, perdido na solidão e no silêncio, um grande vazio dentro de outro ainda maior. Anthropos sapiens que leva nas costas um cadáver postergado pelas savanas em meio a uma pletora de signos.

A barbárie que nos ameaça não vem de fora, vem de dentro, com as faces da Quimera – violenta e traiçoeira – e não veremos Belerofonte cavalgando Pégasos vindo nos salvar. Apocalipse? Talvez, depende do que você quer ser. Não entendeu? Quando um médico que, em princípio, se propõe a salvar vidas, por convicções políticas extremadas aplaude um alto membro do Governo que confessa tentar matar um ministro do Judiciário, então a barbárie já começou. Isto não é ficção, saiu nas redes. “Nada do que é humano me surpreende”(Terentius). Entendeu agora? Semana que vem tratamos disso.