Obras

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sábado, 2 de abril de 2016


Que importa o saber se a demanda é por crença?


Dois comentários de O instinto que me move estão unidos por um quase imperceptível fio: numa ponta, o instinto do saber preconizado por Freud e endossado por Melanie Klein; na outra, o leitor que afirmou não ter se convencido dos argumentos apresentados no post anterior - Afinal, porque pesquisa.... Sirvo-me deles para discutir sobre saber e crença sem me estender muito, porque o espaço não permite. Estamos diante de um quadro poliédrico amplo, delicadíssimo, extremamente complexo e profundo, sem solução ou respostas. Tentarei ser sintético tanto quanto possível, confiando na sua capacidade de apreensão. Tenho a meu lado alguns nomes de peso para oferecer um norte para sua reflexão.

Se o mundo caminha sobre a esteira do conhecimento, ou, se quiser, pelo instinto do saber, do conhecer, do pensar, ele se retrai e se subtrai quando giram as espirais enganadoras da crença. Qual crença? A crença mística, metafísica, mágica, aquela da mentalidade ancestral que ainda persevera no mundo contemporâneo com grande força. E o mundo de hoje, volátil, vulnerável, atordoado, apresenta um cenário muito mais propício à fé que à razão, e olhe que não estou falando apenas da fé religiosa, mas também da fé política, da científica, da social, da ideológica. Dos ídolos com pés de barro, enfim. Ao irromper a descrença nesse mundo, um paradoxo - se impõe uma perversa e desesperada necessidade de crença, mas de outra crença.

O que é crença e em que ela se distingue do conhecimento? Uma crença é um ato de fé de origem inconsciente, que nos força a admitir em bloco uma ideia, uma opinião, uma explicação ou uma doutrina, onde jaz o reino dos sonhos e das esperanças, no qual  razão nenhuma tem influência. A crença faz as pessoas acreditarem em fantasmas, em espíritos, duendes, oráculos ou qualquer outra coisa em que queiram ou precisem acreditar. As crenças quiméricas permanecerão sempre geradoras das longas esperanças, elas originaram os deuses através das eras e, nos nossos dias, o ocultismo, último ramo da fé religiosa, que nunca morre.

Como vimos, Melanie nivela a infância no mesmo patamar em que se inscreve o homem primitivo. Comecemos por aí, retomando Freud: “Compreendemos como o homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal.” (...) “Um homem de dias posteriores, de nossos próprios dias, comporta-se da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção; inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem o apoio de seu deus.”  O sociólogo e psicanalista alemão Erich Fromm (1900-80), ainda que fizesse  algumas críticas ao trabalho de Freud, era concordante ao reconhecer "a necessidade de um sistema comum de orientação e  e de um objeto de devoção serem inerentes à condição humana." Vale a pena reler o parágrafo.

Ao se reduzir tudo a uma questão de fé, reduz-se perigosamente o pensamento a uma realidade de fachada, ficcional, tão ou mais dissolvível quanto o próprio mundo nela contido. Para Freud, seria fácil aceitar as coisas desse modo, porque o argumento "repousa numa premissa otimista e idealista". Contudo, para ele, nosso intelecto se perde com facilidade, pois é muito mais fácil acreditar naquilo "que vem ao encontro de nossas ilusões carregadas de desejo". O homem não gosta quando o tiram de seu repouso. As respostas mais primárias são suficientes. Correr atrás de explicações exige ação, esforço, e isso "cansa". Pascal também tem uma palavra sobre a arte de persuadir, observando que os homens "são quase sempre levados a crer, não pela prova, mas pelo agrado." Só uma consciência autônoma, madura e responsável tem capacidade de refletir sobre suas escolhas e se mover pela razão, pelo pensar, pelo saber, que se alimenta e se multiplica pela dúvida, não pela certeza. Mas o espírito humano, demasiadamente humano, tem  notória aversão à duvida e à incerteza.

O homem é livre para deliberar sobre qual caminho seguir: submeter-se ao culto de uma força exterior autoritária, ou cultivar a razão e o desenvolvimento interior. Recorro então a Ernst Cassirer (1874-1945). filósofo alemão, que diz: "O que perturba o indivíduo não são as coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as coisas." Fromm completa afirmando que se o homem prescinde da ilusão de um deus protetor, se encara sua própria solidão e insignificância no universo, ele se sentirá como a criança longe de sua casa paterna. O antropólogo Gilbert Durand (1921-2012) joga a pá de cal, entendendo que a criança, para atingir o nível da realidade, deve deixar o modo imaginário da visão de si e utilizar o modo simbólico. Para Jung, está muito claro que "O desejo inconsciente é infantil, ou melhor, é um desejo proveniente do passado infantil que não se adequa mais ao presente, razão pela qual é reprimido, por motivos morais. Pode-se dizer que quase tudo o que vem do inconsciente tem primeiramente um caráter infantil.". Atenção, há um recado explícito aqui que não deve ser ignorado!

É indiscutível que se o saber é um movente contínuo, a crença, sendo psicológica, unidirecional, coletiva por contágio, é paralisante, pois está além da crítica, da razão e da reflexão. Ela se fecha em si mesma. Quem gostar, embrulha e leva. A crença pertence ao mundo da fantasia e da ilusão, próprio da criança, preenche lacunas e acalma espírito; já o saber habita o mundo dos inquietos, dos reformadores e dos contestadores. Jung é taxativo e contundente: "A maior vitória da sanidade foi a conquista da racionalidade." São dezenas de autores e obras que versam sobre a questão com grande profundidade e competência, mas por ora basta, já me alonguei demais. Continuarei no próximo post.

Assim, diante do do mundo que está aí, refaço a pergunta: de que vale buscar a verdade quando a procura é pela crença? As crianças acreditam enquanto não sabem, mas e os adultos? Imagino que você tenha percebido que "crença" é um largo guarda-chuva que abriga também, claro, o objeto alvo de debate deste blog.


FREUD, S. Moisés e o Monoteísmo. Esboço de Psicanálise e outros         trabalhos. Obras completas v. XXIII. Rio de Janeiro. Imago. 2006.

CASSIRER, E. Ensaio sobre o Homem. Uma introdução a uma filosofia  da cultura. São Paulo. Martins Fontes. 1984,

FROMM, E. Psicanálise e Religião. Rio de Janeiro. Livro Ibero Americano. 1966.

JUNG. C. G.  Psicologia do Inconsciente. Petrópolis. Vozes. 1980.

DURAND, G.  As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo. Martins Fontes. 2002.

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