Obras

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sexta-feira, 25 de maio de 2018

VOZES , ECO & SILÊNCIO
A espiral do silêncio

Encerrada a série com a transcrição do artigo sobre opinião pública, bolha epistêmica e outros temas, o post de hoje é complementar e fundamental, baseado na obra A Espiral do Silêncio. Opinião pública: nosso tecido social, de 1995da socióloga e cientista política alemã Elisabeth Nöelle-Neumann (1916-2010). Caso você não tenha lido as edições anteriores, recomendo que faça para que a compreensão da matéria seja plena.

Se formos buscar a gênese de toda a discussão trazida aqui nos últimos posts, teremos que remontar a Platão. A coisa toda começou quatro séculos antes da Era Cristã. Você se lembra de que iniciamos a série falando da "doxa", prática corrente nas ágoras da Grécia antiga, quando os atenienses - somente eles - se reuniam para debater questões de interesse geral. Para o filósofo grego, doxa era justamente a opinião dominante resultante daqueles encontros, uma opinião politicamente forte porque representava o pensamento da maioria, porém, filosoficamente frágil. Como é, dominante e frágil?! perguntará você. É sobre isso que vamos discorrer muito resumidamente, através da teoria da espiral do silêncio, que não é assunto novo, diga-se. 

Para uma opinião prevalecer sobre as demais, ela precisa do maior número de "votos", ou seja, da maioria de pessoas concordando com ela. Contudo, essa maioria é, invariavelmente, intelectual e filosoficamente fraca porque facilmente sugestionável, manipulável, controlável e ordenável. Tenha sempre em mente que o alarido da turba irresponsável ensurdece, emudece e emburrece. Platão dizia que uma sociedade que aprova e fortalece uma decisão política em prejuízo da complexidade da busca da verdade, é uma sociedade que cava sua própria sepultura. Bauman chama de sociedade líquida, Lipovetsky de surto de apatia de massa; diagnósticos de Baudrillard, Adorno, Morin, Eco e outros denotam uma certeza cruel, porque real: geração de surdos, nova desordem mundial, 
multidão de solitários, diluição das identidades, fim das utopias, era das incertezas, individualismo exacerbado, império do efêmero, e, o pior de todos, ascensão dos idiotas. Um quadro terrivelmente verdadeiro do nosso tempo.

A teoria da espiral começou a ganhar forma fins dos anos 1960 e início dos 70, quando a socióloga passou a estudar os mecanismos da comunicação de massa e seus efeitos nas sociedades, em especial nas campanhas eleitorais do seu país naquele período. Ela notou que o resultado era um "Processo em espiral que impelia os indivíduos a perceber as mudanças de opinião e segui-las até que uma se firmasse como prevalente, enquanto as demais [opiniões] eram rejeitadas ou descartadas". Esse estudo chama-se ddemoscopia. A 
espiral do silêncio, portanto, nada mais é que a atitude de algumas pessoas em permanecer caladas quando supõem, intuem ou ficam com a falsa sensação de que suas opiniões e filosofias, visão de mundo, cosmovisão e concepções de vida estão em desacordo com a maioria, ou seja, estão em minoria. "Espiral" devido ao efeito proporcional decrescente das opiniões que silenciam das que alcançam maior visibilidade e crédito. Trocando em miúdos, quanto mais crescem estas, mais decaem aquelas.

O modelo da espiral se estabelece a partir de três premissas, segundo a autora: a) Mesmo sem acesso direto às pesquisas, enquetes, sondagens e estatísticas, a população, de modo geral, tem uma apurada percepção das tendências de opinião acerca de um dado assunto; b) Há um m medo oculto de que ocorra um isolamento social caso sua opinião seja divergente da "maioria intuída", com consequências imprevisíveis; c) Quanto maior a distância entre a opinião pública dominante e a opinião pessoal contrária, maior será a probabilidade de essa última manter-se reservada, silenciosa e isolada.

