Obras

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sábado, 29 de outubro de 2016


Praia é abatedouro de filósofos

carlosalbertoreis51@gmail.com



Como anunciei semana passada, vou filosofar mais um pouco, agora levado também por um debate com um amigo, amizade essa a completar quatro décadas de boas histórias vividas no interesse comum, a ufologia. Mas seguimos rumos distintos, e algumas diferenças se acentuaram e se crisparam nos últimos anos. “Amigos, amigos, crenças à parte”. Intactos o respeito e o carinho.

Ele se tornou um astrólogo conhecido na cidade em que se estabeleceu, abraçando o Budismo e o Yoga, além de seguir nos estudos da Antroposofia de Rudolf Steiner e na Teosofia de Madame Blavatsky. Como se depreende, seu universo é o da metafísica, da 'transcendência', do 'oculto', do conhecimento 'superior', dos agentes externos que movem os fios da vida dos mortais. Curioso é ele dizer que “Não existe ‘lá fora’, o caminho é dentro”. Como explicaria suas crenças no lá fora? Vamos analisar um pouco essa questão. Peço desculpas, mas desta vez não deu para poupá-lo de uma leitura mais extensa. Acho que vale a pena.

Em dado momento, a conversa gerou mais calor que luz. Ao contrário dele, eu não me filio a nenhuma doutrina, religião ou sistema filosófico; sou, por assim dizer, livre-pensador. Tenho na Filosofia uma ferramenta de aprendizado através das leituras, aulas, reflexões, cursos, na polifonia discursiva dos melhores, dialogando ora com Platão, ora com Spinoza, ora com Kant, ora com Montaigne, entre muitos. Isso dá liberdade de escolha, de movimento e ausência de dogmas. Admiro todos, mas não rezo a missa de nenhum. Questiono não para contestar, mas para encontrar outras formas de entendimento. É assim que a coisa funciona porque é assim que deve funcionar.

Na sala de aula, quando o aluno levanta a mão e pergunta "- Professor, por que tal coisa é assim?", nenhum mestre em sã consciência dirá “porque sim”; ao contrário, dará ao aluno todos os instrumentos, inclusive fora da matéria central, para que ele encontre a resposta e compreenda a lógica do problema. 

Eis um dos pontos nevrálgicos da discussão: Toda doutrina tem todas as respostas porque todas as perguntas já estão pontas lá dentro. Todo sistema doutrinário se retroalimenta, numa estrutura fechada que não abre para o contraditório. Toda doutrina solapa a individualidade do sujeito. A vida que vale por ela mesma é a vida soberana. O contrário é servidão voluntária.

Já a Filosofia propõe contradições, complementares e antagônicas; pergunta e não responde, não traz soluções nem fórmulas prontas, não centraliza, não radicaliza nem escraviza. Não facilita, não se põe intramuros, não te deixa refém de qualquer certeza, não te torna heterônomo, mas autônomo, ao oferecer meios para raciocinar, questionar, duvidar, indagar, deliberar. E, certamente o mais importante, aguça o senso crítico. Em última análise, é diálogo permanente consigo mesmo para plateia de um único ouvinte. Sem direito a aplauso.

Vejamos o budismo, por exemplo. Segundo Abbagnano, uma “Doutrina religiosa e filosófica que se originou dos ensinamentos de Gautama Buda”. Doctrina, do latim – conjunto de regras, princípios ou instruções que servem de base a um dado sistema de ensinamentos. Regras existem para serem obedecidas, instruções existem para serem seguidas, logo, alguém deve se submeter a elas. Ao bater o sino, não pergunte, ajoelhe e reze é a liturgia nuclear de qualquer doutrina. Sobre Buda, Eliade destaca que "Na língua páli e em sânscrito significa 'iluminado', sendo, muito provavelmente, um personagem histórico, e no plano mitológico, o protótipo do homem divino”. 

Um momento emblemático e surpreendente daquele embate se deu quando, ao citar alguns dos principais filósofos das minhas leituras, meu amigo saiu-se com esta pérola: “Todos eles morreram na praia” e “Todos ficaram na esfera do conhecimento, segundo Steiner". Morreram na praia significa que não chegaram aonde queriam chegar. Aonde queriam chegar? Queriam chegar? Os filósofos abatidos são Descartes, Voltaire, Spinoza, Engel, Hume, Platão, Pascal, Rousseau... 

