O OUTRO NO ESPELHO DE NARCISO, QUEM É?
Apesar de
narcisismo ter sido referido pelo viés filosófico no curso dos meus estudos,
não posso deixar de fazer uma brevíssima inserção sobre o Mito de Narciso pelas
letras da Psicanálise, de onde emergem as melhores definições. Para isso,
exploro um pouco a competência de Ana Vicentini:
Podemos também ver esse jogo¹ sob a ótica do mesmo e do outro, do paradoxo que preside à pulsão de Eros: na busca do outro, busca-se o que falta a si mesmo, busca-se a reparação ou ortopedia da falta e, em última instância, a perfeição do Todo. O que o mito erótico de Narciso sublinha, em cores trágicas, é que essa busca pela completude necessariamente passa pelo outro, mas por um outro não mais tomado como tal, mas reduzido à imagem de si, a um reflexo. É com esse reflexo, com essa “sombra tomada como substância”, que Narciso se identifica e na qual se perde de forma trágica. Ao invés do jogo amoroso da reciprocidade, Narciso põe cruamente em jogo a lógica da reflexividade, da confluência sobre si de sujeito e objeto, encerrando-se em uma circularidade mortífera.
Nesse ponto, Ana
enfatiza que é no mito de Narciso que a Psicanálise encontra uma valiosa fonte
para teorizações sobre identidade e identificações, e acrescenta que Lacan
também se ocupou bastante com o drama do espelho em seu conhecido trabalho
"O estádio do espelho como formador da função do eu". "A criança (l’infans)
é capturada pela imagem completa e totalizante de seu corpo, fragmentário e sem
coordenação, que se forma no espelho. A imagem especular precipita-o de um
estado de prematuração motriz, inerente à espécie humana, como lembrou Freud,
ao regozijo de uma imagem que justamente vai conformar esse corpo despedaçado
em uma ilusória totalidade."
Freud também se
ocupou do mito, construindo a concepção metapsicológica de sua teoria sob os
pressupostos básicos da noção de sexualidade do aparelho psíquico e do recalque
observados na prática diária. Contudo, é quando ele começa a compreender as
psicoses a partir dos preceitos psicanalíticos que se iniciam as revisões e
inovações em sua visão, surgindo a partir daí o conceito de narcisismo. Freud
atesta a aplicabilidade da teoria sexual também às psicoses, firmando a
sexualidade como propulsora do funcionamento do aparelho psíquico. Mesmo
partindo da psicose, Freud não se limita a ela, ampliando o narcisismo também
às neuroses. No transcorrer do estudo, ele relaciona as pulsões sexuais com
“necessidades”, que chama de pulsão de autoconservação.
Aos poucos, Freud
vai adensando seu trabalho, e em “Totem e Tabu” ele reformula sua concepção,
afirmando que o narcisismo não seria apenas uma fase passageira do
desenvolvimento sexual do sujeito, e sim uma estrutura perene, envolvida na
formação do Eu. Por fim, usa das observações da esquizofrenia, da vida mental
de crianças e dos povos primitivos para desenvolver o conceito do narcisismo.
Segundo ele, enquanto na esquizofrenia há uma retirada da libido do mundo
externo para o Eu, na neurose a libido retirada dos objetos externos será
investida nos objetos da fantasia. Para finalizar, em “Além do Princípio do
Prazer”, Freud introduz o conceito de pulsão de morte, substituindo os termos
pulsões do eu e pulsões sexuais por pulsões de vida e pulsões de morte, que
teriam desdobramentos em outras obras.
Ainda para Ana
Vicentini,
Paralelamente ao júbilo que essa imagem especular provoca, permanece, tal como para Narciso, o hiato entre ela e o sujeito: ao mesmo tempo em que ela sou eu, ela é outro que não eu. Para estabilizar esse pequeno júbilo delirante, há a presença de um terceiro termo, de um grande Outro (na expressão de Lacan), diverso desse pequeno outro identificatório da imagem, que pode aquiescer ou negar a exclamação de Narciso ao se reconhecer: “Iste ego sum.” (Este sou eu.) Dito de outra forma, subjacente a essa imago idealmente completa, há uma tensão paranóica em relação ao que esse Outro pode fazer: reconhecer o reconhecimento ou negá-lo, afirmar o sujeito ou negá-lo. Esse drama, cuja dimensão de ficção, de metáfora, não nos deve passar desapercebida, adquire o status de uma matriz na estruturação subjetiva e irá presidir às relações do sujeito com o mundo.
