Obras

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sexta-feira, 6 de julho de 2018


SÓ O PASSADO É PARA SEMPRE


A inspiração para o texto de hoje veio pela análise* feita sobre um capítulo específico da série Westworld exibida pela HBO. Na matéria, o que me chamou a atenção foi a autora, a crítica de cinema Rachel Kraus, roçar num ponto que reacendeu minhas reflexões há muito aquietadas. Estou falando de imortalidade por um viés pouco habitual, razão pela qual são apenas considerações introdutórias que têm relação com o que temos debatido nas últimas semanas aqui.

Rachel traz questões sobre vida e morte, deus e diabo, criação, cita referências bíblicas e míticas, Milton, Dante e outros épicos. Na labiríntica trama da série - e sou obrigado a descrevê-la -, os 'anfitriões' do parque temático foram produzidos de modo a se parecerem tão humanos a ponto de não serem distinguidos destes. Suas lembranças são fabricadas e reelaboradas continuamente assim como sua história pregressa, em um nível de realismo tal de os técnicos tentarem implantar neles uma consciência! Porém, uma falha crítica no sistema das memórias faz com que os androides costurem suas vivências pretéritas e construam um sistema cognitivo próprio que os impele buscar o princípio de tudo, a "memória global" e a matriz de suas vidas sintéticas. Assim, uma espécie de autoconsciência vai se formatando aos poucos. Se tiverem êxito, acreditam poder alcançar a 'individualidade', a liberdade e a imortalidade. Alguém lembrou do replicante Roy Batty, em Blaide Ruuner, e a procura obstinada pelo seu criador e por um pouco mais de tempo de vida

O que quero discutir Rachel nem passa perto. É uma reflexão que venho burilando há tempos e não é nenhum devaneio porque não parto do zero. A literatura, alguns estudos psicanalíticos, sociais e antropológicos me servem de referência. A vivência pessoal, a observação do cotidiano e uma leitura periférica me estimulam prosseguir. A questão é bem complexa e multifacetada, onde dialogam velhice e juventude, memória, passado e futuro, morte e imortalidade, narcisismo, cultura e religião. E olhe que estou falando de divagações preliminares bem modestas.

O título do post anterior, Em busca do útero perdido, sugeria continuidade. Voltar ao "berço primevo" remete subjetivamente a renascimento, ressurreição; se tomarmos este processo como um ciclo contínuo, teremos um recomeço após outro, indefinidamente, ou seja, perpetuidade. Em outros termos, voltar ao passado significa "não morrer jamais". Vejamos este exemplo: Uma mulher viúva, idosa, solitáriafilhos distantes, cujo principal 'passatempo' é folhear constantemente um velho álbum de recordações. Seu tempo presente é permeado de solidão, melancolia e saudade, e o futuro, sem perspectivas, em contagem regressiva. Só lhe esta agarrar-se às lembranças dos tempos vividos. Ao fazê-lo, inconscientemente ela retorna aos "bons tempos", desejando revivê-los, voltar à bela e encantadora mocidade, à doce infância. A cada mirada no álbum esse desejo a invade, e novo e de novo... como ela gostaria de começar tudo novamente, de "eternizar" aqueles momentos! Seu álbum é a "fonte da juventude" sonhada e cantada em prosa e verso, seu "cofre secreto" que guarda confidências e pensamentos irrevelados, esconderijo da alma e do coração.

Estudos científicos sobre o comportamento humano indicam que questões existenciais levam o indivíduo a trabalhar seu narcisismo quando se defronta com a finitude e a precariedade da vida. Freud dizia que desde criança nós nos colocamos como centro do mundo, quanto mais o ego se identifica com a persona, maior é a rejeição daquela parte de si mesmo que não se aceita - a decrepitude, a velhice, a morte. É o puer aeternus - juventude eterna, uma imagem arquetípica dominante de um dos elementos de uma polaridade ativa presente na psique em busca da união com o Outro - o Velho, o Sábio, o Mestre. Deus? Jung via o puer como o arquétipo de criança, especulando que sua fascinação recorrente origina-se da projeção, pelo homem, de sua incapacidade de renovar-se.

Voltar ao passado é olhar para o futuro? Em cero sentido, sim. Mergulhar na memória para reviver o ontem não é simplesmente "paralisar" o tempo e ali ficar, é também expandi-lo para o futuro. Como é? Quando um milionário decide congelar seu corpo para "renascer" daqui a 100 ou 200 anos, ele está se projetando para o futuro, se "imortalizando" de certa forma. Nesse caso, não seria a câmara criogênica ela mesma uma "concha uterina"? Os anfitriões de Westworld  não querem resgatar o passado para garantir o futuro? As religiões não prometem a vida eterna pela fé ao Princípio Causador? O replicante de Blade não quer chegar ao seu criador para obter a imortalidade? Não menospreze a ficção só porque é ficção, ela se articula por um fluxo de provocações, revelações e verdades, instigadora por vocação. A força que a ficção tem de nos fazer olhar para dentro de nós é algo muito sério!

