Obras

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terça-feira, 16 de julho de 2019

 
APENAS UM PONTO



Após uma pausa necessária, cujos motivos explicarei em outro momento, este blog volta ao circuito, com uma diferença – sua periodicidade não será mais semanal, mas apenas quando assuntos realmente relevantes justificarem sua publicação e o debate. Assim, recentemente, uma amiga enviou um vídeo intitulado “Pálido ponto azul”, produzido a partir do livro homônimo de Carl Sagan publicado em 1994. Extraí o áudio na íntegra para uma oportuna reflexão, lembrando que é apenas um recorte da obra. Sagan se inspirou quando, ao passar pela órbita de Saturno, a nave Voyager fotografou a Terra distante 1,4 bilhão de quilômetros. Fiz pequenos ajustes para adequar a narração ao texto escrito.Um pouco de lirismo vai bem nos dias atuais.
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A espaçonave estava bem longe de casa, e eu pensei que seria uma boa ideia, logo depois de Saturno, fazê-la dar uma última olhada em direção de casa. De Saturno, a Terra parecia muito pequena para a Voyager apanhar qualquer detalhe. Nosso planeta seria apenas um ponto de luz, um pixel solitário, dificilmente distinguível de muitos outros pontos de luz que a nave avistaria – planetas vizinhos, sóis distantes, mas, justamente por causa dessa impressão de nosso mundo assim revelado, valeria a pena ter tal fotografia.

Já havia sido bem entendido por cientistas e filósofos da Antiguidade clássica que a Terra era um mero ponto de luz em um vasto cosmo circundante, mas ninguém jamais a tinha visto assim. Aqui estava a nossa primeira chance, e talvez a última nas próximas décadas.

Então, aqui está! A Terra parece que está apoiada em um raio de sol como se houvesse alguma coisa especial para esse pequeno mundo, mas é apenas um acidente ótico. Não tem sinal nenhum de humanos nessa foto, nem nossas mudanças da superfície da Terra, nem nossas máquinas, nem nós mesmos. Desse ponto de vista, nossa obsessão com o nacionalismo não aparece em evidência. Nós somos muito pequenos. Na escala dos mundos, humanos são irrelevantes, uma fina película de vida num solitário torrão de rocha e metal.

Olhe novamente para esse ponto: ele é nosso lar, ele xsomos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas, a totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas. Cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada jovem casal apaixonado, cada pai e mãe, cada criança esperançosa, cada inventor e explorador, cada educador, político corrupto, superstar, “líder supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, num grão de poeira suspenso em um raio de Sol.

A Terra é um minúsculo palco em uma imensa arena cósmica. Pense nas infindáveis crueldades infligidas pelos habitantes em um canto desse pixel nos quase imperceptíveis habitantes de algum outro canto, ou quão frequentemente são seus mal-entendidos, sua ânsia por se matarem, o quão fervorosamente eles se odeiam.

Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores para que, em sua glória e triunfo, pudessem se tornar os mestres momentâneos de uma fração de um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginária auto-importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo é desafiada por esse pálido ponto de luz. Nosso planeta é um espécime solitário na grande e envolvente escuridão cósmica.
Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão não há nenhum indício que ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nós mesmos. A Terra é o único mundo conhecido até agora que sustenta a vida. Não há outro. Não há lugar algum, pelo menos no futuro próximo, em que nossa espécie possa imigrar. Visitar, talvez, assentar-se, não. Gostando ou não, por enquanto, a Terra é onde temos de ficar.

Tem-se falado da Astronomia como uma experiência criadora de firmeza e humildade. Não há, talvez, melhor demonstração das tolas e vãs soberbas humanas do que essa imagem distante de nosso pequeno mundo. Ela enfatiza a nossa responsabilidade de tratarmos mais amavelmente uns aos outros, de preservar e acarinhar o único lar que conhecemos – esse pálido ponto azul.

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