Obras

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quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O FUTURO DO PRESENTE

Nos últimos tempos, tenho me ocupado em comentar sobre o comportamento humano em suas diversas facetas, nas crenças, na sociedade, na política, cultura, etc. Até onde tenho observado e minhas leituras me levam, o elemento-chave que tem provocado a degradação moral do homem é a superexposição midiática. Não se trata do "Grande Irmão" que tudo vê e controla da obra de Orwell. A questão é mais ampla, mais complexa e mais profunda. Também não se trata do modismo insípido das selfies ou das redes. O problema está no que está por trás disso tudo, que poucos percebem porque diretamente envolvidos. No entanto, aqueles que o detectaram expressam sua preocupação, estudam, discutem, escrevem e alertam, mas suas vozes se perdem no vazio. Preocupante.


O problema é antigo, bem sabemos, mas há um consenso entre os estudiosos de que o ambiente vem se agravando ao ponto em que eles próprios temem expor sua opinião. É tão antigo que Platão já discutia com seus pares, e em "O mito do anel de Giges" ele dá uma aula sobre ética e moral, absolutamente atual e indispensável para estes tempos. Trata-se, de novo, da natureza humana, daquilo que é inato e daquilo que é culturalmente adquirido. Muitos pensadores investiram na problemática sob diversos aspectos, Freud, Kant, Machavelli, Hobbes, Rousseau, e nas últimas décadas, Debortd, Baudrillard, Bauman, Mafesoli, Lipovetsky e outros se voltaram para questões mais sociais e antropológicas. Não há quem, por um momento, não tenha refletido e dedicado algumas linhas sobre o assunto. A literatura não é pequena.

Essa mega auto-exposição, ou autopromoção, fez o homem perder completamente sua espontaneidade. Tudo passou a ser feito em função da imagem, a sua imagem, em todas as atividades. A partir do momento em que o sujeito se vê no foco - literalmente, sob as lentes -, a naturalidade dá lugar ao fingimento, à encenação, à artificialidade e afetação. Ele deixa de ser quem é para ser o que esperam que ele seja - a persona -, um personagem, aquilo que essencialmente ele não é. Em outras palavras, passa a ser a representação de si, ou ainda, deixa de ser alguém para ser algo, um "produto", uma mercadoria exposta na vitrine digital em perpétua autocontemplação - o hipernarciso - o sujeito aprisionado nele mesmo, e não seria impróprio dizer - uma auto-epifania. Dando um matiz filosófico ao dilema, o indivíduo se equilibrando na escorregadia zona cinzenta entre ser e não ser. 


Para o bem mas, principalmente, para o mal, a espetacularização e a massificação da imagem tiram do indivíduo seu conteúdo, e, em decorrência, levam-no ao esvaziamento e à alienação social, ou, como entende Baudrillard, à "desrealização do mundo pela imagem e à impossibilidade de retorno a um estágio anterior - o fim do indivíduo". Desidentidade? Em busca de um rosto? Parece-me que estamos falando de autofagia, não? A questão é: a "imagem" 'devora" o homem ou apenas revela o que ele é, o que pensa ser ou o que passou a ser - um fingidor, um falso, um simulacro, uma triste marionete de si mesmo?
 


Julgo necessário trazer a reflexão de Guy Debord em "A Sociedade do Espetáculo", uma espécie de antevisão meio século atrás do que estamos assistindo. Embora ele se refira ao sujeito como um consumidor voraz e a imagem que disso resulta, a análise vai além disso. É preciso ler com muita atenção. Os sublinhados são meus acrescentados aos itálicos originais:
O espetáculo (da sociedade de consumo) que é a extinção dos limites do eu e do mundo pelo esmagamento do eu que a presença-ausência do mundo assedia, é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda a verdade vista sob a presença real da falsidade que a organização da aparência assegura. Aquele que sofre passivamente a sua sorte cotidianamente estranha é, portanto, levado a uma loucura que reage ilusoriamente a essa sorte, ao recorrer a técnicas mágicas. A necessidade de imitação que o sujeito sente é precisamente uma necessidade infantil, condicionada por todas as respostas da sua despossessão fundamental.
Com esse cenário de alheamento realidade, o duo ética-moral se deteriora, e é ele que, na prática, redige os termos do contrato social. A soma desses dois elementos resulta num terceiro, a dignidade. Se esta engrenagem dá sinais de desgaste, o mundo adoece, e a tendência é piorar. Não estou otimista que o quadro melhore. No mito referido, Platão demonstra que o homem não é honesto, nem justo nem íntegro espontaneamente, mas para se mostrar como tal para a comunidade, por conveniência, ambição, convenções culturais, temores religiosos ou interesses outros. Kant seguiu na mesma linha e já tratei disso aqui pouco tempo atrás. É duro admitir essa verdade, e que não nos esforçamos nem um pouco para melhorar, ao contrário.

