Obras

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quarta-feira, 4 de janeiro de 2017


Realismo fantástico ou irrealismo cotidiano?


Começamos 2017 de modo auspicioso. Nos últimos dias de 2016 foi publicada a revista eletrônica ConsCiências'5, editada pelo CTEC - Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência, da Universidade Fernando Pessoa, do Porto, Portugal, uma edição comemorativa dos 40 anos da Revista Insólito. Foi com surpresa e evidente alegria que recebemos a notícia de texto nosso no corpo de artigos especialmente escolhidos para a ocasião. Todos os autores são pátrios, vários deles graduados nas áreas de História, Antropologia, Sociologia, Psicologia e Filosofia. Eu sou o único forasteiro do grupo. A satisfação não se restringe ao privilégio da seleção, mas também pelo seu conteúdo, que espelha idêntico percurso investigativo e de reflexão com a nossa trajetória.

O título de hoje tomei emprestado do artigo de José Soares Martins, que faz uma análise nostálgica e histórica do 'princípio da pesquisa do incomum', que me parece lícito fazer uma releitura no atual contexto. Tomei a liberdade de interferir com itálico no que julguei ponto-chave: "Moscovici¹, por sua vez, mostrou que a inovação é o motor fundamental da sociedade e da história. Mas essa inovação faz-se paradoxalmente à custa do desvio, ou seja, das minorias activas ou nómicas capazes de engendrar um conflicto com a maioria até a conversão desta última, caso o Zeitgeist seja favorável. Neste sentido, a história dos homens tem sido marcada por esta dinâmica moscoviciana: normalização, conformidade, inovação, que de certa forma nos faz lembrar a fórmula hegeliana: tese, antítese, síntese…." O termo latino utilizado por Martins na sua explanação remete a Naus da Ilusão. Coincidência? Não.

Em "Os Outros na Ficção Científica Portuguesa", Álvaro Holstein traz um painel da literatura sci-fi e sua influência de acordo com as faixas etárias, tema também tratado em Naus de modo separado - ficção científica e alteridade - que se imbricam em algum momento. Coincidência? Não.

João J. M. Maia traz um estudo interessante sobre linguagem em "A comunicação na interpretação fenomenológica da singularidade". O estudo lida com a aparição de Fátima em 1917 no contexto sócio-religioso da época; o "Milagre do Sol", as aparições marianas de modo geral e as ocorrências Óvni em interação com humanos. Ao longo do trabalho, Maia declara que "Há assim uma clara incongruência da linguagem com experiências que, de acordo com os investigadores, introduzem nas pessoas estados modificados da consciência. É verdade que o próprio indivíduo, sujeito da experiência, assume códigos linguísticos socialmente instituídos como forma a mediar e a comunicar a sua vivência. No entanto, essa codificação adultera e amputa aquilo que foi a idiossincrasia da experiência". 

Com o subtítulo "A comunicação de massa e a construção de uma nova mitologia", o autor afirma: "Deste modo, os meta-acontecimentos que irrompem na cobertura jornalística dão-se como acontecimentos inseridos numa ordem discursiva e numa representação cénica regidas pelo mundo simbólico e pelo mundo da enunciação. Existe um devir de discurso espetacular que faz parte do próprio caráter apelativo e atrativo imposto pela ordem mediática." Naus, de novo, dedica amplo espaço à questão da linguagem, da comunicação de massa, do 'diálogo no silêncio' e do 'teatro coletivo'. Coincidência? Não.

Por fim, assino "A Ressurgência do Mito", um rescaldo de Reflexões e os primeiros esboços que dariam ensejo a Naus. Isso talvez explique a consonância com a maioria dos textos de ConsCiências'5 não ser mesmo coincidência, mas afinidade e clara sintonia de todos com a consciência crítica identificada com os dias atuais. Não escondo discreto orgulho por pertencer a este qualificado elenco.

Devo registrar ainda, para valorizar nossos autores, a obra recém-lançada de Rodolpho Gautiher - A Invenção dos Discos Voadores, sua dissertação de mestrado em Filosofia e Ciências Humanas pela Unicamp. Mais que um mero registro, sua obra reforça o exposto aqui no seu emparelhamento com nosso trabalho, ainda que com viés mais restrito, ao abordar a ficção científica, cultura de massa, imaginário, alteridade, história... Coincidência, de novo?

Termino com as mesmas palavras com que encerrei Ressurgência: "Assumimos, incondicionalmente, desde sempre como princípio fundamental da prática investigativa e norte de conduta, o preceito de não misturar busca da verdade com necessidade de acreditar, empenhados em estreitar e concretizar um permanente, fecundo e cooperativo intercâmbio com os agentes do saber - bússola confiável na rota do conhecimento, de forma a legitimar um campo de estudo escasso de credibilidade".

ConsCiências'5 (e-book) à venda nos sites www.wook.pt e www.bertrand.pt



Stultifera Navis - Navio dos tolos (tradução livre), 1494, Hieronymus Bosch. Também conhecida por Narrenschiff - Nave dos insensatos (tradução livre), obra de Sebastian Brant, mesmo período. Para saber mais, ver Michel Foucault, A História da Loucura na Idade Clássica, Perspectiva, 2014.
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¹ Serge Moscovici (1928-2014), psicólogo social romeno.

carlosalbertoreis51@gmail.com

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