Obras

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sexta-feira, 23 de novembro de 2018


PENSAR PARA MUDAR, MUDAR PARA CRESCER

O Bobo ao Rei Lear: Pobre Rei, envelheceu antes de ficar sábio!

O título de hoje parece conselho de auto-ajuda, mas está longe disso. Ao longo de uma vida nós passamos por várias e graduais mudanças de toda natureza - física, mental, emocional, intelectual, mas nem sempre as últimas acompanham a primeira. De acordo com estudos sobre psicologia comportamental, está acontecendo exatamente isso - o homem agindo cada vez mais como bebê chorão, mimado e carente, e não há nada mais melancólico que um adulto infantilizado, deslocado no tempo, retardado nas atitudes. Se você tem prestado atenção ao que vem sendo escrito aqui, sabe que tenho tocado nesse ponto com incansável insistência, porque a idiotia está crescendo em escala mundial em todos os estratos sociais ocupando todos os espaços Se a estupidez é uma enfermidade coletiva contagiosa, a inteligência é uma virtude pessoal intransferível.

Pensadores de primeira grandeza e de vários matizes estão preocupados com esta situação e alertam para o naufrágio social. Enquanto eles estão numa ilha de lucidez e sabedoria, nós afundamos num oceano de loucura e ignorância. Bauman diz que a nossa sociedade se liquefaz - eu diria vaporiza -, outros falam em avanço da mediocridade, cultura em declínio e assim por diante. Há quase um século Freud acendia sua lamparina para nos avisar que teríamos turbulência pela frente se não aprendêssemos a reconhecer nossas fraquezas e limitações. Optamos por focar na escuridão. Depois dele, outros soltaram a voz, gastaram tintas, tocaram trombetas. Em vão. Não ouvimos ninguém, não vemos nada, não falamos com coerência, esquecemos tudo o que aprendemos, quando aprendemos. Continuamos tolos incuráveis. 
Se pensar dói, como dizia Fernando Pessoa, pensar em mudar torna-se um martírio insuportável, mesmo que represente crescer, amadurecer. Ele dizia também que, ao compreender o pensamento do outro, eu me torno ele, e só assim posso concordar ou discordar de mimDe qualquer modo será, sempre, um aprendizado. Pensar não é uma opção, é dever, é saber, e saber é poder, Não ignore o poder do saber, o poder de mudar. Não pensar é manter a mente em permanente estado de suspensão. A discussão toda vai a patamares muito além de um simples olhar psicológico ou antropológico. Começa pelo fato de estarmos inegavelmente sozinhos no cosmo, solidão essa que amedronta e angustia, como afirma o antropólogo Ernest Becker:
A necessidade de significância cósmica é um dado antropológico estrutural diretamente ligado ao temor da aniquilação pela morte. Não queremos admitir que estamos sozinhos e que sempre nos apoiamos em algo que nos transcende, um sistema de ideias e poderes que nos sustenta e no qual estamos mergulhados.

Erich Fromm ratifica esse diagnóstico ao enfatizar que o homem não pode prescindir da ilusão de um deus protetor que o ampara nessa solitude cósmica, por sentir-se como a criança distante da casa paterna. Isso é tão profundamente verdadeiro que ele mesmo dá a chave para a mudança: O verdadeiro sentido do desenvolvimento humano consiste em sobrepujar essa fixação infantil. Mais direto impossível.

Você sabe que poderíamos ficar horas escrevendo sobre o tema, mas devo me restringir a poucos autores, o suficiente para dar um norte na reflexão. Parece que estamos presenciando um diálogo ao vivo quando Lacan corrobora Fromm: Para que a criança atinja o nível da realidadeela deve deixar o modo imaginário da visão de si e dos outros, e utilizar o modo simbólico. Outro direto no queixo. Como falamos recentemente sobre o papel dos contos de fadas na construção do imaginário infantil, e a representação do pensamento mágico influente na formação do adulto, fico por aqui. Junte tudo e o circuito se fecha.

Se reunirmos muito do que já foi escrito a respeito, a convergência vem de todas as direções. O homem vive na infância (cósmica e terrena) e não sairá dela, não haverá tempo para amadurecer. Faz parte do universo infantil o doce e encantado mundo da magia, da ilusão, da fantasia e da falta de comprometimento e responsabilidade com a vida, e o homem se apega a ela à margem do real, negando-o permanentemente de todas as formas: Quando projeta um futuro imaginário - utopia; quando se fixa no passado idealizado - retrotopia; quando crê na proteção de entes sobrenaturais - ufotopia. Ele ignora que o real é insubstituível e que em algum momento vai bater de cara com ele. Poderá ser tarde, e vai doer. 