Esse "mostrar-se", hoje, está fora de controle, ultrapassou o limiar da educação, do decoro, da civilidade e da privacidade. Tomou proporções assustadoras. As reflexões no campo da psicologia indicam que quanto mais o sujeito se afasta das suas referências psíquicas, culturais e sociais, quando ele perde seus critérios éticos e o senso cívico, mais se identifica e se integra à sua natureza primitiva, sua essência má e animalesca. É uma lei geral, nada escapa à sua própria natureza: o réptil nasce réptil e morre réptil. O idiota também. Entenda a relação?

O dado mais terrificante é que o idiota não sabe que é, mas sabe o que faz. O que lhe resta de humano permite que tenha consciência dos seus atos. Mente porque quer mentir, agride porque quer agredir, mata por que quer matar. Tem o poder de escolher não fazê-lo, mas nem precisa de motivo, havendo vontade, ele o fará. É o que Platão discute no mito: Giges, o pastor de ovelhas que encontrou o anel da invisibilidade. Ele poderia não fazer o que fez, mas, tendo desejo de o fazer e oportunidade, fez. O escorpião pica não porque quer, mas porque é da sua natureza. Ele, o escorpião, não tem escolha. É a lei geral dos seres vivos - seguir seus instintos, seja réptil ou idiota.

A menos que o indivíduo tome consciência de si e de seu papel na coletividade, que é ele quem gira em torno do mundo e não o contrário, que suas ações estão na fronteira das ações do outro, só então é que a cidadania e a ética se encontram. Não sou otimista aqui também. A desdita auto-imagem fala mais alto, e como. As mídias delatam o procurador molecote, tolo e pretensioso, querendo ensinar leis ao magistrado, o desembargador repugnante useiro e vezeiro em humilhar quem lhe atravessar a frente, o engenheiro diplomado em burrice que desrespeita o fiscal de Saúde, a prostituta que quer dar lição de moral a ministro, a juíza que condena o réu por ser negro... Tudo parece brotar de terra com uma naturalidade obscena, tão perversa quanto trágica. Esse é o exemplo que a  velha sociedade está deixando para a nova. Perceba, não é uma pergunta. É indiscutível que as plataformas digitais e a disseminação instantânea da imagem se tornaram a fossa suja dos estúpidos de farda, saia, gravata ou toga, que expõem sem pudores toda a sua baixeza nais subterrânea.


Esse é o padrão que vira notícia porque a audiência clama pelo circo. Quem faz a lambança quer ter seu momento de glória, caso contrário segue vegetal na mais completa obscuridade. Para isso, mais do que nunca, os fins justificam os meios. Dito de outra forma, pouco importam os meios desde que os fins sejam alcançados. É a banalização da bestialidade, a quintessência da ignorância: Eu e meu prazer acima de tudo e de todos, às favas os escrúpulos morais e éticos.

Os valores se inverteram, as exceções tratadas como feitos extraordinários: o idoso que volta ao prédio em chamas para resgatar um bebê, o morador de rua que salva a moça da enchente, o garoto que defende a irmã de cão furioso, a balconista que devolve ao trabalhador a carteira com o auxílio-desemprego... esse não é o padrão, mas também vira notícia porque, afinal, alguém precisa falar de flores. Só que o mundo real tem mais espinhos que rosas, e aqui não se doura pílulas. O mundo está dando um recado, não sei se você notou. As mudanças em curso levam os estudiosos, os ajuizados e os esclarecidos a terem razão em temer o futuro desse presente. Eu temo, e você, não? 

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