Segundo
Lipovetsky, toda geração costuma eleger uma figura mitológica ou lendária para
se identificar, reinterpretando-a de acordo com o momento vivido. “Hoje em dia
é Narciso que, aos olhos de considerável número de pesquisadores [...]
simboliza os tempos atuais.” Instala-se, dessa forma, um novo paradigma de
individualismo, que designa um novo perfil nas relações do sujeito consigo
próprio, com seu corpo, com o outro, com o mundo, com o tempo, no momento em
que surge uma cultura inteiramente voltada ao hedonismo e ao permissivo.
A comprovação do
heliocentrismo retirou do homem o protagonismo na peça cósmica, Deus deixa de
ser o centro do conhecimento, deslocando a verdade mais uma vez. Demolir um
dogma de mais de mil anos, ir contra todas as concepções geocêntricas de
Ptolomeu e todos os saberes da Bíblia e os ditames da Igreja era algo
inaceitável, mas o golpe foi letal e certeiro na autoestima e no orgulho do
homem. Não bastasse essa dura realidade, 200 anos depois foi a vez de Darwin
lacerar a alma ao demonstrar que éramos apenas uma consequência natural da
evolução da vida no planeta, aparentados com os primatas, uma espécie
proveniente da combinação aleatória de genes, e não uma criação divina. Como
escreveu Millôr Fernandes com acre ironia, “O homem é um macaco que não deu
certo”. Os pilares dos estatutos religiosos começavam a ceder.
E o derradeiro
golpe e desferido por Freud, ao apresentar as bases científicas sobre o
inconsciente. O homem deixava definitivamente de ser o centro do mundo e senhor
de si mesmo. Sua dignidade se esfacelara, e nessa topografia acidentada ele
começava a conhecer sua frouxidão, seus temores e suas inquietudes,
escancarando sua vulnerabilidade mais profunda, comprovando quão longe está da
maioridade no calendário do universo. Condensando esse trajeto, o homem deixou
de ser o centro do Universo (Copérnico), o centro da espécie (Darwin) e, como
último prego do caixão, o centro de si mesmo (Freud), isto é, não passa de uma
criatura vazia que só sobrevive graças à sua estrutura de linguagem. E é a
linguagem o define.
"O espelho de
Narciso" - completa Ana - "mapeia todo um campo visual onde se
constroem e destroem imagens, identidades - ou melhor, identificações -,
relações amorosas e revela, como em um baixo-relevo, um outro registro
subjacente a esse cenário imaginário. Ama-se a si próprio através do outro
e assim se confunde a reciprocidade do amar e ser amado, da voz ativa
e passiva, tão cara, por exemplo, à tradição cristã. Uma confusão de vozes
verbais que pode ser vista pela ótica de uma voz marcante da língua grega,
a voz média, de valor reflexivo, cuja importância para a gramática da
psicanálise foi ressaltada tanto por Freud quanto por Lacan no
que concerne às vias e aos desvios da pulsão."
Achou o tema
complexo? Eu também, mas quem disse que é fácil compreender a nós mesmos? Há
muito mais por debaixo dessa fina película que nos reflete. Tomando como ponto
de partida o delicado poema de Cecília Meireles - "Em qual espelho ficou
perdida minha face?", podemos divagar... De quantos espelhos preciso para
encontrar minha face? Qual deles a revelará? O que revelará?
¹ “Ele ama uma esperança sem substância
e crê que é substância o que é somente sombra.” Ovídio (43 a.C. -18 d.C.)
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Gilles Lipovetisky, A
Era do Vazio. Manole, 2005.
Sigmund Freud, Totem e Tabu. Cia. das Letras, 1999.
Encerrou o blog, seu Reis, ou o assunto se esgotou?
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