Obras

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quinta-feira, 16 de abril de 2020

MELANCOLIA
Não há como não voltar ao tema, ou melhor, ao Poço. O momento pede, algumas reações ao post anterior também. Por que o filme é tão importante? perguntaria alguém. A questão não é se ele é ou não importante, ele é na medida em que conduz forçosamente a uma reflexão crítica, como aliás faz toda ficção - científica ou não. Se a ficção expõe a verdade pela mentira, Edgar Morin afirma que, justamente por ser um “espelho antropológico”, o cinema, como veículo de massa da ficção, reflete as realidades práticas e imaginárias, as necessidades e os dramas da individualidade humana. 


Umberto Eco entende que a ficção, de um modo geral, oferece uma realidade que nem a própria realidade concreta é capaz de suplantar, onde o universo da narrativa é o único no qual podemos estar totalmente seguros de uma coisa e que oferece uma ideia forte de verdade. Em sua rica historiografia sobre terras e lugares lendários, Eco não só revela a capacidade humana para criar mundos imaginários como também por que o faz

Eis um bom exemplo saído do forno. Em seu romance mais recente, lançado em 2018 mas escrito quatro anos antes, “Desta Terra Nada vai Sobrar a não ser o Vento que Sopra Sobre Ela”, o escritor Ignácio de Loyola Brandão parece antecipar o futuro. Eu não tenho culpa da minha literatura vir na frente, a vida que vem atrás (...) Não sou vidente. Sou um escritor que sabe que a literatura é uma coisa que faz você ver a possível vida que vem. A gente vive uma situação de medo, de sobressalto, de angústia, disse ele em uma entrevista.¹

Assisti ao filme mais algumas vezes com a sensação de olhar o mundo por uma janela. Só não sei se ela está molhada por fora pela névoa e pela chuva, ou por dentro, pelas lágrimas. Vejo a relação humana se deteriorando, escorrendo como gotas que deslizam pelo vidro. Um amigo escreveu que não conseguiu assistir ao filme e nem depois de ler a sinopse. Óbvio, diria Trimagasi; ele não quer encarar a realidade, quer segurar a flor, mas esquece que o espinho vem junto. Se te consola, meu amigo, tem mais gente como você nesse quadrado. Aviso novamente que o texto descreve cenas do filme.

No filme, alguém diz: Quem está em cima quer pular, os de baixo não têm coragem. Você está onde? O vão central do poço é o abismo. Quando Goreng cai na real”, ele se dá conta do quanto seu idealismo é frágil, vulnerável, desfiado pela lâmina afiada do mundo real, e não tem dúvida, engole as páginas do seu querido D. Quixote. Quando a fome bate, adeus idealismo, adeus metafísica, não é mesmo? Na luta pelo pão, que se dane o próximo, é melhor comer que ser comido, recomenda o realista, porque a fome desata a loucura. Trimagasi lhe conta que está preso de modo injusto, só porque atirou uma televisão pela janela e ela acertou um imigrante ilegal que nem devia estar ali. Imigrantes, refugiados, indigentes, excluídos, negros, gays, mulheres... o indígena que queime na calçada, quem se importa? A ameaça já não vem só do invisível, vem também do outro, essa é a questão! A aldeia global é terra de ninguém, não há fronteira, muro ou cortina de ferro que detenha o mal. Ele é global e indistinguível, por isso inextinguível.

Uma cena explícita de racismo social ocorre quando um preso diz ao negro Baharat: O que é que há, negro, virou criado do branquelo agora? Em outro momento, na tentativa de convencer uma detenta a dividir a comida pensando nos de baixo, Baharat usa um linguajar educado, polido, mas não é compreendido e é destratado, e a mulher se atira em direção à comida. Num impulso, o até então idealista Goreng lhe desfere um violento golpe na cabeça com a barra de ferro, matando-a. A partir daí a barbárie se instala. Normal, o homem sempre foi predador do homem. Para a escritora Ursula Le Guin, a ficção científica não prevê, descreve, sendo de fato uma grande metáfora, ou um processo alegórico, algo como um jogo de mentiras” em que interatuam as 'dominantes' da contemporaneidade. Não é a única a pensar desse modo.

