Obras

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sábado, 5 de novembro de 2016


"Subir aos céus" é sonhar desde sempre


Desde que o homem tomou consciência de si e do mundo, ele olha para o céu com sentimento de reverência, medo, perplexidade e incontido desejo de voar como os pássaros para alcançá-lo, tocar as estrelas, ir além das fronteiras terrenas. A palavra 'ascensão' contém vários significados, seja no campo político, cultural, místico, social, histórico, etc., mas é um tema mítico por excelência. O que nos interessa é entendê-la do ponto de vista filosófico e trazer a discussão para o terreno ufológico. Importa saber também que é um sonho vivido intensamente ainda hoje: a exploração espacial não é apenas a busca por novos mundos; é, em última instância, a busca de Deus. Ou deuses.

Vejamos algumas considerações clássicas sobre a ascensão, começando por Eliade: "Aquele que se eleva subindo a escadaria de um santuário ou a escada ritual que conduz ao céu, deixa então de ser homem; de uma maneira ou de outra, e passa a fazer parte da condição divina." Passa a fazer parte da condição divina. Pegou? Ele refere ainda que dentro da experiência extática, está-se falando de imagens da transcendência e de liberdade dentro de uma visão mística e metafísica: "Com efeito, o simbolismo da ascensão significa sempre o rebentamento de uma situação 'petrificada', a ruptura de nível que torna possível a passagem para um outro modo de ser; no final das contas, a liberdade de se 'mover', isto é, de mudar de situação, de abolir um sistema de condicionamento." Pegou essa também?

Gilbert Durand, outro nome corriqueiro aqui, segue o mesmo discurso: "Os símbolos ascensionais aparecem-nos marcados pela preocupação da reconquista de uma potência perdida, de um tônus degradado pela queda. Essa reconquista pode manifestar-se de três maneiras muito próximas, ligadas por numerosos símbolos ambíguos e intermediários: pode ser ascensão rumo a um espaço metafísico, para além do tempo; Poder-se-ia dizer que neste estádio há conquista de uma segurança metafísica e olímpica. Pode manifestar-se, por outro lado, em imagens fulgurantes, sustentadas pelo símbolo da asa e da flecha, e a imaginação tinge-se, então, de um matiz ascético que faz do esquema do vôo rápido o protótipo de uma sublimação da carne e o elemento fundamental de uma meditação da pureza." Segundo ele, a ascensão está ligada aos arquétipos da luz e ao simbolismo simétrico da fuga diante do tempo ou da vitória sobre o destino e a morte. Essa citação é só uma amostra, daí você pode depreender a profundidade da questão. Como habitualmente faço, o itálico é destaque meu.

É evidente que, não contentes com o que somos, desejamos ir além da nossa natureza porque, de alguma forma, lá bem no fundo d'alma, não queremos admitir nossa insuficiência, nossa pequenez, nossa precariedade e nossa debilidade, então buscamos, desesperadamente, em tom mesmo de súplica, a condição de 'super-homem', essa criatura encravada no imaginário - tradução ficcional dos nossos delírios - que deflagra um aluvião de idealidades. Esse super-homem carrega o signo da totalidade, da completude, da imortalidade do ser. Do ser que gostaríamos de ser.

Agora me acompanhe, bem de perto.

O repertório ufológico enfileira depoimentos de gente que alega ter estado a bordo dos discos, viajado espaço afora, conversado com alienígenas, passado por exames físicos e até a aberração de ter copulado com criaturas do sexo oposto! Se as abduções também são muitas, as alucinações não ficam atrás. Em parte substancial dos casos, os contatados/abduzidos dizem ter sido (e)levados ao interior das naves por um facho de luz ou levitado até entrar na nave. Seria o 'voo mágico' de que fala Eliade, mencionado em post anterior?² Em certo sentido, sim. Comentando as experiência de ascensão, "Podemos concluir que estamos perante expressões não históricas de um mesmo simbolismo arquetípico que se manifesta de maneira coerente e sistemática tanto no plano do inconsciente (sonho, alucinação, sonho acordado) como nos do transconsciente¹ e do consciente (visão estética, rituais, mitologia)."

Além do aspecto mitológico, é indispensável destacar o plano religioso no qual ascensão voo mágico estão inscritos. É Eliade novamente: "É claro que todas estas 'formas' [de manifestação] não são espontâneas nem dependem diretamente do arquétipo ideal; muitas são 'históricas', no sentido de serem o resultado da evolução ou da imitação de uma forma já existente." Eu poderia elencar muitos outros autores,  interpretações e definições sobre o tema, mas você já percebeu aonde quero chegar.

O fato é, como tenho procurado mostrar através dos meus textos, que o "disco voador" e todo o seu aparato é mais um bote salva-vidas para o homem tentar sobreviver a esse maremoto de sentimentos, conflitos, tensões, delírios, temores, contradições, lamúrias, demônios, frustrações, esperanças, recalques, fracassos, dores e incertezas que é a sua vida. Tem mais, quer? Ele sabe que não sobreviverá, mas sublima ou finge não saber porque não está preparado para enfrentar o mundo real das coisas, preferindo navegar por águas plácidas da ilha da fantasia aninhada e acalentada no imaginário. Ascender aos céus, tocar as estrelas, encontrar os deuses, ser um 'escolhido' são formas particulares de fugir dessa realidade opressora em busca do eldorado, da 'igualdade divina', da re-ligação com os planos superiores.

Sendo você ou não um desses ilusionautas, um extrato do pensamento de Nietzsche pode ser tomado como um roteiro de vida. Esqueça o super-homem da ficção, seja você um na vida real: Viva a vida na vida, sem depender de muletas metafísicas. O real lhe basta, ele é suficiente para mostrar a beleza do mundo tal como o mundo é, sem a presença de artifícios e construções transcendentes imaginárias. Acredite apenas na eternidade do instante vivido, na alegria e na singularidade do instante vivido, porque depois dele virá outro e outro e mais outro, num eterno retorno. Seja você em você mesmo no máximo de suas potencialidades. Tenha em mente que esse mundo do real é para poucos, para aqueles que dançam à beira do abismo e que quando forem cair, caem cantando.

¹ "O mais alto grau da consciência, que permite ao homo religiosus unificar os diferentes níveis de manifestação, quer dizer, 'realizar a plenitude', 'viver o universal'." (in ALLEN, Douglas. Mircea Eliade y el fenomeno religioso. Ediciones Cristandad, Madrid, p. 234, 1985.
² "Não se muda o passado... "- 17/09/2016

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ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Martins Fontes. 1992.
___________. Imagens e Símbolos. Arcádia, 1979.
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Nova Fronteira, 1964.
LÉCI-STRAUSS. Claude. O Olhar Distanciado. Edições 70, 1986.
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Palas Atena, 1990.
ARMSTRONG, Karen. Breve História do Mito. Cia. das Letras, 2005.
CAMPBELL, Joseph. O Vôo do Pássaro Selvagem. Rosa dos Ventos, 1997.


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