Obras

Obras

sexta-feira, 22 de junho de 2018


Vertigo II, bronze, 2014. Cortesia Matteo Pugliese. Milano, Itália.
EM BUSCA DO ÚTERO PERDIDO
A face do Anjo da História está voltada para o passado. Onde nós percebíamos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única que continua empilhando destroços e jogando-os diante dos seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos, e tornar inteiro o que foi esmagado. Mas uma tempestade está soprando do paraíso; o anjo ficou preso em suas asas com tal violência que não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impulsiona irresistivelmente em direção ao futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto a pilha de escombros cresce, diante dele, rumo ao céu. A tempestade é o que chamamos progresso.

A citação é de Walter Benjamin em Teses sobre o Conceito de História (1940), uma interpretação da obra de Paul Klee, Angelus Novis, de 1920. Não difere muito do que o nosso velho conhecido Zygmunt Bauman vem dizendo há anos, nem do que outros nomes de igual estatura debatem há décadas. Nenhum deles veste manto de profeta, não têm bola de cristal, não consultam astros e cartas e oráculos e não fazem jogo de adivinhação. É uma antevisão do futuro com um pé no passado e a mão no presente. É com base nisso e mais um pouco, e nas duas últimas obras do sociólogo polonês  - O Retorno do Pêndulo e a póstuma Retrotopia que proponho uma breve reflexão sobre a nossa velha conhecida ufotopia. Mas não só sobre ela. Em tempo, a citação está reproduzida em Retrotopia.

Havia crença, esperança e otimismo no futuro até algumas décadas atrás. O horizonte era pleno e plano, sol e céu estrelado. Podia-se planejar a vida para os próximos anos com bastante segurança e garantia de sucesso. Em meados dos anos 1980, contudo, principalmente no terreno cultural, que quase sempre é reflexo e vaticínio do mundo, começou-se a perceber que entrávamos na era do “re” - reformulações, reciclagens, revivalismos, reedições, retrospectivas, repaginações, vislumbrando-se certa paralisia, como se a única opção fosse voltar melancolicamente ao passado. Mesmo  assim, a certeza no progresso permanecia intacta. Mas a história segue seu curso, e esse sentimento de perenidade foi perdendo vitalidade, prenúncio da extinção. A juventude questionando duramente os modelos tradicionais, desconfiança crescente das elites políticas e das instituições; desigualdades sociais acentuadas, crises no desemprego e na segurança e falta de perspectiva como decretação irreversível do fim das utopias.

A ideia central de uma grande massa de autores se assenta em algumas palavras-chave já trazidas aqui - incerteza, instabilidade, volatilidade, voracidade, vulnerabilidade, só para ficar nas mais óbvias. Quando desdobramos a análise de cada uma delas, nosso giroscópio interno enlouquece, nossa bússola rodopia e não mais nos orienta, ou seja, ficamos à deriva no meio do nada. "O que o pensamento do futuro tende a trazer à mente de hoje é a ameaça de ser descoberto e rotulado como inapto para a tarefa, com seu valor e dignidade negados, marginalizados, excluídos e banidos", decreta Bauman¹. Para ele, o Anjo da História de Klee está em pleno voo. Ao passado. "Sua face está girando do passado para o futuro, mas suas asas sendo puxadas para trás pela tempestade, golpeando esse tempo do futuro imaginado, precipitado e antecipadamente temido em direção ao paraíso do passado (ele próprio imaginado retrospectivamente, depois de ter sido perdido e reduzido a ruínas)." A pressão sobre as asas é tão violenta que ele não pode mais fechá-las.

Novas expressões começam a povoar as discussões acadêmicas e não acadêmicas: "Em busca do abrigo primal" e "De volta às tribos" são algumas, e outra interessante é ainda mais clara - "Caverna retrotópica platônica", cunhada pelo historiador Leandro Karnal. A magnitude do tema extrapola estas linhas, portanto fico por aqui. Vamos ver isso no cotidiano. 

Você leu aí em cima Em busca do abrigo primal. Você leu nos posts anteriores bolha epistêmicacâmara de ecosala de espelhos, referências explícitas para caverna. Qual caverna não produz eco? O que isto quer dizer? Que dizer que o homem está se isolando, usando a tecnologia como forma de manter-se abrigadoprotegidoseguro e anônimo - sem identidade -, sem romper o fio umbilical com a 'civilização'. Liberdade e segurança, exposição e proteção - um paraíso, só que por trás de uma tela fechado entre quatro paredes. Ou dentro de uma bolha. Que paraíso é esse? Lembra da multidão de solitários, da geração de surdos? Não seria uma forma dissimulada de culto à personalidade?

