Obras

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sexta-feira, 10 de abril de 2020

O POÇO E A MENSAGEM

No post de hoje, proponho uma reflexão a partir do filme “O Poço”¹ (2019, Netflix), tendo por base a análise do historiador Leandro Karnal, publicada em seu Instagram e reproduzida, com autorização, no site https://papodehomem.com.br/o-poco-e-a-pandemia-or-analise-por-leandro-karnal/E por que o faço? Porque entendo estar em perfeita consonância com os textos recentemente publicados aqui, como “A diferença é ser humano” e “Tempestade no deserto do real”, entre outros, considerando que assisti ao filme no último final de semana, depois dos posts publicados. O filme é anterior à pandemia do coronavírus, mas serve perfeitamente ao contexto atual de isolamento, confinamento (prisão domiciliar compulsória”) e distanciamento social, mas vai muito além disso.

E serve mesmo, repleto de metáforas e simbolismos: céu, inferno e purgatório, de Dante, ficam subentendidos em um dos diálogos. A análise contém spoiler, portanto, se preferir, assista ao filme primeiro e depois volte à leitura. Um detalhe: não me ocupei com reflexões sociológicas, políticas ou religiosas, embora apareçam de relance; preferi um viés mais psicológico e filosófico. Em certo sentido, para bom entendedor, o filme se explica por si, e não só revira o estômago com a crueza própria do lugar como também, e principalmente, impacta a consciência. E é só uma leitura superficial, há mais a ser pensado em várias camadas interpretativas. Em contraste com a atmosfera sombria, densa e deprimente, a estética é brilhante e a narrativa, visceral. Falando em contraste, há que se notar também que, apesar dos diferentes níveis, os cárceres são rigorosamente iguais, a dizer, estamos encapsulados em nosso mundo particular, que não difere subjetivamente dos outros mundos.

Em um mundo distópico, existe uma instituição penal-educativa chamada O Poço. Uma estrutura vertical onde cada nível é uma cela descolorida, árida, sem grades, para duas pessoas, que são alimentadas por uma plataforma que passa pelo vão central levando pratos cuidadosamente preparados, com requinte, qualidade e higiene impecáveis. Os presos dos níveis superiores são os que se servem melhor, e à medida que a mesa desce, os demais se jogam vorazes nos restos que vão sendo deixados. Não há qualquer explicação sobre os critérios de destinação dos prisioneiros, até porque alguns são voluntários que almejam algum benefício com a pena, por exemplo, um diploma, ou certificado homologado

No piso 48, os dois personagens principais estabelecem um diálogo/duelo entre o realismo e o idealismo; cada um pode levar consigo um objeto de sua escolha, e enquanto o realista opta por uma faca afiada, o idealista prefere um livro, D. Quixote, de Cervantes. Segundo Karnal,
O filme trata de uma metáfora óbvia: a sociedade é desigual e os de cima não se preocupam com os de baixo. Leitura de um sistema no qual é “comer ou ser comido” [diz o personagem realista]. Há alimento para todos, porém o egoísmo produz fome. O tema parece retirado da metáfora do livro do mexicano Mariano Azuela González: Los de Abajo. Existe um nível psicológico: submeter personagens a situações limite para discutir a condição humana é um recurso clássico (...) O choque de mundos de Goreng e Trimagasi é o atrito entre a visão idealista e a realista. A palavra-chave de Trimagasi é óbvio porque, para o prisioneiro mais velho, tudo está inserido em regras claras, naturais e que exigem adaptação para sobreviver. Goreng questiona tudo do sistema do poço. Que preço estaríamos dispostos a pagar pelo que fizemos ou por um diploma? Sobreviver é o que importa?
Quanto mais a mesa desce, maior a dor, o sofrimento e o desespero. A gula egoísta dos de cima tortura e mata os espíritos já condenados de baixo. Para os dias atuais, é só trocar por ganância e individualismo. A administração (Estado?, indaga Karnal) do Poço parece desconhecer o que acontece de fato nas celas. A teoria é oposta à prática. Como a plataforma volta sempre vazia, supõem que todos se serviram à vontade, enquanto os encarcerados não veem o rosto dos que controlam o sistema. É óbvio que assim deva ser, o distanciamento das classes é o padrão. Na prática, para Karnal,
Tenho de me salvar, comprar o máximo possível, salvar a mim. Pouco ou nada me importam os outros. Assim como no filme, a teoria de Hobbes supera a de Rousseau: a natureza humana é má e egoísta. Uma criança seria a esperança? Um bom selvagem? Só a ameaça educa e só funciona para baixo.