Sobre apegar-se às coisas (o álbum de fotos, por exemplo), Freud sublinha que os objetos nos fazem admitir a passagem do tempo e reconhecer nossa finitude, confortando-nos pela transitoriedade da vida. Contudo, se aceitamos que a morte é inevitável, tentamos "matá-la" com o silêncio, desmenti-la: "No inconsciente, cada um de nós está convicto de sua imortalidade". Para ele, a própria morte e a passagem do tempo não têm registro no inconsciente. O tempo do inconsciente não é o tempo que passa, mas um "outro tempo", o da "mistura dos tempos", o "tempo da ressignificação". 


E se colocarmos essa reflexão no espelho, numa perspectiva invertida? Em O retrato de Dorian GGray, de Oscar Wilde, o personagem, embevecido pela sua bela estampa que a todos seduzia, desejava. por ela. tornar-se imortal. Tão magnífica beleza não poderia jamais perecer, perder-se no tempo, por isso, no romance, quem envelhece é seu retrato pintado por um amigo. Muitas interpretações já foram feitas, quer pela psicanálise, quer pela antropologia. Há Narciso em Dorian quando este sente irresistível fixação pela própria imagem (se você pensou em selfies e facebooks, acertou). Toda imagem de si próprio é sempre um "duplo", um "outro eu que não eu", e é nesse outro eu que se escondem todas as dores, o tempo, os demônios, as farsas, os medos, o lado mais obscuro - "a parte que não se aceita". Esse outro eu dentro do espelho é esconderijo, o refúgio, o útero. A afirmação é de Jung:
Todos os conteúdos que não se ajustam ao todo são negligenciados, esquecidos, ou reprimidos e negados. Isso se constitui uma forma de autoeducação que não deixa de ser, porém, demasiado arbitrária e violenta. Em benefício de uma imagem ideal a qual o indivíduo aspira moldar-se, sacrifica-se muito de sua humanidade.
Por fim, um detalhe possivelmente intencional da obra que não me passou despercebido: A mulher por quem Dorian quase se apaixona em uma breve relação, Sybill. E quem é Sybill? Sibila, da mitologia greco-romana, é a mulher com dons proféticos e vasto conhecimento; por essa razão, ela pede a Apolo - e é atendida - a vida eterna. No entanto, esquece de pedir junto a juventude eterna, e por isso vive em perpétua decrepitude. 

Não importa se o que se fez um dia tenha sido a mais inominável atrocidade ou o feito mais heroico. Não importa que se tenha levantado um majestoso templo e o tempo o tenha feito pó. Não importa que se tenha escrito uma enciclopédia hoje esquecida na prateleira empoeirada de um sebo. Não importa que a obra-prima esteja abandonada nos porões de um velho casarão. É uma questão lógica: O que está feito está feito e nada poderá apagar. Faz parte da história, e ainda que o universo imploda numa casca de noz, o passado é para sempre porque o erro e a verdade só se revelam através dele.

Essa reflexão bate com impacto no fundo da alma porque nos faz parar por um instante e nos obriga, primeiro, a dar uma espiadela no que fizemos ontem; depois, no que estamos fazendo hoje, e por último e por óbvio, que as consequências por vir nos são desconhecidas. O passado nos alcança e nos revela: ou nos dá asas ou ferros, ou a luz ou as trevas, um rosto ou a máscara, a graça ou o tormento. Ele é para sempre porque está presente o tempo todo. Eis o que pensa a filósofa francesa Simone Weil:
O tempo, na sua marcha, utiliza e destrói o que é temporal. Também nele existe mais eternidade no passado que no presente. Valor da história efeticamente cumprida, semelhante à da recordação em Proust. Deste modo, o passado apresenta-nos algo que é simultaneamente real e melhor que nós, e que pode empurrar-nos para cima, coisa que o futuro nunca faz. 

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*https://mashable.com/2018/05/14/westworld-james-delos-speech-literary-references/#RKKhoI.x3kqS  acessado em 16/05/2018.
FREUD, S. Sobre a Transitoriedade.  Obras Completas. Vol. XIV.
JUNG, Carl G. O Eu e o Inconsciente. Vozes, 2008.
WEIL, Simone. A gravidade e a Graça. Martins Fontes, 2016.

Um comentário:

  1. Brilhante reflexão, Carlos. Difícil de acompanhar, mas sedutora em seu mergulho. Westworld, Blade Runner, O Retrato de Dorian Gray, Gustav Jung, Sigmund Freud. De tudo um pouco para compor o quebra-cabeças aqui colocado. Vou ler de novo para apreender e digerir melhor o que foi proposto...

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