Obras

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sábado, 12 de maio de 2018


VOZES , ECO & SILÊNCIO
A câmara de eco 

Seguimos com a transcrição do artigo do professor de Filosofia da Utah Valley University, C. Thi Nguyen. Volto a pedir concentração na leitura, dada a importância do tema em tempos de polarização e radicalização de toda sorte.

Atenção agora!

Pode-se ficar tentado a pensar que a solução é apenas mais autonomia intelectual. As câmaras de eco surgem porque confiamos demais nos outros, então a saída é começar a pensar por nós mesmos. Mas esse tipo de autonomia intelectual radical é um delírio. Se o estudo filosófico do conhecimento nos ensinou alguma coisa no último meio século, é que somos irremediavelmente dependentes uns dos outros em quase todos os domínios do conhecimento. Pense em como confiamos nos outros em todos os aspectos de nossas vidas diárias: Dirigir um carro depende de confiar no trabalho de engenheiros e mecânicos; tomar remédio depende de confiar nas decisões de médicos, químicos e biólogos. Até os especialistas dependem de vastas redes de outros especialistas. Um cientista do clima analisando amostras do ar depende do técnico de laboratório que opera a máquina de extração de ar, dos peritos em estatística que desenvolveram metodologias subjacentes e assim por diante.

Elijah Millgram argumenta em The Great Endarkenment (2015), que o conhecimento moderno depende da confiança de extensas cadeias de experts. E nenhuma pessoa está em condições de verificar a confiabilidade de todos os membros dessa cadeia. Pergunte a si mesmo: Você poderia diferenciar um bom cientista de um incompetente? Um bom biólogo de um biólogo medíocre? Um bom engenheiro nuclear, um radiologista, um  macroeconomista, de um profissional incapaz? Qualquer leitor em particular pode, é claro, ser capaz de responder positivamente a uma ou duas dessas questões, mas ninguém pode realmente avaliar uma cadeia tão longa por si mesma. Em vez disso, dependemos de uma estrutura social de confiança muito complexa. Temos de confiar uns nos outros, mas, como a filósofa Annette Baier afirma, "Essa confiança nos torna vulneráveis". As câmaras de eco funcionam como uma espécie de parasita social sobre essa vulnerabilidade, aproveitando nossa condição epistêmica e dependência social.

A maioria dos exemplos dados, seguindo Jamieson e Cappella, foca na câmara conservadora de eco da mídia. Mas nada diz que esta é a única câmara lá fora; Eu também encontrei câmaras de eco sobre tópicos tão amplos como política, dieta (Paleo!), técnicas de exercícios (CrossFit!), amamentação, algumas tradições intelectuais acadêmicas e muito, muito mais. Eis o padrão: O sistema de crenças de uma comunidade enfraquece a confiabilidade de quaisquer pessoas de fora que não subscrevam seus dogmas centrais? Então provavelmente é uma câmara de eco.
No entanto, grande parte da análise recente colocou as bolhas epistêmicas junto com as câmaras de eco em um fenômeno unificado, mas é absolutamente crucial distinguir os dois. Bolhas epistêmicas são bastante desorganizadas; crescem com facilidade e da mesma forma desmoronam. As câmaras de eco são muito mais perniciosas e muito mais robustas. Elas podem começar a parecer quase como coisas vivas. Seus sistemas de crenças fornecem integridade estrutural, resiliência e respostas ativas a ataques externos. Certamente uma comunidade pode ser ambas ao mesmo tempo, mas os dois fenômenos também podem existir independentemente. E os eventos que mais nos preocupam são os efeitos de câmara de eco que realmente causam a maior parte do problema.

A análise de Jamieson e Cappella é, em grande parte, esquecida nos dias de hoje; o termo é entendido apenas como sinônimo de bolhas de filtro. Muitos dos pensadores mais proeminentes se concentram apenas nos efeitos do tipo bolha. Os relevantes tratamentos de Sunstein, por exemplo, diagnosticam a polarização política e a radicalização religiosa quase exclusivamente em termos de má exposição e má conectividade. Sua recomendação, em Republic, é criar mais fóruns públicos para o discurso, onde deparamos com opiniões contrárias com mais frequência. Mas se o que estamos tratando é primariamente uma câmara de eco, então esse esforço será inútil, na melhor das hipóteses, e poderá até fortalecer o controle dessa câmara.

