Obras

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quarta-feira, 18 de abril de 2018


A DIMENSÃO SOCIAL DA PALAVRA


Hoje quero discutir um ponto que foi citado de passagem já há algum tempo ("Só pensar não basta, pensar diferente é fundamental"). Importante trazê-lo de volta para ampliar a compreensão e mostrar aonde quero chegar. Estou falando da doxa, e o que é doxa? Grosso modo, doxa (grego) é o conjunto de juízos que uma sociedade constrói em um momento histórico específico, acreditando tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas que, para a Filosofia,  não passa de uma crença ingênua que só pode ser superada através do verdadeiro conhecimento. A mentalidade de uma época - Zeitgeist, é o vetor resultante da interação das práticas sociais e da ideologia estabelecida. A relação entre doxa e episteme é a mesma de opinião e conhecimento. Platão entendia doxa como "oposição à verdade". Considerando que toda opinião reflete uma crença, doxa pode ser entendida como a opinião pública dominante sobre um dado assunto. Opinião pública dominante por sua vez também conhecida por "senso comum". 

Por opinião pública entende-se a somatória ou o conjunto das opiniões individuais, uma definição inadequada segundo alguns autores, porque quase sempre elas - as opiniões - não podem ser somadas dada a complexidade dos elementos que as constituem, que inviabilizam aplicar um valor específico. A opinião individual, quando não fundada no conhecimento da matéria e na análise crítica, é uma opinião fria, anódina, retrato de um impulso embalado pelo achismo, pela fala de uma "autoridade" ou "especialista", pela reprodução orgânica contaminada da polifonia gerada pela sociedade na onda - ou refém - da ardência das circunstâncias, do ouviu falar - "se todos dizem a mesma coisa, deve ser assim")Que leitura se faz aqui? Que peso pode ter uma opinião assentada nestes termos? Nenhum, peso zero.

De acordo com o professor de Lógica da Unicamp, Walter Carnielli, "Um argumento é uma 'viagem lógica', que vai das premissas à conclusão". E prossegue: "Um bom argumento é aquele em que há boas razões para que as premissas sejam verdadeiras, e, além disso, que as premissas apresentem boas razões para suportar ou apoiar a conclusão". Ele afirma que nós, brasileiros, temos péssima educação argumentativa, confundimos discussão com briga, e não sabemos lidar com críticas. 


Vejamos um exemplo de "opinião pública". Para uma fatia significativa da população, dado o momento social vigente a pena de morte deveria ser adotada em certos casos. Supondo que você simpatize com a ideia, já considerou todos os aspectos envolvidos na questão - sociais, culturais, legais, religiosos, psicológicos, filosóficos, históricos, morais, políticos, éticos? Obviamente não, porque sua competência nestas áreas é precária para emitir um juízo de valor legítimo. Você poderá dizer "sim" ou porque segue maioria (contágio) num processo de 'discurso-carbono', ou por achar que conhecer um ou dois campos seja suficiente para embasar sua opinião. Se todos os demais cidadãos pensarem como você, como estabelecer uma "soma" estatisticamente válida para a questão? Não tem como, não tem o menor sentido, coerência, solidez, não será uma escolha racional, sensata ou ética. E mais, não será uma opinião autenticamente sua. As piores formas de opinião são as de conveniência, oportunismo, persuasão e doutrinária.

Para o tema que nos toca, a opinião pública crê na existência dos discos voadores, pois para o senso comum a pluralidade de civilizações é algo natural. Argumentos não faltam! Pergunto: Baseada em que se faz essa afirmação? Respondo: Em tolas e vãs suposições, já que tais "argumentos" - todos, sem exceção - nem argumentos são, mas opiniões sem a devida instrução cognitiva que lhes dê sustentação. Toda opinião é em si uma crença. Quem acredita em disco voador dirá sem pestanejar que ele existe! Quem tem dúvida dirá "é possível", hesitando afirmar ou negar. O cético o negará até com certo desprezo, mas nenhuma delas se sustenta por si mesmas. 
Pergunto de novo: É possível somar as respostas de modo a montar um quadro confiável? As premissas apresentam razões para apoiar a conclusão? Responda você.

Fato é que há muita responsabilidade sobre tudo aquilo que se fala e se escreve, tanto maior quanto mais públicas essas manifestações se tornam. Toda opinião individual é um agente transformador da realidade com implicações profundas na medida em que intervém e influencia a esfera pública, ao ponto de direcionar o rumo da história. Há uma dialética silenciosa e invisível porquanto a palavra de um encontra e perpassa o silêncio do outro. 

Segundo Le Bon, "As multidões apenas conhecem os sentimentos simples e extremos, e, nesse sentido, aceitam ou recusam em bloco as opiniões, as ideias e as crenças que lhes são sugeridas, considerando-as verdades absolutas ou erros igualmente absolutos. É o que sempre acontece com todas as crenças que têm origem na sugestão, em vez de terem sido determinadas pelo raciocínio. Sabemos como as crenças religiosas são intolerantes e conhecemos o poder despótico que elas exercem sobre os homens".