Para este amigo, se entendi bem, seus mestres Buddha, Krishna, Thomas Merton, Krishnamurti, Alan Watts estão fora da esfera do conhecimento? Foram além da praia? Filósofos morrem, mestres e deuses não. Nietzsche deve estar se debatendo no túmulo. Meu amigo ignora a esfera do conhecimento, preferindo a "intraduzível experiência da totalidade dos sábios", que diz alcançar sempre que esvazia a mente quando medita. Pergunto: como sabe que a sua 'totalidade' é a mesma do sábio? Como saber o que é totalidade? Só porque é "intraduzível" ficaremos a ver navios? Muito conveniente eximir-se de explicações. Clássica zona de conforto. 

O que não entendi também foi ele ter postado, após o debate, a seguinte frase: "Procure as respostas para as questões eternas e essenciais sobre a vida e a morte, mas prepare-se para não encontrá-las. Usufrua da busca". Deduzo que ele concorda com esse pensamento, mas, então, só a experiência intraduzível da totalidade é que vale, não morre na praia? A frase de Morris Schwartz é exatamente o que tenho dito aqui o tempo todo - o percurso é mais enriquecedor que o objeto da procura, até porque nunca teremos a certeza de termos encontrado as respostas certas porque nem saberemos se fizemos as perguntas certas.

Confesso ter dificuldades para entender como é possível passar algum ensinamento adiante sem o conhecimento daquilo que se propõe ensinar. Como explicar as bases, a origem, os fundamentos de tais ensinamentos? É assim porque assim é? É um saber meramente contemplativo, um insight dado pela Providência? O mundo não se explica pelo transcendente nem pelo imponderável, aliás, não se explica nem por ele mesmo, se explica pelo que fazemos dele com o que fazemos de nós. Eis a chave!

Aí está, meu caro amigo, minha querida leitora, exatamente aí reside a grande questão da relação entre nós, e entre nós e o mundo. Não há nada fora do mundo que nos diga respeito. As divindades fazem parte das mitologias, contam histórias sobre a criação do mundo para nos dizer quem somos, mas não interferem em nossas vidas. Nós criamos os deuses por medo de viver, por não suportamos a dor, porque somos fracos, infantis e despreparados para o mundo, por isso estamos sempre em busca da 'salvação divina'. Não são os deuses que devem nos dizer o que devemos fazer. Isso é subserviência, covardia, omissão diante de nossas próprias responsabilidades. Não se deve imputar aos deuses, aos "iluminados", aos demiurgos as causas e os efeitos de nossas ações. A vida é uma só, sem ensaio, sem volta, sem segunda chance, portanto, tenha dignidade e coragem de assumir o seu controle. Conciliação com o mundo. Os deuses agradecem, porque estão fartos de aturar tanta imaturidade.

Se a espécie humana é a única presenteada com a faculdade do cogito, a única a ter consciência de si e a única capaz de traçar seu próprio caminho, ora, justamente no momento de usar esse dom especialíssimo, esvazia a mente, como faz meu meditativo amigo? Prometeu pagou com o próprio fígado por roubar o fogo dos deuses - o logos - para que você não morra de fome nem sirva de alimento ao primeiro leão, e você retribui a dádiva com desprezo, desocupando a mente? Sem a razão, não temos como compensar a nossa total fragilidade. Não poupo ninguém: acreditar no além. em anjos, deuses e fadas, tudo bem, mas se for evacuar a mente, por favor, fique por lá, no vazio, vagando no sertão mental, o mundo não dará pela sua falta. O mundo precisa é de mentes intrépidas, férteis, volitivas, dinâmicas, e não de mentes frouxas, improdutivas e acanhadas, que giram como birutas de aeroporto na direção dos ventos a favor, só dos ventos a favor.

Se o entendimento entre os homens não se der pela esfera do conhecimento, não o será pela via da contemplação e menos ainda pela fé mística. É chique falar que o real é ilusão da mente ou que “a mente assassina o real”. Pode ser, mas apenas como exercício filosófico, não para aplicação prática, não para a busca do saber, não para a compreensão do mundo. Usando a metáfora praiana, o litoral do conhecimento é vasto, mas o oceano da ignorância é muito maior. Já o disse aqui: sejamos gratos aos provocadores, aos desbravadores, aos inquietos, enfim, àqueles que vivem atormentados pela dúvida, porque são eles que nos colocam em ação. Segundo meu caro amigo astrólogo, questiono porque é da minha "dupla natureza geminiana". Fico aqui pensando se piscianos, cancerianos, taurinos também não questionam.  Rezam em silêncio quando bate o sino?