Os novos dados parecem mostrar que as pessoas no facebook realmente veem postagens de opiniões contrárias, ou que as pessoas frequentemente visitam sites com afiliações políticas opostas. Se isso é certo, então as bolhas epistêmicas podem não ser uma ameaça tão séria. Mas nada disso pesa contra a existência de câmaras de eco. Não devemos descartar essa ameaça com base apenas em evidências sobre conectividade e exposição. Fundamentalmente, as câmaras de eco podem oferecer uma explicação útil da atual crise informacional de uma maneira que as bolhas epistêmicas não podem. Muitas pessoas afirmaram que entramos numa era de "pós-verdade". Não só algumas figuras políticas parecem falar com um descarado desrespeito pelos fatos, mas seus partidários parecem totalmente não-convencidos pelas evidências. Parece que, para alguns, a verdade não mais importa.

Esta é uma explicação em termos de irracionalidade total. Para aceitá-lo, você deve acreditar que um grande número de pessoas perdeu todo o interesse em evidências ou investigações e se afastou dos caminhos da razão. O fenômeno das câmaras de eco oferece uma explicação menos contundente e muito mais modesta. A aparente atitude de "pós-verdade" pode ser explicada como o resultado das manipulações de confiança forjadas pelas câmaras de eco. Não precisamos atribuir um desinteresse total por fatos, evidências ou motivos para explicar a atitude pós-verdade. Nós simplesmente temos que atribuir a certas comunidades um conjunto amplamente divergente de autoridades confiáveis.

Ouça o que realmente soa quando as pessoas rejeitam os fatos simples - não soa como irracionalidade bruta: Um lado aponta um dado econômico; o outro lado ignora esse dado rejeitando sua fonte. Eles acham que o jornal é tendencioso ou as elites acadêmicas que geram os dados são corruptas. Uma câmara de eco não destrói o interesse de seus membros pela verdade, apenas manipula quem eles confiam e muda quem eles aceitam como fontes e instituições confiáveis.

E, em muitos aspectos, os integrantes da câmara de eco estão seguindo procedimentos razoáveis ​​e racionais de investigação. Eles estão imbuídos de raciocínio crítico, estão questionando, avaliando fontes por si mesmos, estudando diferentes caminhos para a informação a partir do que já sabem sobre o mundo. Eles não são irracionais, mas sistematicamente mal informados sobre onde depositar sua confiança.

Observe como o que está acontecendo aqui é diferente, digamos, do discurso duplo orwelliano, uma linguagem deliberadamente ambígua e cheia de eufemismo, projetada para esconder a intenção do falante. Doublespeak não tem nenhum interesse em clareza, coerência ou verdade. É, de acordo com George Orwell, a linguagem de burocratas e políticos inúteis tentando passar pelas articulações da fala sem realmente se comprometer com quaisquer reivindicações substantivas reais. Mas as câmaras de eco não negociam pseudo fala vaga e ambígua. Devemos esperar que elas apresentem afirmações claras, objetivas e inequívocas sobre quem é confiável e quem não é. E isso, de acordo com Jamieson e Cappella, é exatamente o que encontramos nas câmaras de eco: Teorias de conspiração claramente arquitetadas e acusações de um mundo exterior repleto de indignidade e corrupção.

[continua]

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Um comentário:

  1. Texto genial, saboroso, seu Reis.

    "Esta é uma explicação em termos de irracionalidade total. Para aceitá-lo, você deve acreditar que um grande número de pessoas perdeu todo o interesse em evidências ou investigações e se afastou dos caminhos da razão".
    "Eles não são irracionais, mas sistematicamente mal informados sobre onde depositar sua confiança".

    Abraço.

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