Nöelle-Neumann diz ainda que para entender o funcionamento da espiral é necessário conhecer os mecanismos pelos quais a mídia influencia a sociedade (não vou comentar o papel da publicidade nesse processo): 1) Superexposição de um assunto específico; 2) Noticiário "padronizado", produzido e divulgado pelas agências e veículos de comunicação; 3) Presença maciça, ou onipresença, da mídia em todos os setores da vida social. Ela afirma também que "Hoje pode ser demonstrado que, embora as pessoas vejam claramente que algo não é correto, permanecerão em silêncio se a opinião pública (aquela que possa ser exibida sem medo do isolamento) e, portanto, o consenso sobre o que constitui bom gosto e opinião moralmente correta, manifestar-se-ão contra".

Nöelle-Neumann discorre sobre a natureza social dos indivíduos, onde personagens devem despontar como "formadores de opinião". Ela afirma que uma sociedade sem natureza social ou sem medo de isolamento é obviamente impossível. E diz mais, afirmando que, buscando informações sobre a opinião pública, percebeu que o assunto nunca apareceu como "fenômeno principal de investigação", mas como comentários marginais. Ela vê a opinião pública como um fenômeno de interesse para filósofos e cientistas sociais desde o século 19, talvez até antes. De acordo com sua teoria, quando as pessoas buscam formar um juízo sobre determinado assunto,  elas observam quais são as opiniões dominantes ou hegemônicas antes de se manifestarem. A tendência é as pessoas guardarem silêncio, a não expressarem opiniões diferentes das que estão prevalecendo nos meios de comunicação. As opiniões percebidas - as da maioria - pela mass media serão aquelas abraçadas pela sociedade.

Há uma evidente desconexão entre opinião pública e privada, uma vez que os indivíduos, no desejo de fazer parte de um grupo, uma "tribo", emitem suas opiniões e as ajustam aos critérios que julguem serem majoritários, isto é, o medo do isolamento contribuiria para o indivíduo adaptar sua opinião àquela sustentada pela maioria para evitar atritos. Ainda que existam diferenças significativas entre as culturas e as sociedades, Nöelle-Neumann assinala que em todas elas existe uma "pressão para a conformidade", isto é, a luta pela opinião pública se concentra nos meios de comunicação, que funcionam como instrumentos de controle. O 'silêncio' poderia ser interpretado como um sinal de conformidade, o que não corresponde necessariamente à verdade.

A espiral do silêncio atua dentro de um sistema dinâmico no qual a mídia exerce total domínio. Ela pega uma opinião majoritária e repetidamente coloca-a no centro de um universo social, estabelecendo-a como statu quo, colocando a si mesma no topo dessa escada imaginária. Essa opinião se torna predominante não apenas porque é repetida à exaustão, mas porque as pessoas só podem compreender o mundo por intermédio de sua consciência, que é, em grande parte, criada (e manipulada) pela mídia. Elas interpretam como real aquilo que veem como real, e essa realidade é previamente determinada pela mídia. E esta é apenas uma das vertentes do estudo. E olhe que nem falei das redes sociais e as consequências nefastas para a opinião privada, afinal, como dizia Umberto Eco, a internet deu voz a uma legião de imbecis. Legião? Um exército!

A autora observa que vários autores têm tocado no tema de modo superficial, incluindo Tocqueville, que em 1856 escreveu: "Os que seguiam crendo nas doutrinas da Igreja tinham medo de ficarem sozinhos em sua crença, e temendo mais a solidão que os erros, declaravam compartir as opiniões da maioria. Então, o que era apenas a opinião de uma parte (...) da nação passou a ser considerada a vontade de todos".

Chegamos, por fim, para onde tudo converge. Vem comigo.

Ao costurarmos os "retalhos temáticos" trazidos para análise não só do objeto que nos move, mas também da sociedade, o que surge é um painel bastante elucidativo das condutas individuais e coletivas. Voltamos, portanto, ao ponto inicial, as opiniões. Para isso, é preciso rever algumas passagens. Considerando que a massa da população não tem o grau de conhecimento necessário para opinar sobre um determinado assunto. Por exemplo, para os discos voadores, o conjunto das opiniões será constituído pelo "acho que", "ouvi dizer", pela combinação ficção científica-imaginário alien, pela espetáculo midiático de ocasião, pela espiritualidade de bolso, pelas interpretações religiosas toscas e pelas crenças de fundo coletivo. É de se concluir, portanto, que tal "opinião pública" não pode e não deve, em absoluto, ser tomada como resultado de uma convicção consensual solidamente formadaÉ, sem dúvida, uma doxa: Sistema ou conjunto de juízos que uma sociedade elabora em um determinado momento histórico supondo tratar-se de uma verdade óbvia ou evidência natural, mas que não passa de uma crença ingênua.

