Obras

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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017


ESPELHO QUE NOS REVELA - 1 

Crer em criaturas fabulosas é como estar diante de um espelho prodigioso que nos permite ver e entender a nós próprios de maneira muito mais clara e verdadeira, desde que se tenha coragem para tal. Confrontar o mundo exterior é encarar o mundo interior, real termômetro de nossa estabilidade psíquica e mental. Ainda que com ressalvas, Jung afirmava que a maior vitória da sanidade foi a conquista da racionalidade. Assim como o mito, a religião e a ficção – e aqui nos permitimos uma breve digressão, a arte também tem ligações com as forças inconscientes. Aniela Jaffé, discípula de Jung, estudou o modo como a arte moderna pretende restabelecer aquelas conexões, mostrando quais são os símbolos religiosos subjacentes a esse movimento artístico.

O escritor e roteirista Lúcio Manfredi destaca esse aspecto. Tomando por base para exemplificar a produção artística de Salvador Dalí e René Magritte, ele postula que um dos motivos pelos quais o estudo das obras de arte é útil para compreender o fenômeno Óvni é a vertente psicossociológica porque, independentemente de sua origem, os discos voadores são uma espécie de espelho no qual, à maneira das figuras de Rorschach, o homem projeta as questões centrais de sua vida e de sua sociedade. Se no mundo exterior surge algo novo, estranho à nossa compreensão, só podemos recorrer a signos igualmente novos para interpretá-lo, e não ficar tentando adivinhar possíveis respostas ou arranjando explicações  espúrias e delirantes.


É isso que faz a psicóloga junguiana ao relatar que os rumores sobre discos voadores começaram a circular mais ou menos na mesma época em que o símbolo do círculo tornou-se dominante na pintura moderna. Usando como referências Vassily Kandinsky, Paul Klee e Pierre Delaumay (sequência abaixo), entre outros, Jaffé sugere que tanto essas obras quanto as aparições dos discos sejam interpretados como uma tentativa da psique inconsciente coletiva para curar a dissociação de nossa época apocalíptica através do símbolo do círculo.

Contudo, o espelho revela algo além do que nossos olhos veem: revela, na verdade, o que não vemos. E o que não vemos ou não queremos ver? Quando diante do espelho, literal ou alegórico - o cinema ou a ficção, por exemplo - o que está refletida é a imagem do Narciso em nós, não do 'monstro' que nos habita e que nos escapa como viajante nômade.

O monstro nunca pode ser contemplado, já que o espelho não reproduz sua imagem. O espelho refletirá sempre a divindade, o herói: se a face do Outro revela a nossa, ela não pode jamais ser “ultrajada”, pois que feita “à imagem e semelhança do Criador”, logo, o monstro "não existe", e por não existir, será ignorado. A presença do monstro representa uma anomalia, um desvio, uma (dis)torção, um afastamento do modelo divino, ou seja, uma condenação do corpo. Para Umberto Eco, o espelho fala a verdade de modo desumano – a perda da ilusão sobre a própria juventude. Mas o monstro existe, e por ele se colocam questões extremamente contemporâneas, porque precisamos de sua imagem para retomar a reflexão sobre a humanidade do homem, uma vez esgarçadas as certezas de sua identidade e integridade. 

Diante deste quadro, embora Tucherman refira-se mais diretamente ao hibridismo dos cyborgs, entendo e aplico sua escrita a qualquer outro, monstro ou não: “Pois não é a oposição simples que marca a diferença entre monstros e homens, mas um sistema complexo de aproximações e distâncias. Sendo o Outro, ele não é externo como deuses e animais, vigora sempre no limite do humano, um limite “interno”, produtor de figuras estranhas em relação às quais não deixamos de nos perguntar se são efetivamente humanas, já que nos surgem como a folia do corpo, o desregramento da cultura, a desfiguração do Mesmo no Outro. Como algo com o qual não nos confundimos, mas também não nos diferenciamos totalmente: nesse sentido, sua definição é instável e sua alteridade é móvel.” No mesmo texto, ela cita um pensamento de Ralph Waldo Emerson, de 1832: “Os sonhos e as bestas são duas chaves através das quais vamos descobrir nossa natureza, são objetos de prova”.

Sherry Turkle, também citada por Tucherman, afirma que ele, Emerson, “encontrara (antecipara) os objetos de pensamento da modernidade, sendo profético: Freud pensou a racionalidade confrontando-a com o sonho; Darwin e seguidores pensaram o mesmo confrontando o homem com a natureza: o mundo das bestas visto como nosso passado e ascendência”. Tucherman finaliza: “Os monstros talvez existam para nos mostrar o que poderíamos ser, não o que somos, mas também não o que nunca seríamos, e assim articulam a questão: Até que grau de deformação ou estranheza permanecemos humanos?”

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Lúcio Manfredi, Os Óvnis da Dalí. Metaxy, Rio de Janeiro, 2003.
Carl G. Jung, O Homem e seus Símbolos. Noca Fronteira, 19686.
Ieda Tucherman, Breve História do Corpo e de seus Monstros. Vega, Lisboa, 1999.
_______. A ficção científica como narrativa do mundo contemporâneo.
www.comciencia.br/reportagens/2004/10/09.html. Acessado em 12/01/2014.
Umberto Eco. Signo. São Paulo. Presença. 2005.
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