Já para os ditos ufólogos, que, a rigor, nem isso são, mas sofistas falazes, suas opiniões tornam-se argumentos em defesa de suas crenças, ainda que as premissas sejam inteiramente falaciosas e insustentáveis à luz de uma análise crítica. E por que isso acontece? Por vários motivos. Escreve Carnielli, "Crenças não são argumentos, embora possam influir neles. Os mecanismos para formar opiniões podem não ser racionais, mas até nesse ponto a investigação lógica é essencial (...) Ainda mais, as pessoas podem manter crenças verdadeiras por razões irracionais, ou manter crenças falsas por decisões racionais. Some-se a tudo isso o fato de que o conhecimento é tradicionalmente visto como um tipo especial de crença, e que o problema das contradições na razão é também um importante tema da lógica. Pior mesmo é quando a crença se materializa em opinião e é usada para substituir o argumento." 

Outro artifício dos ufólogos é a retórica ardilosa carente de fundamentação lógica, técnica ou científica, surda ao debate e à reflexão. Eles vivem numa espécie de "Bolha epistêmica"termo criado por John Woods para determinar a relação entre o conhecimento que o sujeito pensa possuir e aquele que ele efetivamente possui. Woods busca explicar a complexa interação entre conhecimento e crença. Bolha epistêmica, portanto, é um estado cognitivo em que a distinção entre conhecer e acreditar que se conhece se torna fenomenologicamente indistinguível. Como o próprio nome indica, o indivíduo fica circunscrito a um conjunto de dados e informações pertencentes única e exclusivamente ao seu universo de interesses.


Carnielli diz que "Entra em cena o já quase famoso 'viés de confirmação' - a tendência da pessoa de acolher as informações que apoiem suas crenças e rejeitar as que a contradiga (...) Mesmo após a evidência de que suas crenças foram totalmente refutadas, o indivíduo em geral não consegue fazer revisões apropriadas de suas crenças". Mas a coisa não acaba aqui. Há um parceiro perverso do viés de confirmação que é a "ilusão de profundidade explicativa", uma engenhosa armadilha intelectual quando o indivíduo crê saber mais do que realmente sabe, e persiste acreditando nisso pela ressonância de suas ideias em outras fontes. No caso do ufólogo, ele deseja ter confirmados seus argumentos na casuística, nos testemunhos, nos supostos registros, e em nenhuma hipótese aceita ser rebatido. Sabe por que tamanha obsessão? Porque sem essa "confirmação" ele terá esvaziadas suas crenças e opiniões e estará à margem da sociedade - porque da realidade já está. Convenhamos, o vazio será gigantesco.

Fica difícil entender como uma informação adquirida por um agente cognitivo se transforma ema 'crença' e passa a orientar as ações do sujeito. Peirce sustenta que a elaboração da crença se baseia em um fator emocional relevante que ele chama de 'irritação da dúvida': Quando confrontados com ela, queremos rapidamente eliminá-la. A dúvida causa desconforto e inquietação, enquanto a crença é um estado de "calma e satisfação" no qual se quer permanecer. Mais que isso, o "estado da crença" proporciona acomodação, segundo Peirce, pela segurança das posições e convicções já firmadas. A bolha epistêmica e o viés de confirmação não só "legitimam" a crença como eliminam quaisquer contraditórios. O problema é que o sujeito é incapaz de discernir o que é conhecido daquilo que é simplesmente acreditado.

Falo com tranquilidade sobre tudo isso porque já estive do lado de "dentro" da bolha (ufológica) e sei como as cabeças funcionam. Também não gostava quando os de "fora" vinham com seus saberes tentando contrapor meus "argumentos": - Que coisa, não sabem nada de ufologia e ficam dando pitacos no assunto! Imperdoável, admito. Quando resolvi botar a cabeça fora da bolha para saber o que afinal havia de tão importante, de cara me esperavam Jung, Campbell, Lévi-Strauss, Eliade, depois Bauman, Eco, Morin e muitos outros, só para ficar nos mais conhecidos porque a lista é extensa. O horizonte que se abriu foi luminoso, libertador, fértil, inesgotável, generoso, ao contrário da bolha asfixiante, pegajosa, claustrofóbica e limitadora de antes.

E você, qual é a sua opinião? Em que lado da bolha está?

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Walter Carnielli & Richard Epstein, Pensamento crítico: O poder da lógica e da argumentação. Rideel, São Paulo, 2011.
John Woods, The Death of Argument: Fallacies in Agent-based Reasoning. Dordrecht, Londo, 2011. 
Charles S. Peirce, Ilustrações da Lógica da Ciência. Letras&Ideuas, São Paulo, 2008.
Gustave Le Bon, As Opiniões e as Crenças. Ícone, São Paulo, 2002.
________. Psicologia das Multidões. Martins Fontes, São Paulo, 2008.

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