A questão que se levanta é “solidariedade espontânea, obviamente ausente naquelas circunstâncias. Inconformado com a sofreguidão e a falta de um espírito comunitário, o preso idealista ameaça defecar na comida dos que estão abaixo do seu nível, para que eles passem a pensar nos que estão abaixo, e abaixo e abaixo. Se o bom senso inexiste, a intimidação tem de funcionar. O Poço não alimenta esperanças. O filme é realista, politicamente maquiavélico (no sentido de não mostrar o mundo como deveria ser, mas como é)”, ressalta o historiador. A maternidade (no filme) não supera a barbárie, posto que a mãe, à procura da filha, mata, trucida e comete canibalismo. Nesse momento dramático, Deus literalmente está morto. Adeus idealismo, adeus metafísica. Somos civilizados enquanto a fome não bater na cara, a realidade não rasgar a carne. Somos um corpo com necessidades e que, para escapar à dor, criamos metafísica”. Se nem da dor escapamos, que a nossa seja menor que a do outro. A certa altura, Trimagasi, o realista, diz a Goreng: “Se está com fome, por que não come o livro?”. O inferno não são os outros, somos todos.

Em períodos de crise, adoraríamos uma mensagem de esperança e redenção. O Poço recusa nossa vontade e piora a percepção do mundo. Quem suportaria olhar para a Medusa e sobreviver? Quem consegue olhar para o seu próprio poço?”, encerra Karnal. Mas há um ponto no filme que o historiador não toca e que, no meu entender, é crucial: a mensagem”. Descendo com seu novo parceiro de cela sobre a plataforma, deparam, no meio do caminho, com um sábio”, um homem que parece estar lá há muito tempo, que lhes diz: A mensagem é o alimento”. Goreng percebe então que, se algum alimento retornar intacto ao nível zero, à cozinha, isso pode desestabilizar o sistema, tumultuar as regras, provocando uma ruptura na lógica do complexo: “Algo deu errado, pensarão os administradores. Goreng decide ir até o fim do poço mesmo sem saber onde ele termina. E segue-se uma sucessão de enfrentamentos brutais para preservar o alimento e fazê-lo retornar intocado à sua origem.

Quando a plataforma enfim chega ao término da descida, os homens, exaustos, combalidos, encontram a menina procurada pela mãe, milagrosamente viva. E faminta. Então vem o dilema: subir com o alimento intocado e implodir o sistema, ou salvar a vida da criança dando-lhe a comida? Se lhe derem o doce, a mensagem morre. E se a criança for a própria mensagem? Seria ela o futuro? A pureza do espírito? A trava daquela engrenagem mórbida? Ou ela é um delírio, um fantasma, alucinação, uma ilusão quixotesca? Como saber? Óbvio, não contarei o final. Nesse momento, o “fantasma” de Trimagasi diz a Goreng: “A mensagem não precisa de portador”. Uma sacada genial, a frase crucial para se entender o filme, código para se compreender o mundo.

Quando alguém diz que não entendeu o final é porque esperava por uma cena, uma palavra ou um sinal que desse sentido à trama, trouxesse esperança ou redenção. Mas o filme não faz nada disso, é cruel e nada sutil. O diretor, o espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, usa um argumento que lembra Sartre* para jogar a responsabilidade no nosso colo: “O que importa é o que cada um faz com as cartas que tem”. Mas a vida não é um jogo de cartas marcadas. A mensagem não precisa de portador.

Pergunto: Qual mensagem não precisa de portador?

A única mensagem que consigo pensar - e, claro, posso estar errado - a partir do entendimento que tenho do filme, pela sua narrativa nuclear e pelas entrelinhas do diretor nas entrevistas, é aquela em que ela mesma é portadora: A realidade. A realidade é o que é, não precisa de intermediário, tradutor, porta-voz, intérprete ou estafeta. Ela mesma se conduz no mundo e na vida dos homens, e quem não entende a mensagem, por óbvio, não entende o mundo, não entende a vida, não entende nem a si mesmo. Será que precisamos chegar ao fundo do poço para entendê-la? Será que ela já não é óbvia” o suficiente? O poço é um caminho, o pior deles, mas quem pode dizer quão fundo é? O que diremos à história amanhã?


¹ Título original The Platform.
* Não importa o que a vida fez de você, mas o que você faz com o que a vida fez de você.
https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2020/04/07/o-poco-segredos-polemicas/

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