O anjo de face rosada da fantasia afaga o coração e conforta o espírito, mas a Quimera da realidade faz sangrar o coração e rasga a carne , por isso é cruelmente mais verdadeira e convincente.

Tocqueville disse em algum momento que quando as velhas gerações se vão, as novas herdam seus vícios. O avô dos meus filhos, um homem de bastante leitura, dizia a mesma coisa, a seu modo e com peculiar sotaque: No satisfechos con nuestros errores, los ampliamos y los transmitimos a nuestros hijos. Quando o homem vive dentro de uma ficção, ele não a reconhece com tal, como na fábula dos dois peixinhos que já contei aqui. Ficção? O que é isso?

Mudar é uma atitude sempre surpreendentemente engrandecedora, renova o ar, troca a zona de conforto por horizontes sem fim, extermina ranços. Optar pela realidade áspera da vida é um desafio para gente grande, não para fracos e covardes. Não mudar é estar pronto para o desmanche e ser atropelado pelo ritmo incontrolável e inapelável das transformações. Mudar pode doer, não mudar mata. Essa reforma íntima só vale para quem está pronto. Para ajudar nessa reflexão, encerro com um extrato do pensamento do filósofo Clóvis de Barros Filho, conciso e cirúrgico:


Reinventar-se para se manter vivo. A reinvenção de si deve respeitar as características individuais e as exigências específicas do cenário em que se vive, um processo que gera uma equação de grande complexidade, que zomba de qualquer fórmula pronta. Com certeza, se a vida tem alguma chance de dar certo, é só com quem vive no comando. Terceirizar as decisões da vida, entregar as escolhas da própria trajetória a quem quer que seja - profetas ou gurus -não dá certo, a não ser para os profetas e os gurus. Terceirizar a vida é uma forma de escravidão. Tendo essa lucidez, não estando empalhado no mundo, o sujeito tem a oportunidade de diagnosticar as condições ideais da própria reinvenção. O risco é de permanecer, e permanecer acreditando ser num mundo que deixa de ser a cada segundo, é proporcionar para si as condições de um distanciamento progressivo da realidade, portanto, de uma desvalorização inapelável de si mesmo.


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FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Penguim Companhia, 2011.
BAUMAN, S. Retrotopia. Vozes, 2017.
_________. O Mal-estar da Pós-modernidade.  Zahar, 1999.
DALRYMPOLE, T. Podres de Mimados. É Realizações, 2015.
BECKER, E. A Negação da Morte. Record, 2008.
FROMM, E. Psicanálise e Religião. Livro Ibero Americano, 1966.

2 comentários:

  1. "...um extrato do pensamento do filósofo Clóvis de Barros Filho, conciso e cirúrgico:


    "Reinventar-se para se manter vivo. A reinvenção de si deve respeitar as características individuais e as exigências específicas do cenário em que se vive, um processo que gera uma equação de grande complexidade, que zomba de qualquer fórmula pronta. Com certeza, se a vida tem alguma chance de dar certo, é só com quem vive no comando. Terceirizar as decisões da vida, entregar as escolhas da própria trajetória a quem quer que seja - profetas ou gurus -não dá certo, a não ser para os profetas e os gurus. Terceirizar a vida é uma forma de escravidão. Tendo essa lucidez, não estando empalhado no mundo, o sujeito tem a oportunidade de diagnosticar as condições ideais da própria reinvenção. O risco é de permanecer, e permanecer acreditando ser num mundo que deixa de ser a cada segundo, é proporcionar para si as condições de um distanciamento progressivo da realidade, portanto, de uma desvalorização inapelável de si mesmo".

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  2. Amei o texto, Carlos, porque me senti representada nele: sofro de utopia, retrotopia e ufotopia. Mais abaixo você diz algo muito pertinente: nada mais forte e urgente que o real... Vivamos a realidade, sem postergá-la. Outro ponto com que me identifiquei foi o de observar o outro para poder discordar de si. Transformador o texto. Obrigada pela partilha.

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