Obras

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sábado, 23 de abril de 2016


Em lugar de ter esperança, tenha coragem



No post Você não precisa de muletas... uma das perguntas era se você é do tipo que  “Encara o mundo de frente com coragem e soberania, ou se refugia medrosamente nas sombras de uma delirante e falsa espiritualidade?” Pois um leitor assumiu o refúgio dizendo textualmente: Torço para que uma força desconhecida reverta uma situação desfavorável. Com certeza vou botar a mão num vespeiro, e ainda que você não concorde comigo, pensar não dói.

O leitor recorreu explicitamente à “transferência de responsabilidade”, delegando a poderes sobrenaturais a tarefa de resolver seus problemas, ou “reverter uma situação desfavorável”.  Em outras palavras, ele tem esperança. Ter esperança é ficar inerte, é sentar e esperar acontecer alguma coisa que atenda seus desejos, suas carências ou necessidades. A isso chamamos milagre, fato extraordinário, maravilhoso, 'sinal de uma vontade divina', diz Abbagnano. A raiz etimológica vai além de miracolo, que deriva de mirare - espelho, ou “encantar-se consigo próprio”. A divindade sou eu?. Existe algo mais corrosivo para o espírito humano?

O que o nosso caro leitor quer, transferindo um encargo seu para outrem, caracteriza, para usar uma expressão da moda, “desvio de finalidade”, ou seja, é o mesmo que usar placebo para tratar fígado necrosado. A bem da verdade, esse desvio atinge todos os estratos culturais, da fé no prêmio da loteria ao torcedor que paga para o santo se o goleiro defender o pênalti fatal; do político que cumpre promessa caso eleito ao estudante que sobe de joelhos a escadaria da catedral ao passar no vestibular. Existe algo mais apalermante para o espírito humano?

Que me perdoem o leitor e todos aqueles que pensem como ele, mas não se trata de discutir religião ou ateísmo, mas paixões. Sim, paixões, do latim passio – passividade, sofrimento, suportar a dor. Ter esperança é exatamente isso - suportar a dor e o sofrimento passivamente, esperando que uma força superior venha mitigar o infortúnio. Em sentido filosófico, ainda que rude, ter esperança é indicativo de debilidade, ignorância, tristeza, insegurança, medo. Em sentido prático, esperança é um mecanismo de defesa contra a realidade. Existe algo que enluta o mais espírito humano?

Como psicanalista, filósofo e sociólogo, Erich Fromm era profundo estudioso da alma, e não fazia rodeios na hora de aconselhar. Para ele, o problema da religião não se resume simplesmente a “Deus”, mas, principalmente, ao homem, à relação consigo mesmo e com os outros. Ele condena a idolatria, que conduz ao estado de alienação, à prostração e ao aniquilamento da individualidade. Existe algo mais ignóbil para o espírito humano?

O que é mais digno: lutar com suas próprias forças e coragem em busca do que se quer, ou “sentar e esperar” que um poder invisível faça o serviço? Fromm propõe uma longa reflexão a respeito, apontando as diferenças entre a religião autoritária e a humanista. Naquela, o homem é submisso, fraco, penitente, insignificante, vazio e obediente a um poder transcendente. Nas palavras de Calvino “(...) humildade é a submissão sistemática de quem se sente dominado por uma profunda certeza de sua miséria.” Existe algo mais empobrecedor para o espírito humano?

Na filosofia humanista, ao contrário, quem está no centro e no poder é o homem, para, com a força da razão, entender a si e o seu lugar no universo. O pleno desenvolvimento da razão está umbilicalmente relacionado à liberdade e à independência, estimulando o indivíduo a ouvir a voz madura e sábia de sua consciência. Não é tarefa fácil, é para fortes. É o que Nietzsche nos impõe. Minha recomendação, bem mais modesta, é não deixar a vida em estado de suspensão, desligar o piloto automático. Não esperar, não adormecer, não negociar, não fugir. Trabalhar, amar, lutar. Não existe nutriente melhor para o espírito humano.

Nota: “Espírito humano” não é redundância, é pleonasmo legítimo para conferir intensidade à expressão.
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FROMM, E. Psicanálise e Religião. Ibero Americano. 1966.
DURAND, G. O Imaginário. Difel. 2010.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão. L&PM. 2010.
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes. 1992.


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