Obras

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2017


O OUTRO NO ESPELHO DE NARCISO, QUEM É?



Apesar de narcisismo ter sido referido pelo viés filosófico no curso dos meus estudos, não posso deixar de fazer uma brevíssima inserção sobre o Mito de Narciso pelas letras da Psicanálise, de onde emergem as melhores definições. Para isso, exploro um pouco a competência de Ana Vicentini:
Podemos também ver esse jogo¹ sob a ótica do mesmo e do outro, do paradoxo que preside à pulsão de Eros: na busca do outro, busca-se o que falta a si mesmo, busca-se a reparação ou ortopedia da falta e, em última instância, a perfeição do Todo. O que o mito erótico de Narciso sublinha, em cores trágicas, é que essa busca pela completude necessariamente passa pelo outro, mas por um outro não mais tomado como tal, mas reduzido à imagem de si, a um reflexo. É com esse reflexo, com essa “sombra tomada como substância”, que Narciso se identifica e na qual se perde de forma trágica. Ao invés do jogo amoroso da reciprocidade, Narciso põe cruamente em jogo a lógica da reflexividade, da confluência sobre si de sujeito e objeto, encerrando-se em uma circularidade mortífera.
Nesse ponto, Ana enfatiza que é no mito de Narciso que a Psicanálise encontra uma valiosa fonte para teorizações sobre identidade e identificações, e acrescenta que Lacan também se ocupou bastante com o drama do espelho em seu conhecido trabalho "O estádio do espelho como formador da função do eu". "A criança (l’infans) é capturada pela imagem completa e totalizante de seu corpo, fragmentário e sem coordenação, que se forma no espelho. A imagem especular precipita-o de um estado de prematuração motriz, inerente à espécie humana, como lembrou Freud, ao regozijo de uma imagem que justamente vai conformar esse corpo despedaçado em uma ilusória totalidade."

Freud também se ocupou do mito, construindo a concepção metapsicológica de sua teoria sob os pressupostos básicos da noção de sexualidade do aparelho psíquico e do recalque observados na prática diária. Contudo, é quando ele começa a compreender as psicoses a partir dos preceitos psicanalíticos que se iniciam as revisões e inovações em sua visão, surgindo a partir daí o conceito de narcisismo. Freud atesta a aplicabilidade da teoria sexual também às psicoses, firmando a sexualidade como propulsora do funcionamento do aparelho psíquico. Mesmo partindo da psicose, Freud não se limita a ela, ampliando o narcisismo também às neuroses. No transcorrer do estudo, ele relaciona as pulsões sexuais com “necessidades”, que chama de pulsão de autoconservação.

Aos poucos, Freud vai adensando seu trabalho, e em “Totem e Tabu” ele reformula sua concepção, afirmando que o narcisismo não seria apenas uma fase passageira do desenvolvimento sexual do sujeito, e sim uma estrutura perene, envolvida na formação do Eu. Por fim, usa das observações da esquizofrenia, da vida mental de crianças e dos povos primitivos para desenvolver o conceito do narcisismo. Segundo ele, enquanto na esquizofrenia há uma retirada da libido do mundo externo para o Eu, na neurose a libido retirada dos objetos externos será investida nos objetos da fantasia. Para finalizar, em “Além do Princípio do Prazer”, Freud introduz o conceito de pulsão de morte, substituindo os termos pulsões do eu e pulsões sexuais por pulsões de vida e pulsões de morte, que teriam desdobramentos em outras obras. 