De sua parte, os ufólogos, aninhados na zona de conforto de sua bolha epistêmica, alimentam-se autofágica e viciosamente do próprio viés de confirmação e da câmara de eco - que 
funcionam como uma espécie de paralisia social -, ignorando os saberes externos por viverem na ilusão de profundidade explicativa, uma espécie de ensaio geral obre a cegueira. Vale dizer, néscios funcionais. Não obstante, são especialistas, formadores de opinião, com retórica anacrônica porém persuasiva, sedutora e sagaz, ao gosto da cultura de massa e do que pede o público cativoTudo é tão claro quanto óbvio. Assim, enquanto esse vozerio todo sobe por um lado da espiral, de outro declina a ação daqueles investigadores imersos no estudo transdisciplinar na autêntica procura pela verdade. A espiral amplia o vácuo entre estes dois mundos: Signos contrários, caminhos inversos, discursos excludentes, choque de linguagens, sinapses distintas e distantes, diálogos crispados.

E por que essa minoria se cala? Por que não reage, não vai à luta? Imagino que você possa estar se perguntando.

Entre tantas respostas possíveis, uma me parece a mais sensata e verdadeira, não por ser a minha em particular - é a de outros também, mas pela realidade dos fatos à luz de um olhar ensejado pela lógica, pelas circunstâncias e pela experiência: Não sou porta-voz de ninguém, mas não temos - no plural - a menor intenção de impor ou convencer com nosso saber 
compartilhado e magnificadoIncipiente sim, mas progressivo e irrestritoNão somos doutossó não somos tabula rasa. A leitura combate a miséria intelectual. Não estamos silentes, só não estamos expostos. Nem sempre silêncio é omissão, cumplicidade, conivência ou covardia, é estratégia também, a Psicanálise e a Filosofia que o digam. Por outro ângulo, silêncio é coragem, coragem de nadar contra a correnteza do 'senso comum' ao falar com a própria voz. É sabido que o silêncio leva à reflexão, à análise, ao entendimento. Não estamos inativos, só não somos reativos. Não somos apáticos, só não temos pressa, a pressa induz ao erro. Não temos soberba, só não somos estúpidos, e estes estão por toda parte, como os unicórnios, muito mais que a legião de Eco. O orgulho cega o caminho e a certeza aborta o debate.

O que você quer, uma opinião saída do cérebro ou do intestino? Um parecer calcado na pesquisa de longo curso referendada por uma literatura eclética consagrada, ou em explicações descuradas, prematuras e improváveis? O que você quer, análise crítica madura dos fatos ou embromação fermentada pelas fantasias, pelas crenças ou as de conveniência, ou seja, a doxa? O que você quer? Quer ser adestrado a se juntar ao rebanho de padrão cognitivo raso, ou receber conteúdo de excelência para pensar com os próprios neurônios? Você quer um saber constituído ou seguir crendo em feitiçarias? Lembre-se, você é resultado das suas escolhas, você é os valores que escolhe e que espelham suas atitudes, você é aquilo que pensa. O cenário mudou, e você, mudou? O que você quer? Quais são seus critérios, seus imperativos e sua lógica de escolha?

Espero que esta série tenha sido tão luminosa para você quanto foi para mim. Espero que tenha percebido nas entrelinhas a semelhança da bolha epistêmica com a caverna platônica - nosso útero primordial, algo tão profundo que inspirou os próximos textos. Para retribuir sua grata presença, Fernando Pessoa, um epílogo em forma de poesia.
É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios.
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber se encontrar.
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração. 


__________________
Elisabeth Nöelle-Neumann, A Espiral do Silêncio. Opinião pública: nosso tecido social. Estudos Nacionais, 2017.
Clóvis de Barros Filho, Comunicação na Polis. Vozes, 2002.
Zygmunt Bauman, A Cultura no Mundo Líquido Moderno. Zahar, 2011.

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