Agora chego ao ponto da nossa reflexão, um diálogo que não me passou despercebido. Em um dos níveis mais baixos, onde a cegueira, o sofrimento e a insanidade chegam ao extremo, Goreng e Baharat, depois de passarem por corpos em decomposição e prováveis suicídios, encontram um velho bastante debilitado, estirado na cama, um moribundo precisando de alguém que lhe dê a comida na boca; seu parceiro condenado é portador da Síndrome de Down que, face à sua própria desnutrição, planeja sobreviver: Vou abrir o velho e comer tudo o que deram para ele. Ele vai morrer, de qualquer jeito. Macabro? Mas não é o retrato da sociedade dita moderna, civilizada? O idoso, independente do nível, é alvo fácil da ganância, familiar ou não, impotente, descartável, um estorvo, abandonado à míngua. Abrem seu espólio e tiram-lhe tudo que conquistou, da casa à conta bancária, do anel à dignidade. Ele vai morrer, de qualquer jeito.

Tudo se torna ainda mais terrível nessa hora de distanciamento forçado. As clínicas de repouso, eufemismo para asilo, pouco ou nada podem fazer. Aquele que mora sozinho tem de se valer de algum bom vizinho para ajudá-lo, porque os familiares estão distantes, muito  distantes”, ainda mais agora. Cuidadores e enfermeiros contratados não estão podendo dar assistência, um por precaução, outro porque seus serviços foram requisitados nos hospitais lotados. Não é só o vírus que os mata, é a dor da solidão, a tristeza de não poder sair para jogar conversa fora na praça, tomar uns goles com os amigos, jogar damas, dominó, xadrez. Nem de futebol se fala mais, porque não há futebol para se falar. Com sorte, encontrar-se-ão na fila da vacina. Ou do pão.

O noticiário não tem outra voz a não ser narrar a tragédia alheia, repetir o mantra da higiene, atualizar as estatísticas, a instrução do médico, a crise na economia, a política atrapalhada. Quando a alma encolhe, irrompem a angústia, a apatia, a frustração, a depressão, o sentimento de inutilidade e de morte 'antecipada'; outras morbidades tendem a agravar um quadro por si frágil, e não serão incluídas nas estatísticas do morticínio. Na hora do luto solitário, não serão os entes queridos a levá-los ao túmulo, será um comboio de caminhões iguais levando caixotes iguais para a cova dos iguais. Despedidas à distância, enterro simbólico, choro na sacada. O normal do absurdo. Em certo sentido, o velho é tão invisível quanto o invasor do seu corpo. Paradoxo surreal digno de um conto de Borges - o abraço dos invisíveis.

Os velhos precisam morrer logo para desafogar a Previdência, desembaraçar a família, desocupar hospitais e UTIs. Velho custa caro, é inservível e dá trabalho. O envelhecimento da população tornou-se uma equação sócio-econômica complexa que a pandemia ajuda a resolver. Macabro? Veja o que Loyola diz sobre sua obra: Os idosos estão sendo jogados do alto das montanhas. Não podem sair, mas autorizados a sair, que trabalhem. Está autorizada a eutanásia no país. Meu livro não é o futuro, é o agora. Estou muito triste. Nós também.



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¹ https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/a-reacao-ja-comecou-com-a-desobediencia-civil-diz-ignacio-de-loyola-brandao-autor-de-distopia-politica.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
Edgar Morin, O Cinema ou o Homem Imaginário, Relógio d'Água, 1997.
Ursula Le Guin, A Mão Esquerda da Escuridão. Aleph, 2008.
Norbert Elias, A Solidão dos Moribundos. Zahar, 2001.

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