Com toda franqueza (de novo), a crença discipular de que o verdadeiro saber vem de inspiração divina é de extrema fragilidade; é se colocar vulnerável aos influxos de ministérios ungidos por forças cósmicas, supranaturais, transcendentais. Sendo mais direto, é negar a realidade, é acovardar-se ante os desafios, as agruras, as adversidades e os fracassos do cotidiano. É escamotear medos e fraquezas, é esquivar-se do enfrentamento do mundo. Quanto maior a inadaptação ao mundo real dos fatos e das coisas, tanto maior as idealidades escapistas e as rotas de fuga. Alienação. Viver o mundo é fardo pesado, contemplar o mundo é "pegar leve". Esvaziar a mente é paz fugaz, pensar o mundo é angústia permanente. Pergunto: se o real é ilusão da mente, esvaziar a mente não seria também uma ilusão? O vazio não faz parte do real? Fico com Aristóteles, outro que sucumbiu na areia: “O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete”.

Tomara que você tenha percebido ironias sutis nas entrelinhas.


Thomas Merton - monge trapista, escritor sobre espiritualidade.
Alan Watts - teólogo, especialista em filosofias orientais.
Jiddu Krishnamurti - Filósofo e educador indiano.
Krishna - uma das divindades mais cultuada do panteão hindu.
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ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de FilosofiaMartins Fontes, 2007.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ática, 2011.
ELIADE, Mircea; COULIANO, Ioan P. Dicionário das Religiões. Don Quixote, Lisboa, 1993. 
HUME, David. Tratado da Natureza Humana. UNESP, 2009.
MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Bertrand Brasil, 2005.


Um comentário:

  1. A Vida é uma Merda

    POR MURILO

    “Sim, a vida é mesmo uma merda. Não importa se você é rico, pobre, alto, magro, gordo, feio, bonito, famoso, forte, fraco, tímido, divorciado, casado, com filhos, com netos, bêbado, sóbrio ou ainda burro e ignorante. A vida é uma merda. Como eu sei disso? É bem óbvio. Basta observar as pessoas por aí. Existem dois tipos de pessoas. As que sabem que a vida é uma merda, como eu e aquelas que por algum motivo cretino tirado de não sei aonde, acham que a vida deve ser boa, ou melhor, que é boa. Eu explico.

    Na vida de todo mundo, sempre vão acontecer mais coisas ruins do que coisas boas, seja por azar, seja por inapetência, seja por vingança ou até por uma questão de expectativas.

    Basta olhar os animais nos documentários da TV, vocês já viram o inferno que eles passam para comer e fazer sexo? As vezes eles passam uma semana inteira no “rock and roll” para comer uma droga de um rato (no caso das corujas, coitadas). E os gafanhotos que finalmente quando conseguem copular a primeira vez viram comida de suas concubinas.

    Nós não somos muito diferentes. Nós fazemos de tudo para comer, beber e fazer sexo. São as três coisas boas da vida e não chegam a tomar nem dez por cento do nosso tempo. É um fato matemático. Não tem discussão.

    Algumas pessoas vão dizer que eu estou louco, e que trabalhar é ótimo, dormir é ótimo, conversar é ótimo e até cuidar dos filhos é ótimo. Mentira, mentira, mentira. Ou então essa pessoa já não come, não bebe e não faz sexo direito há muito tempo.

    As pessoas que acham que a vida é boa, estão sempre deprimidas, chorando, lamentando que tudo vai mal para elas e bem para os outros. Elas não percebem que estamos todos sujeitos as mesmas punições diárias, as mesmas frustrações. É uma questão de como encarar as coisas.

    As pessoas que sabem que a vida é uma merda estão sempre, ou quase sempre felizes. Eles assumiram o status quo e pronto: minha vida é uma merda, toda vez que acontecer alguma coisa boa eu vou agradecer e aproveitar ao máximo, toda vez que acontecer uma coisa ruim, bem, é a vida. Não é conformismo não; você pode impedir coisas ruins de acontecerem, mas outras virão.

    Futebol é uma caixinha de surpresas; o que vai acontecer conosco não. Vamos ser traídos, roubados, enganados, humilhados, ofendidos e largados. Não tem jeito. O bacana é não deixar que nada disso tenha efeito negativo sobre nós e pronto, celebrar as alegrias… novamente, comida, bebida e sexo.

    A vida é realmente uma merda, eu adoro, e você?”

    http://www.cronistasreunidos.com.br/murilo/2006/05/a-vida-e-uma-merda/

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