O que isso tem a ver com a ufotopia? O que tenho observado pelas lentes da minha experiência, é que os ufólogos já não estão nem aí se disco voador existe ou não, ele é um mero "detalhe"! O que lhes importa realmente é continuar com a algaravia discursiva com a aquiescência da tribo para seguir brincando de ciência e animando picadeiros. Reitero que há anos eles tentam inutilmente provar o improvável, defender o indefensável, sustentar o insustentável, recusando-se a aceitar o fracasso anunciado. e é sabido que repetir continuamente uma ação esperando por resultados diferentes é indicativo inequívoco de esquizoidia. Para quem não sabe, esquizoidia é um conjunto de sintomas potenciais de esquizofrenia como, por exemplo, dificuldade de adaptação à realidade e forte predisposição ao devaneio. T
orna-se fundamental, portanto, manter o circo falido com seu disco voador de papel, é sua referência identitária. Tire isso deles e não terão mais um rosto para ser visto na sala de espelhos e suas vozes ecoarão no vazio de suas existências. Quem não vê o próprio rosto não vê o rosto do outro; quem não vê o outro não vê a si mesmo. Quem não vê seu rosto vê o que, vê quem? Quem não vê a si e ao outro não pode ver o rosto do mundo e não será visto por ele! A bolha, os ecos e os espelhos os protegem!

Aqui vou mais longe (acho que já escrevi sobre isso em algum momento): Se estamos falando de bolha, caverna, útero... por que não urna, vaso ou nave? Nave, na arquitetura, é a parte central da igreja, ponto sagrado de encontro dos fieis; vaso (de guerra) é o mesmo que navio, do grego naos, do latim navis, nave; urna (também vaso), se mortuária, conserva os ossos, as cinzas, a 'identidade' do morto. Por que não pensar que o "disco voador" - nave, bolha, vaso, útero - não possa ser o "espaço simbólico" que preserva a imagem, o corpo, a 'rosto', 
centro sagrado de convergência de dedicados sectáriosÉ uma reflexão bastante plausível. Ela se inspira na fábula do monge que, caminhando em silêncio pelos jardins do mosteiro na companhia de outro mais velho, pergunta - Será que Jesus existiu?, ouvindo a resposta - Isso não importa, continue orando. E seguiram em muda contemplação.

Em relação à 'caverna platônica retrotópica', nosso útero primitivo, na ufotopia isso parece ser via de mão única. Tenho notado que casos antigos com destaque na imprensa (não necessariamente) têm sido revisitados com o falso verniz de "novos dados investigativos", "novos depoimentos" ou "novos documentos secretos revelados" e outros firulas. Já não é apenas falta de conteúdo - nunca teve -, é não ter mais histórias para contar. Então surge uma "volta às origens", aquilo que era novidade, despertava interesse e promovia debates simplesmente extinguiu-se como fogo fátuo, dando lugar a reminiscências e repetições.

Acabou aquela casuística bizarra que alvoroçou gerações de pesquisadores. A fonte secou, é o fim da farsa. Sobrou vasculhar os arquivos, agarrar-se às lembranças, encantar-se com as sombras na bolha. Não havendo futuro, resta o passado, a retrotopia,
 "Uma terra estranha, território desconhecido, não visitado, não testado, não experimentado". Se o futuro salga nossos sonhos mais doces, a saída é recolher-se de volta ao útero, à bolha. À nave.


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 ¹  https://outraspalavras.net/posts/bauman-assim-chegamos-a-retrotopia/ acessado em 11/05/2018.
BAUMAN, Zygmunt; DESSAL, Gustave. O Retorno do Pêndulo. Zahar. 2017.
_________. Retrotopia. Zahar, 2017.  

Um comentário:

  1. "Acabou aquela casuística bizarra que alvoroçou gerações de pesquisadores. A fonte secou, é o fim da farsa. Sobrou vasculhar os arquivos, agarrar-se às lembranças, encantar-se com as sombras na bolha. Não havendo futuro, resta o passado, a retrotopia, "Uma terra estranha, território desconhecido, não visitado, não testado, não experimentado". Se o futuro salga nossos sonhos mais doces, a saída é recolher-se de volta ao útero, à bolha. À nave".

    É, parece que realmente "não importa o destino e sim, a jornada", seu Reis! De fato, a verdade tem sido posta de lado em favor do "entretenimento", e isto se aplica ao cristianismo, inclusive. Que se danem os fatos!
    Abraço.

    "É mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que elas foram enganadas".
    Mark Twain

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