Ainda para Ana Vicentini,
Paralelamente ao júbilo que essa imagem especular provoca, permanece, tal como para Narciso, o hiato entre ela e o sujeito: ao mesmo tempo em que ela sou eu, ela é outro que não eu. Para estabilizar esse pequeno júbilo delirante, há a presença de um terceiro termo, de um grande Outro (na expressão de Lacan), diverso desse pequeno outro identificatório da imagem, que pode aquiescer ou negar a exclamação de Narciso ao se reconhecer: “Iste ego sum.” (Este sou eu.) Dito de outra forma, subjacente a essa imago idealmente completa, há uma tensão paranóica em relação ao que esse Outro pode fazer: reconhecer o reconhecimento ou negá-lo, afirmar o sujeito ou negá-lo. Esse drama, cuja dimensão de ficção, de metáfora, não nos deve passar desapercebida, adquire o status de uma matriz na estruturação subjetiva e irá presidir às relações do sujeito com o mundo.
Segundo Lipovetsky, toda geração costuma eleger uma figura mitológica ou lendária para se identificar, reinterpretando-a de acordo com o momento vivido. “Hoje em dia é Narciso que, aos olhos de considerável número de pesquisadores [...] simboliza os tempos atuais.” Instala-se, dessa forma, um novo paradigma de individualismo, que designa um novo perfil nas relações do sujeito consigo próprio, com seu corpo, com o outro, com o mundo, com o tempo, no momento em que surge uma cultura inteiramente voltada ao hedonismo e ao permissivo.

A comprovação do heliocentrismo retirou do homem o protagonismo na peça cósmica, Deus deixa de ser o centro do conhecimento, deslocando a verdade mais uma vez. Demolir um dogma de mais de mil anos, ir contra todas as concepções geocêntricas de Ptolomeu e todos os saberes da Bíblia e os ditames da Igreja era algo inaceitável, mas o golpe foi letal e certeiro na autoestima e no orgulho do homem. Não bastasse essa dura realidade, 200 anos depois foi a vez de Darwin lacerar a alma ao demonstrar que éramos apenas uma consequência natural da evolução da vida no planeta, aparentados com os primatas, uma espécie proveniente da combinação aleatória de genes, e não uma criação divina. Como escreveu Millôr Fernandes com acre ironia, “O homem é um macaco que não deu certo”.  Os pilares dos estatutos religiosos começavam a ceder. 

E o derradeiro golpe e desferido por Freud, ao apresentar as bases científicas sobre o inconsciente. O homem deixava definitivamente de ser o centro do mundo e senhor de si mesmo. Sua dignidade se esfacelara, e nessa topografia acidentada ele começava a conhecer sua frouxidão, seus temores e suas inquietudes, escancarando sua vulnerabilidade mais profunda, comprovando quão longe está da maioridade no calendário do universo. Condensando esse trajeto, o homem deixou de ser o centro do Universo (Copérnico), o centro da espécie (Darwin) e, como último prego do caixão, o centro de si mesmo (Freud), isto é, não passa de uma criatura vazia que só sobrevive graças à sua estrutura de linguagem. E é a linguagem o define.

"O espelho de Narciso" - completa Ana - "mapeia todo um campo visual onde se constroem e destroem imagens, identidades - ou melhor, identificações -, relações amorosas e revela, como em um baixo-relevo, um outro registro subjacente a esse cenário imaginário. Ama-se a si próprio através do outro e assim se confunde a reciprocidade do amar e ser amado, da voz ativa e passiva, tão cara, por exemplo, à tradição cristã. Uma confusão de vozes verbais que pode ser vista pela ótica de uma voz marcante da língua grega, a voz média, de valor reflexivo, cuja importância para a gramática da psicanálise foi ressaltada tanto por Freud quanto por Lacan no que concerne às vias e aos desvios da pulsão."

Achou o tema complexo? Eu também, mas quem disse que é fácil compreender a nós mesmos? Há muito mais por debaixo dessa fina película que nos reflete. Tomando como ponto de partida o delicado poema de Cecília Meireles - "Em qual espelho ficou perdida minha face?", podemos divagar... De quantos espelhos preciso para encontrar minha face? Qual deles a revelará? O que revelará?
 

¹ “Ele ama uma esperança sem substância e crê que é substância o que é somente sombra.” Ovídio (43 a.C. -18 d.C.)
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Ana Vicentini de Azevedo, Mito e Psicanálise . J. Zahar, 2004.
Gilles Lipovetisky, A Era do Vazio. Manole, 2005.
Sigmund Freud, Totem e Tabu. Cia. das Letras, 1999.

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